Havia muita polêmica (até 3/12/08) sobre o status normativo (nível hierárquico) do Direito Internacional dos Direitos Humanos no direito interno brasileiro.
Uma primeira corrente (que deve ser lembrada) sustentava a supraconstitucionalidade do DIDH(1).
Um forte setor da doutrina (Flávia Piovesan, Antonio Cançado Trindade, Valério Mazzuoli etc.) sustenta a tese de que os tratados de direitos humanos (Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto Internacional de Direitos civis e políticos etc.) contariam com status constitucional, por força do art. 5.º, § 2.º, da CF ("Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte"). Essa tese, aliás, foi acolhida pelo Min. Celso de Mello (HC 87.585-TO).
O STF, entretanto, de acordo com sua tradicional jurisprudência, desde os anos 70, emprestava aos tratados, incluindo-se os de direitos humanos, o valor de direito ordinário (RE 80.004-SE, rel. Min. Cunha Peixoto, j. 1/6/77).
Nele sempre se consagrou a corrente paritária: tratado internacional vale tanto quanto a lei ordinária. Esse entendimento foi reiterado pelo STF mesmo após o advento da Constituição de 1988 (STF, HC 72.131-RJ, ADIn 1.480-3-DF etc.).
A EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) autoriza que eles tenham status de Emenda Constitucional, desde que seguido o procedimento contemplado no § 3.º do art. 5.º da CF (votação de três quintos, em dois turnos em cada casa legislativa).
De acordo com voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes no RE 466.343-SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 22/11/06, tais tratados contariam com status de Direito supralegal (estão acima das leis ordinárias mas abaixo da Constituição). Nesse sentido: CF da Alemanha (art. 25), Constituição francesa (art. 55) e Constituição da Grécia (art. 28).
No histórico julgamento do dia 3/12/08, preponderou no STF (Pleno) o voto do Min. Gilmar Mendes (cinco votos a quatro). Ganhou a tese da supralegalidade dos tratados. Restou afastada a tese do Min. Celso de Mello (que reconhecia valor constitucional a tais tratados).
Os tratados de direitos que vierem a ser incorporados no Brasil podem ter valor constitucional, se seguirem o parágrafo 3.º, do artigo 5.º, da CF, inserido pela Emenda Constitucional 45, que diz: "Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais".
Os tratados já vigentes no Brasil possuem valor supralegal: tese do Min. Gilmar Mendes (RE 466.343-SP), que foi reiterada no HC 90.172-SP, Segunda Turma, votação unânime, j. 5/6/07 e ratificada no histórico julgamento do dia 3/12/08.
O Direito constitucional, depois de 1988, conta com relações diferenciadas frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. A visão da supralegalidade deste último encontra amparo em vários dispositivos constitucionais (CF, art. 4.º, art. 5.º, § 2.º, e §§ 3.º e 4.º do mesmo artigo 5.º)(2).
A tese da constitucionalidade dos tratados emana de um consolidado entendimento doutrinário (Sylvia Steiner, A convenção americana, São Paulo: RT, 2000, Antonio Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, Ada Pellegrini Grinover, L. F. Gomes etc.), que já conta com várias décadas de existência no nosso país(3). Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, algumas decisões do STF (RE 80.004, HC 72.131 e 82.424, rel. Min. Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi (antes de 2006) majoritária na nossa Suprema Corte de Justiça. Ganhou reforço com a posição do Min. Celso de Mello (HC 87.585-TO), mas acabou sendo minoritária (no julgamento histórico do dia 3/12/08).
De tudo se pode inferir do julgamento do STF conclui-se o seguinte: os tratados de direitos humanos acham-se formal e hierarquicamente acima do Direito ordinário. Essa premissa (no plano formal) nos parece muito acertada.
Do que acaba de ser afirmado podemos extrair uma série de conclusões: a produção do Direito, por exemplo, agora, para além dos limites formais, conta também com novos limites materiais, dados pelos direitos humanos fundamentais contemplados na Constituição e nos Tratados de Direitos Humanos. Rompendo com as concepções clássicas do positivismo legalista, impõe-se (de outro lado) concluir que nem toda lei vigente é válida. E quando ela é válida? Somente quando conta com dupla compatibilidade vertical, ou seja, compatibilidade com o Direito Internacional dos Direitos Humanos assim como com a Constituição.
Conclusão: não basta haver consonância com apenas um deles (esse é o caso da prisão civil do depositário infiel: ela está na lei ordinária bem como na Constituição). Isso não é suficiente. A produção do texto ordinário deve agora observar dois outros ordenamentos jurídicos (dois outros filtros) superiores.
Quando incompatível com qualquer um deles, não possui validade.
Pergunta-se: por que o legislador deve se preocupar com a citada dupla compatibilidade vertical? Reitere-se: porque se a regra do Direito ordinário vier a conflitar com qualquer norma superior não terá nenhuma eficácia (ou aplicabilidade). Ou seja: é inválida.
Do velho Estado de Direito legal ou legalista (EDL) estamos evoluindo para o Estado de Direito constitucional (ECD) e internacional (transnacional). Essa é a maior e mais significativa mudança de paradigma que estamos vivenciando (no plano jurídico) neste limiar do terceiro milênio.
Não se trata, logo se percebe, de um caminho fácil. Toda mudança de paradigma é complexa, mas vale a pena percorrer esse caminho, abrindo novos horizontes ("Caminante no hay camino, el camino se hace al andar" Antonio Machado).
Notas:
(1) Nesse sentido Celso D. de Albuquerque Mello, citado por MENDES, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 654.
(2) Cf. MENDES, Gilmar Ferreira et alii, Curso de Direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 663.
(3) Para um estudo completo do assunto, v. MAZZUOLI, Valério de Oliveira, Curso de direito internacional público, São Paulo: RT, 2006, pp. 490-510; e MAZZUOLI, Valério de Oliveira, O novo § 3.º do art. 5.º da Constituição e sua eficácia, in Revista Forense, v. 378, ano 101, Rio de Janeiro, mar./abr./2005, pp. 89-109.
Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito Penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).
O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 28/12/2008.
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