terça-feira, 1 de julho de 2008

Artigo: Natureza tributária do crime de descaminho

O elenco dos crimes contra a ordem tributária não se esgota no rol da Lei nº 8.137/90, sendo possível encontrar alguns tipos penais tributários também no Código Penal, que possuem em comum com os da lei especial mencionada, dentre outros caracteres, o bem jurídico tutelado (os Cofres Públicos e suas formas de arrecadação), o sujeito passivo (Administração Pública) e, na maioria das hipóteses, a circunstância de ser a fraude meio para a consecução de tais delitos. Tal assertiva importa no reconhecimento obrigatório de que as diversas exigências para configuração dos crimes previstos na Lei nº 8.137/90 também devem se verificar para a conformação dos demais delitos, que possuam a mesma natureza penal tributária que os da referida lei. É o que se vai, neste breve artigo, tentar demonstrar.

Numa perspectiva histórica, o artigo 334 do Código Penal, que define o contrabando e o descaminho, sofreu uma alteração desde sua edição, na década de 1940, pela Lei nº 4.729/65, que lhe incorporou algumas figuras típicas. Esta lei, por seu artigo 1º, introduziu, com esse nomem juris, no nosso sistema jurídico penal, os chamados crimes de sonegação fiscal. Indicando identidade inequívoca, contrabando, descaminho e crimes de sonegação fiscal foram tratados na mesma lei, no mesmo momento legislativo, num diploma que pretendia, em termos de prevenção geral, coibir a ausência ou diminuição de recolhimento de tributos devidos ao Erário.

Registre-se que a matéria de extinção de punibilidade pelo pagamento do tributo devido, para crimes definidos na referida lei e para o artigo 334 do CP, veio regulada pelo Decreto-lei 157/67, que levou, inclusive, nossa Suprema Corte à edição da Súmula nº 560 — “a extinção da punibilidade, pelo pagamento do tributo devido, estendendo-se ao crime de contrabando ou descaminho, por força do art. 18, § 2º, do Decreto-lei 157/67” —, em que fica clara a classificação jurídica do crime de descaminho na categoria de crime tributário. Há muito, aliás, o Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, com apoio em parecer da Procuradoria-Geral da República, assentou que “é certo que todo descaminho importa em sonegação fiscal, mas nem toda sonegação fiscal é descaminho”.(1)

Consoante demonstra a melhor doutrina, em nada modifica a natureza de crime fiscal o fato de estar o crime de descaminho inserido, em nosso Código Penal, no capítulo dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública,(2) pois, à moda dos crimes contra a ordem tributária, no descaminho, “o sujeito passivo é o Estado, principal interessado na regularidade da importação e exportação de mercadoria e na cobrança dos direitos e impostos delas decorrentes”,(3) e o objeto jurídico tutelado é “fundamentalmente a salvaguarda dos interesses do erário público, seriamente prejudicado pela evasão de renda que resulta do descaminho”.(4) O crime de descaminho “pode ser qualificado como ‘crimes fiscais’ porque o objetivo do Estado é reprimir, pela via criminal, condutas que impliquem deixar de recolher aos cofres públicos os tributos devidos com a prática de algum ato jurídico”,(5) sendo certo que “a tutela penal da arrecadação tributária (ou do crédito tributário) não constitui tema novo entre nós. Tanto assim é que o Código Penal, instituído pelo Decreto-lei nº 2.848, de 7.12.1940, já previa diversos tipos penais em que a objetividade jurídica era justamente aquela. Exemplo disso está no crime de descaminho (art. 334), vigente até hoje”.(6)

Ora, o tipo do art. 334 do CP é espécie de crime tributário, no qual se verificam todas as características do referido gênero, o que leva à conclusão de que é obrigatório reconhecer, como condição para a sua configuração, a presença de todos os requisitos previstos para a conformação do delito de sonegação, dentre eles, a constituição firme do crédito tributário, esgotadas todas as fases do procedimento administrativo fiscal,(7) já que o elemento essencial dos crimes contra a ordem tributária é a supressão ou redução do tributo.

Repita-se: se com relação a crime de sonegação fiscal, que é espécie do gênero dos crimes contra a ordem tributária, é necessário, para certificar a materialidade do crime, a confirmação do débito tributário pela autoridade fiscal, não há razão para se dispensar tratamento diferente ao crime de descaminho, vez que, como já explicitado anteriormente, trata este também de delito fiscal, que possui em sua descrição típica a elementar relacionada à supressão ou diminuição de tributo.

A reforçar a tese da exigência de definição firme sobre a certeza do débito fiscal e de seu valor, destaque-se que os nossos próprios tribunais têm apontado para a necessidade do exaurimento da via administrativa antes do início da ação penal, nos casos de crime de descaminho, ao admitirem a aplicação do princípio da insignificância nesse tipo de delito, tendo em conta o pequeno valor do imposto incidente:(8) se o princípio da insignificância exclui a tipicidade do fato imputado, e, no caso do descaminho, o valor do tributo devido é critério definidor de adequação material ao tipo, antes de falar-se em tipicidade, quando se trata do art. 334 do Código Penal, mister que se defina, à exemplo dos crimes trazidos pela Lei nº 8.137, de forma definitiva, se o imposto é devido e quanto se deve, o que só se dá, de modo conclusivo, com o encerramento da fase administrativa.

Esta parece ser a tendência de nossos tribunais: o E. Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, já assentou que “não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral”(9) e que “(...) carece de justa causa a ação penal quanto aos crimes contra a ordem tributária ou de descaminho com ilusão de tributo, caso a denúncia não esteja lastreada em decisão administrativa conclusiva concernente à investigação de sonegação fiscal”.(10)

Não resta dúvida de que, delito de natureza fiscal que é, para a conformação do crime definido no art. 334 do Código Penal há de se ter encerrada a fase administrativa de conformação do débito fiscal. Sem estar esta fase vencida, não se pode falar em crime de descaminho ou contrabando e, portanto, a ação penal instaurada açodadamente carece de justa causa.

Notas

(1) Cf. voto do ministro Adaucto Cardoso, no RHC 48.271-DF, j. em 23.9.1970.

(2) Rosenthal, Sergio. A Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo no Descaminho, Nacional, 1999, p. 17.

(3) Mirabete, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal, 14ª ed., Atlas, vol. 3, p. 379.

(4) Franco, Alberto Silva. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 5ª ed., RT, vol.2, p. 4035.

(5) Habeas corpus impetrado pelo procurador da República João Gilberto Gonçalves Filho, perante a Justiça Federal de Taubaté, visando ao reconhecimento da atipicidade das atividades de “sacoleiros”. Disponível no endereço eletrônico: http://conjur.estadao. com.br/static/text/36183,1.

(6) Cf. Delmanto, Roberto; Delmanto Júnior, Roberto; Delmanto, Fábio M. de Almeida. Leis Penais Especiais Comentadas, Renovar, 2006, p. 241.

(7) HC nº 89983/PR, 1ª T., rel. min. Carmem Lúcia, j. em 6.3.2007, p. no DJ em 30.3.2007, p. 76.

(8) REsp. nº 828469/RS, 5ª T., rel. min. Laurita Vaz, j. em 27.2.2007, p. no DJ em 26.3.2007, p. 279.

(9) HC nº 48805/SP, 6ª T., rel. min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura, j. em 26.6.2007.

(10) RHC nº 19.174/RJ, 6ª T., rel. min. Jane Silva, j. em 1º.2.2008.


Por Adriana Pazini de Barros, Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), cursando pós-graduação em Direito Penal Econômico na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo – GVLaw e advogada criminal.


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

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