segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Artigo: Réu no Irã é condenado à cegueira

Segundo noticiou a imprensa (Estado de S. Paulo, 16 de dezembro de 2008, A12), no Irã, em 2002, Ameneh Bahrami, então com 24 anos, junto com algumas amigas, coletou agasalhos para o jovem e pobre estudante universitário, Majid Movahedi. Completamente apaixonado por Ameneh, tentou Majid dela aproximar-se e, inclusive, pediu-a em casamento. A proposta não foi aceita.

Majid não desistiu. Passou a seguir Ameneh e até ameaçou suicidar-se, caso ela não o aceitasse como marido. Em outubro de 2004, quando ela atravessava um parque a caminho de casa, o pretendente bateu de leve no seu ombro e, quando ela se virou, lançou-lhe ácido sulfúrico na face. Um terceiro, querendo ajudá-la, jogou água no seu rosto e o ácido espalhou-se. Ameneh ficou cega e desfigurada em razão das queimaduras. Majid apresentou-se à Polícia duas semanas depois e foi mantido preso até o julgamento.

Todavia, na execução da sentença foi dado à vítima, por permissivo da lei islâmica, o direito de obter o castigo do agressor. E Ameneh sentenciou: “Estou na idade em que poderia me casar, portanto, peço que os olhos de certa pessoa sejam borrifados com ácido. O Tribunal acatou o pedido e determinou que 5 gotas da mesma substância química fossem colocadas em cada um dos olhos de Majid. O caso suscitou polêmica no Irã. Pessoas ligadas à defesa dos direitos humanos se opuseram ao castigo.

Para nós brasileiros a solução judicial causa perplexidade. Há entre nós um movimento sério, chamado Justiça Restaurativa, que procura aproximar a vítima e o seu agressor. Tudo com a finalidade de apaziguar o conflito, levar a vítima ao perdão e o infrator ao arrependimento. No entanto, a tentativa brasileira está muito distante da solução judicial iraniana. Esta é diferente. Aplica a Lei do Talião, “dente por dente, olho por olho”.

Em tempos de violência como o que vivemos, há muitos adeptos da pena imposta no Irã. Não seria demais supor que, se fosse feita uma enquête, os favoráveis à condenação de Majid à cegueira superariam os que votassem contra.

No entanto, esta solução não se afina com a evolução do nosso Direito. Há muito abandonamos a pena como vingança e à vítima não cabe decidir sobre qual sanção deve ser imposta. O Irã tem cultura diversa, que deve ser respeitada como tal, mas que não se afina com a nossa ordem jurídica.

Então, o que ocorreria com Majid se vivesse no Brasil e aqui praticasse o mesmo delito contra Ameneh?

Majid responderia o inquérito policial e a ação penal em liberdade, já que era um jovem estudante universitário, residia com os seus pais e não tinha antecedentes criminais. Se denunciado por infração ao artigo 129, parágrafo 2º, incs. III e IV do Código Penal, se sujeitaria a uma pena de 2 a 8 anos de reclusão. Sem ter direito à suspensão do processo, certamente acabaria sendo condenado. A prova (ao contrário de um crime contra a ordem econômica) seria fácil, resumindo-se a um laudo pericial e dois ou três depoimentos. E a pena, face à existência da agravante do artigo 61, inc. I, alíneas “a” e “d”, provavelmente seria aplicada acima do mínimo legal. Em condições normais, algo em torno de 2 anos e 6 meses de reclusão.

Apelaria em liberdade, por certo. Dependendo do Tribunal de Justiça, seu recurso poderia levar de 6 meses a 2 ou mais anos para ser julgado. Se confirmada a sentença, com um bom advogado poderia interpor recurso especial ao STJ e extraordinário ao STF. E com isto ganhar pelo menos mais 3 ou 4 anos. Se vencido em todas as instâncias, sobreviria a execução da pena.

Evidentemente, Majid teria direito a cumprir a pena em regime aberto (CP, artigo 33, parágrafo 2º, “c”) e ela seria substituída por restritiva de direitos (CP, artigo 44, I). E, no caso, ela provavelmente seria a prestação de serviços gratuitos em um hospital, na base de uma hora por dia (CP, artigo 46, parágrafos 2º e 3º). Antes de terminar o cumprimento da sanção imposta, ele poderia ser beneficiado com indulto ou outros benefícios de redução da pena (v.g. CP, artigo46, parágrafo 4º).

Ameneh, junto com sua família, a tudo assistiria inconformada. Acharia que Majid nada sofreu. E mesmo que informada sobre a substituição da pena de prisão, não aceitaria a pena restritiva de direitos substitutiva. Diria que ficou cega, teve sua vida praticamente acabada, esperou cerca de 6 anos para ver seu agressor punido e, ao final, ele se limitou a passar algumas horas por semana em um hospital ou algo semelhante.

Substituamos as posições. Se quem lê for uma jovem universitária, coloque-se na posição de Ameneh, a vítima. Se for um acadêmico de Direito, imagine-se como sendo seu irmão ou namorado. Se for mais velho ou mais velha, ponha-se no lugar de seu pai ou sua mãe.

Qual seria a reação à hipotética solução judicial brasileira, que, cumprindo de forma incensurável a legislação penal, condenou Majid e lhe deu todos os direito assegurados na lei? Será que não há um meio termo, entre o 8 (a condenação brasileira praticamente simbólica) e o 80 (a condenação à cegueira do Irã)?

A pergunta que se faz não tem resposta pronta. Seu objetivo é o de instigar a discussão. Mas vamos combinar, não vale raciocinar como em um caso teórico, uma monografia de conclusão do curso ou uma dissertação de mestrado. Tem que se pensar como se fosse a vítima ou um parente próximo. A que conclusão chegaria o leitor?


Vladimir Passos de Freitas: é desembargador aposentado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região e professor de Direito Ambiental da PUC/PR.


Revista Consultor Jurídico, 21 de dezembro de 2008

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