Impossível se calar perante o artigo publicado por Erika Bechara no Boletim IBCCRIM nº 49/11 (Aspectos Penais da Política Nacional do Meio Ambiente). As idéias defendidas no texto não se sustentam. Afinal, ao contrário do exposto, está na contramão do pensamento penal/crimonológico contemporâneo(1). Sobre isto já escrevemos(2). Agora, trazemos breves linhas para incitar o debate.
Bechara inicia seu texto afirmando: "De há muito que se conclama um tratamento penal mais rigoroso no que concerne aos delitos perpetrados contra o meio ambiente." Mas quem pede maior rigor? Os adeptos do panpenalismo (Direito Penal Máximo)?
De nossa parte, entendemos que o interesse pela tutela da natureza acabou por tornar excessiva a produção legislativa a respeito, verificando-se verdadeira inflação normativa. E, o mais alarmante, se percebe nestas várias leis a presença de dispositivos penais — que deveriam ser ultima ratio do sistema. Em conseqüência, as normas penais tornam-se inoperantes.
E o direito penal ecológico encontra-se no dilema que é, de resto, do direito penal hodierno: o combate aos novos tipos de criminalidade (que se caracterizam pela ausência de vítimas individuais, pouca visibilidade dos danos causados e um novo modus operandi — internacionalidade, profissionalidade e divisão do trabalho). Uma criminalidade diferente da tradicional e frente à qual o direito penal clássico é impotente.
Winfried Hassemer declarou a respeito que "o Direito Penal é incapaz de solucionar os modernos problemas da criminalidade e nós temos que refletir a respeito de algo que seja melhor, mais eficiente, que seja capaz de solucionar esses problemas"(3).
Modernas políticas ecológicas devem se voltar no sentido de inserir a proteção ecológica no que se convencionou chamar de direito penal administrativo, secundário ou especial. Excluindo o penal/carcerário. Deixando a preservação da natureza a cargo do direito civil, administrativo e/ou fiscal.
Outra razão para o abandono do direito penal na proteção do meio ambiente decorre da utilização de, na construção da norma penal ecológica, normas penais em branco. A justificativa utilizada pela doutrina para seu uso é de que a natureza da matéria exige o emprego desta técnica na formulação do tipo, devido à grande variabilidade na tecnologia poluente.
A vantagem apontada é de que as normas em branco propiciam uma maior estabilidade do dispositivo principal emanado através do moroso, complicado e necessário processo legislativo, possibilitando simultaneamente grande maleabilidade, visto que dependem de mero ato administrativo para se adaptarem a novas condutas.
Todavia, cremos serem maiores — e extremamente perigosas — as desvantagens proporcionadas por esta técnica. A um, devido ao fato de que ofende o princípio da legalidade (em sentido amplo e estrito(4)) dos delitos e das penas. A conseqüência é a inconstitucionalidade tanto formal quanto material do dispositivo. O segundo problema é de ofensa ao princípio constitucional da divisão dos poderes — pelo qual é reservado ao Legislativo a definição das infrações penais. Além disso, a norma penal em branco cerceia o princípio da taxatividade (legalidade estrita) porque é difusa e imprecisa.
Importante ainda abordar-se a opinião da autora a respeito dos crimes ambientais enquanto crimes de perigo. Conforme ela, "é de se observar que o vertente diploma, acompanhando a evolução do sistema jurídico-legal de tutela do ambiente, vai ao encontro do salutar princípio da prevenção, vigente mundialmente em sede ambiental, já que tipifica um crime de perigo".
Concordamos em parte; se, realmente, o crime de perigo torna possível a realização conjunta de prevenção e repressão e, logicamente, nos casos de crime ecológico, evitar o dano é essencial, não obstante, essas normas tendem a ser incompatíveis, quando o perigo for abstrato, com a principiologia e a premente necessidade de "contaminação constitucional" do penal.
Percebemos, pois, que a criminalidade ecológica insere-se dentro de um novo tipo de criminalidade — moderna, eficiente, difusa. Criminalidade contra a qual o direito penal clássico encontra-se despreparado e para a qual, portanto, busca formas de enfrentamento. Entre as quais a criação de leis específicas, utilização de normas penais em branco e adoção de tipos que conceituam-se como crimes de perigo abstrato.
O direito penal passa a aumentar penas restritivas de liberdade, admitir provas ilícitas e expor princípios garantidores. Fulmina os pressupostos de garantia dos direitos humanos de primeira geração — direitos de liberdade.
Também as correntes minimalistas e abolicionistas (verdes) vêem como objetivo da tutela do meio ambiente a preservação. Porém, desqualificam o sistema penal — visto que este demonstrou não ser capaz de prevenir a criminalidade.
Para efetuar sua política, pretendem retirar da esfera penal e substancializar na esfera civil, administrativa e/ou fiscal os desmandos contra o meio ambiente. Possibilitam, a reparação (efetiva) do dano causado e imposição de punições adequadas — hipótese impossível no direito penal de tradição germânico-romana.
O minimalismo afirma a necessidade de uma política ambiental — não penal ambiental — sendo urgente unificar a legislação pré-existente e incentivar a população a utilizar a ação popular e a ação civil pública, bem como o art. 159 do Código Civil (com auxílio, por exemplo, da responsabilidade objetiva imposta pela Lei nº 6.938/81).
Com o professor Hassemer, entendemos que tentar solucionar os problemas da nova criminalidade utilizando os elementos postos à disposição pelo direito penal é perder tempo. Conclui o mestre alemão, "não teremos êxito e o máximo que conseguiremos será destruir o direito penal ao eliminarmos seus princípios fundamentais. Retirando as garantias do direito penal eliminaremos a sua potência protetora jurídica e teremos instrumentos que não servirão para nada".
Educação ambiental, incremento da fiscalização, reparação e indenização pelos danos causados e penalidades administrativas como as trazidas pela Lei nº 6.938/81(5) se — efetivamente — aplicadas podem substituir, com mais chances de garantir a conservação da natureza, a pena restritiva de liberdade, sanção clássica — e ultrapassada — do ordenamento penal.
Notas
(1) "En un análisis global del problema, podríamos decir que en los países centrales se opone, como ultraderecha, una ideologíwa autoritária — preanuncio del 'Estado nuclear' — cuja versão penal es el brutal 'nuevo realismo criminológico' a otra ideología, ultraavanzada, que es la de los 'movimientos verdes', cuja versión penal es el abolicionismo" (Zaffaroni, E. R., Sistemas Penas y Derechos Humanos en America Latina, Buenos Aires, Depalma, 1984).
(2) Carvalho, Salo de & Rudnicki, Dani, Perspectiva Minimalista da Tutela do Meio Ambiente, Doutrina, Rio de Janeiro, nº 1, 1996, pp. 320-329. Rudnicki, Dani, Atuação das ONG's na Defesa do Meio Ambiente: Em Busca de um Novo Paradigma do Direito, Estudos Jurídicos, São Leopoldo, maio/ago., vol., 76, 1996, pp. 115-124.
(3) Hassemer, Winfried, Três Temas de Direito Penal, Porto Alegre, Fundação Escola Superior do Ministério Público, 1993.
(4) Neste sentido conferir a obra de Luigi Ferrajoli, Derecho y Razón, Madrid, Trotta, 1994.
(5) São elas: multa, perda ou restrição de incentivos e benefício fiscal concedido pelo Poder Público, suspensão de atividade e redução de atividade.
Dani Rudnicki
Advogado, jornalista e conselheiro do Movimento de Justiça e Direitos Humanos/RS.
Salo de Carvalho
Advogado, professor de Direito Penal, Criminologia e Políticas Criminais nos cursos de graduação e pós-graduação da Unisinos/RS e mestre em Direito Público pela UFSC.
RUDNICKI, Dani, CARVALHO, Salo de. Política de tutela ambiental: Proposta de debate ao texto de Bechara. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.53, p. 15, abril 1997.
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