A Lei 11.705/08 cujo entrou em vigor aos 20 de junho de 2008 trata das alterações no Código de Trânsito Brasileiro (CTB - Lei 9.503/97). A nova Lei, taxada de “lei seca” tem sido alvo de muita especulação. E, muito do que se vem veiculando na imprensa não está devidamente correto, e informações errôneas estão sendo passadas para população em geral e gerando acalorado debate entre autoridades e operadores do direito. Cumpre-nos, então, fazer uma singela, porém pertinente, abordagem legal de alguns pontos dessa famigerada lei, especialmente estes com maior repercussão na mídia. É premissa básica que no direito existem sanções de natureza diversa e independentes entre si. Assim, temos a sanção administrativa, disciplinar ou civil, e a sanção penal. A diferença entre elas é estabelecida pelo legislador à luz da conseqüência jurídica de cada uma das esferas. O ilícito penal tem como sanção a pena criminal. O ilícito civil, a obrigação de reparar o dano, a nulidade do ato jurídico, a obrigação de dar, de fazer etc. O ilícito administrativo, a advertência, suspensão ou demissão do funcionário, a multa tributária ao contribuinte inadimplente, a apreensão de veículo em condição irregular, a multa por excesso de velocidade etc. Convém destacar que existe a possibilidade de coexistência entre a responsabilidade penal, civil e administrativa, em relação a fatos que atinjam as três esferas de interesses, porque, como dito acima, são independentes as esferas.
Análise da sanção administrativa.
A L. 11.705/08, não alterou substancialmente o artigo 165 do CTB, cujo já previa como infração de natureza gravíssima, o ato de dirigir sob influência de álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência. Assim, sancionando com a aplicação de multa, suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses e a retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação. A novidade adveio da alteração da redação do artigo 276 CTB, onde o caput deste dispositivo passou a prever que para fins da sanção administrativa do art. 165 CTB, onde antes exigia constatação de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue, agora não haverá qualquer tolerância à concentração de álcool por litro de sangue. Esta é uma outra premissa que deve ser assimilada: para fins de sanção administrativa a lei não vincula a qualquer quantidade de álcool por litro de sangue. Essa é a regra. Porém, o próprio legislador deixou expresso no parágrafo único deste art. 276 CTB que o poder executivo federal disciplinará as margens de tolerância para os casos específicos. Ou seja, ao contrário do caput deste art. 276, não é qualquer concentração de álcool que ensejará as conseqüências previstas no art. 165, mas, aquela que estiver além da tolerância disciplinada pelo órgão o poder executivo competente, que, no caso é o Conselho Nacional de Trânsito (Contran). É expressa a admissão, na seara administrativa, do Princípio da Insignificância. Apesar de não haver uma Resolução do Contran sob esta tolerância, tal fora prevista pelo Decreto Presidencial nº 6.488, publicado aos 20.06.2008, cujos parágrafos do art. 1º assim dispõem, in verbis: “§ 1º As margens de tolerância de álcool no sangue para casos específicos serão definidas em resolução do Conselho Nacional de Trânsito - CONTRAN, nos termos de proposta formulada pelo Ministro de Estado da Saúde; § 2º Enquanto não editado o ato de que trata o § 1º, a margem de tolerância será de duas decigramas por litro de sangue para todos os casos; § 3º Na hipótese do § 2º, caso a aferição da quantidade de álcool no sangue seja feito por meio de teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro), a margem de tolerância será de um décimo de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.”
Prova da embriaguez.
Até a entrada em vigor da L. 11.705/08, a embriaguez era constatada da seguinte forma: exame de sangue, por aparelhos técnicos ou científicos (etilômetro, popularmente conhecido como bafômetro), por exame clínico (análise descritiva da situação do examinando feita por um perito) ou prova testemunhal. Com a nova lei, passou a permitir o § 2º do art. 277 CTB que além destas formas de se verificar a embriaguez do sujeito, “outras provas em direito admitidas” para confirmar a infração ao art. 165 CTB. Em direito, além das três já citadas, apenas caberia prova de captação de imagem (fotografia ou filmagem). Porém, no tocante à constatação da concentração de álcool por litro de sangue, ainda existem apenas duas formas de análise: exame de sangue e o teste do bafômetro. E se o sujeito se recusar a fazer estas provas, como constatar a concentração de álcool? Não há como fazê-lo. Antes da L. 11.705/08, já era pacífico que o condutor não era obrigado a realizar qualquer exame ou teste. Tentando impor a sujeição do condutor a fazer esta prova, a nova lei acrescentou o § 3º ao artigo 277 CTB onde diz que ao condutor que se recusar a submeter a qualquer destes procedimentos serão aplicadas as sanções (administrativas) previstas no art. 165. Isso é válido do ponto de vista legal? Óbvio que não, afinal, mesmo que embriagado (e cada ser humano tem sua própria receptividade e tolerância ao álcool), poderá o sujeito estar dentro da margem de tolerância prevista pelo legislador como insignificante e, s.m.j, a olhos nus, ainda nenhum ser humano possui o dom de analisar taxas de alcoolemia, sem se valer de algum instrumento técnico ou científico. Esta previsão de sanção, sem análise da tolerância que o legislador constituiu é ilegal. Inclusive, vamos mais além e dizer que é totalmente inconstitucional. O cidadão não é obrigado a fazer prova contra si (nemo tenetur se detegere), ou seja, pode negar-se a soprar o bafômetro, não permitir que lhe colham sangue e tampouco é obrigado a andar em linha reta ou fazer movimentos como o famigerado “quatro”. Direito este que advém da Constituição Federal (art. 5º, incisos LVII e LXIII) bem como da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (art. 8º, nº 2, alíena “g”), ratificada pelo Brasil pelo Decreto 678/92. Como sustentar a obrigatoriedade desta colheita de prova contra o condutor, se temos uma norma de caráter constitucional que nos dá exatamente a garantia de assim não fazer? Torna-se indiscutível a inconstitucionalidade dessa presunção de embriaguez superior ao limite legal, vez que há nítida imposição de constituição de prova pelo próprio condutor, num sistema cuja Constituição Federal, no próprio processo penal, que é o mais, assim não admite. O que dizer de um procedimento administrativo, que é o menos? Só resta ao agente de trânsito convidar o condutor a fazer tais exames. Em havendo negativa por parte do condutor, não pode obrigá-lo ou mesmo ameaçá-lo de prisão por crime de desobediência, tampouco obrigá-lo a gesticular, ou andar em linha reta, ou a fazer qualquer movimento corporal, sob pena de praticar-se crime de abuso de autoridade. Logo, na negativa de exame de sangue ou do uso do bafômetro, pode apenas constatar a embriaguez mediante o exame clínico, fotografação ou prova testemunhal. Mas, ficará totalmente prejudicada a constatação de taxa de álcool, cujo, pode-se tranquilamente questionar na via administrativa ou mesmo judicial uma vez que existe a possibilidade de o condutor mesmo embriagado, não ter ultrapassado os limites de tolerância conferidos na própria Lei.
Análise da sanção penal.
A L. 11.705/08 trouxe alterações também ao art. 306 CTB que diz respeito ao crime de “embriaguez ao volante”. Duas são as condutas: uma diz respeito à condução de veículo sob influência de qualquer substância psicoativa que determine dependência, e outra à condução de veículo estando o sujeito com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas. A pena prevista é a mesma, ou seja, detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Consigne-se que enquanto a Lei 11.705/08 impôs limites à taxa de álcool vinculadas somente ao exame sanguíneo, o Decreto 6.488/08 apresentou outra modalidade equivalente para aferição da alcoolemia: teste do bafômetro, in verbis: “Art. 2º Para os fins criminais de que trata o art. 306 da Lei nº 9.503, de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, a equivalência entre os distintos testes de alcoolemia é a seguinte: I - exame de sangue: concentração igual ou superior a seis decigramas de álcool por litro de sangue; ou; II - teste em aparelho de ar alveolar pulmonar (etilômetro): concentração de álcool igual ou superior a três décimos de miligrama por litro de ar expelido dos pulmões.” Tais taxas de alcoolemia tratam-se de elementos normativos extrapenais. A primeira crítica a ser feita é que se retirou do art. 306 CTB a expressão “expondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, cujo perfazia este crime com natureza de crime de perigo concreto determinado. Com a supressão dessa parte, apenas transpareceu que passou este crime passou a ter natureza de crime de perigo abstrato. Frise-se transpareceu. Queremos dizer o seguinte: o sujeito que embriagado, conduz o veículo corretamente, sem expor a incolumidade de outrem, dentro da velocidade limite, poderá incidir neste crime por simples subsunção do fato ao tipo legal? Não, apesar de num primeiro momento assim parecer. Há que se fazer referência ao Princípio da Ofensividade, onde o sujeito deve estar conduzindo o veículo de tal forma anormal cujo exponha a perigo a incolumidade de outrem. Afinal esta é a objetividade jurídica do crime em apreço. Logo, apesar de o texto legal não mais mencionar, ainda trata o dispositivo de crime de perigo concreto, exigindo a condução do veículo de tal forma que comprovadamente exponha a perigo outrem. Este é o entendimento sob o enfoque constitucional, sob pena de antecipar-se o momento consumativo de uma ação cujo ainda não ocorreu e, talvez, nem ocorra, porque pode o condutor nunca atingir o bem jurídico em apreço, apesar de embriagado. Se esta foi a intenção, e se se pretende punir a torto e a direito, então que antecipem de uma vez o perigo, v.g., incriminem aquele que esteja portando os famigerados bom-bons de licor na direção de veículo automotor! Outra importante observação diz respeito à direção “sob influência de álcool”, cujo silenciou o art. 306 CTB. Novamente, em uma primeira análise, faz transparecer que tal não é exigível, mas isto não poderá prevalecer. Afinal, se o tipo exige a “influência de qualquer substância psicoativa que determine dependência”, deve também exigir quanto ao álcool por simples teleológica, não havendo qualquer justificativa para essa diferença. A própria infração prevista no art. 165 CTB exige a condução “sob influência” e, em se tratando do menos, ou seja, a sanção administrativa, o mais, ou seja, a conduta criminosa (art. 306 CTB) deve também exigir. Ademais, a leitura deste art. 306 deve ser feita de acordo com o texto integral da L. 11.705/08, não em tiras ou parágrafos. É elemento normativo do tipo a influência de álcool sob pena de tornar-se uma figura delitiva sem aplicabilidade vez que sacramentada na razão e fundamento do interesse social, que é o risco a que são expostas as pessoas quando um indivíduo conduz seu veículo automotor nesta condição e de forma anormal. Torna-se um requisito implícito ao tipo, aliás, cujo assim consagrou a própria Lei 11.705/08, em seu art. 7º, no sentido da obrigatoriedade da afixação da advertência ostensiva nos locais onde se vende bebida alcoólica de que “é crime dirigir sob influência de álcool”. Portanto, para configurar o crime de embriaguez ao volante, exige-se (i) que se verifique além da concentração de 6 (seis) ou mais decigramas de álcool por litro de sangue ou 3 (três) ou mais décimos de miligramas (0,3) de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões no caso de exame por bafômetro, (ii) que o sujeito conduza o veículo de forma anormal derivada dessa influência de álcool, (iii) colocando em perigo a incolumidade de outras pessoas. Se não for assim, podemos ter a seguinte situação: o condutor que estiver com concentração de 5,9 decigramas de álcool por litro de sangue pode fazer tudo, subir na calçada, dirigir na contramão, fazer zig-zag pela via pública etc., e mesmo assim não incidirá no crime previsto neste art. 306 CTB, mas apenas receberá a infração administrativa do art. 165 CTB, porque vedado interpretação extensiva em direito penal. Enquanto que aquele com taxa de 6,0 decigramas, mas que dirigia regularmente, pelo só fato de atingir o limite legal de alcoolemia incidirá no crime! Totalmente desprovido de lógica e proporcionalidade, fatalmente inconstitucional sob a ótica de estudo do bem jurídico protegido.
Conclusões.
I. há obrigação de submeter-se ao bafômetro ou exame de sangue?
De forma alguma. A autoridade de trânsito não pode obrigar o cidadão a submeter-se a qualquer exame cujo periciado ou avaliado tenha de atuar na obtenção dessa prova, como exames de sangue, bafômetro (etilômetro) ou qualquer outro, inclusive o de andar em linha reta, tocar o nariz ou fazer o “quatro”. A autoridade poderá conduzi-lo à Exame Clínico, ou seja, análise descritiva, aparência, ou amealhar prova testemunhal ou de imagem. Se o condutor for obrigado a soprar bafômetro, retirar-se-lhe sangue, andar, gesticular etc., sob ameaça de prisão por crime de desobediência, o agente está praticando crime de abuso de autoridade (Lei 4.898/65, artigos 3º e 4º).
II. quem receberá sanção administrativa e quem receberá sanção penal?
Somente incidirá na sanção administrativa ou penal se comprovada a concentração de álcool acima das taxas legais. Como existem somente duas formas de se comprovar tais taxas (exame de sangue ou teste do bafômetro), o condutor que negar-se a fazer tal exame e teste, ficará prejudicada a prova da materialidade, tanto para fins administrativos, tampouco para fins criminais. A embriaguez pode ser comprovada por outras provas (testemunhal ou fotográfica), mas como a Lei conferiu limites mínimos para sanções, se não comprovados, ficará prejudicada qualquer sanção. Inclusive porque houve previsão de Taxa Tolerável. Logo, somente receberá as sanções o condutor que aceitar expressamente submeter-se ao exame ou teste e este resultar concentração de álcool além dos limites legais.
1º. incidirá em crime (art. 306 CTB): quanto ao exame de sangue: havendo constatação de concentração de álcool igual ou maior que 6 (seis) decigramas por litro de sangue. Quanto ao teste de bafômetro: havendo constatação de concentração de álcool de 3 (três) ou mais décimos de miligramas (0,3) por litro de ar expelido pelo ar dos pulmões. Em qualquer caso exigindo que a condução do veículo seja de forma anormal, expondo a perigo incolumidade de outrem. Aquele que apesar de ultrapassar este limite legal, mas conduzir regularmente o veículo não incidirá neste crime por não atingir o bem juridicamente protegido na norma, apesar de poder receber a sanção administrativa.
2º incidirá em infração administrativa (art. 165 CTB): quanto ao exame de sangue: havendo constatação de concentração de álcool igual ou maior que 2 (duas) decigramas por litro de sangue. Quanto ao teste do bafômetro: havendo constatação de concentração de álcool igual ou maior que 1 (um) décimo de miligrama (0,1) por litro de ar expelido pelos pulmões. Abaixo destas taxas, considera-se concentração tolerável (insignificante).
III. Pode haver prisão em flagrante?
Sim, desde que constatada a materialidade do crime do art. 306 CTB. Ou seja, se no momento da abordagem, constatado que o condutor possuía concentração mínima exigida pela Lei e que conduza de forma anormal, expondo a perigo a incolumidade de outrem. Logo, apenas poderá haver a prisão em flagrante se o condutor admitir fazer exame ou teste de alcoolemia capaz de aferir as taxas. Se o cidadão negar-se a fazer tais exames, não há como decretar-se a prisão em flagrante por ausência de materialidade, ou seja, um Laudo Pericial advindo destes testes. Mesmo a prova testemunhal, exame clínico ou de imagem (foto ou filmagem) não são capazes de comprovar a materialidade, vez que admitido limites mínimos (6,0 decigramas ou 0,3 décimos de miligramas) de concentração de álcool para conformar a tipicidade, é imprescindível a prova da taxa. Assim, v.g., o condutor que apesar de totalmente embriago e colocando em risco a incolumidade de outrem na condução do veículo, não chega a atingir estes limites legais, não há que se falar em crime. Eventual prisão, sem este laudo, constituirá crime de abuso de autoridade porque quem a praticar ou manter. Trata-se de crime afiançável.
IV. Abolitio criminis:
Observando que no CTB, antes do vigor da Lei 11.705/08, não se exigia nenhuma taxa de álcool para configuração do crime do art. 306, todos aqueles que estão sendo processados ou já foram condenados por este crime praticado antes de 20.06.2008 (data da publicação da Lei 11.705/08 e Decreto 6.488/08) e cuja concentração de álcool constatada seja inferior aos limites legais da nova lei, estão anistiados face a esta causa extinção da punibilidade que previu esta regra mais benéfica que a lei anterior (novatio legis in mellius), retroagindo, inclusive de modo a apagar as anotações por eventual condenação.
Falhou o legislador. A vinculação a taxas de álcool não foi correta. Bastaria apenas “direção sob influência de álcool ou substância psicoativa que cause dependência expondo a incolumidade de outrem a perigo”. Às vezes, o mais simples é o melhor. O direito penal, como sabido, é a ultima ratio, antes dele, outras esferas devem prevalecer. Estas falhas vão lhe custar a intenção conservadora que pretendeu, e cuja inconstitucionalidade de alguns dispositivos custará sua aplicabilidade. Feitas estas singelas conclusões, a veiculação pela mídia, inclusive pelas autoridades competentes, da promoção do medo, a sugestão e imposição do cumprimento da lei 11.705/08 a todo custo, a obrigação de submeter-se a exames e testes sob a ameaça de prisões, está totalmente equivocada. Afinal, cumpre-nos relembrar que não estamos em um Estado de Polícia, mas em um Estado de Direito.
Danilo Pereira, Advogado criminalista/SP, Associado ao IBCCRIM, Mestrando em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos, Especialista em direito penal pela Escola Paulista da Magistratura de São Paulo, Pós-graduado em direito penal econômico pelo Instituto de Direito Penal Econômico da Universidade de Coimbra/Portugal e IBCCRIM
Professor de Direito Penal da Uniesp – Faculdade do Guarujá
PEREIRA, Danilo. Bom-bons criminosos, imposição de bafômetro e prisões: o Estado de Polícia. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 18 dez. 2008.
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