“(...) Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem (...)”
Belchior, Como Nossos Pais
1. Direito Processual Penal customizado e Justiça criminal interrompida
Um dos sinais do Direito Processual Penal contemporâneo, ao menos na aplicação prática pelos profissionais, é a sua customização: manifestações da defesa e do Ministério Público produzidas em série, mutirão de audiências, julgamentos e decisões que muito pouco ou nada exploram o caso penal como um evento singular, tratando-o como mera premissa de um silogismo cujo resultado já se antecipava desde o início. O processo, neste ambiente de metas e de congratulações por produtividade, passa a ser concebido como um mero ritual de passagem, quando não como um “problema”[1].
Tal cenário, costumeiramente explicado a partir dos — preocupantes — índices de judicialização no Brasil, que reclamam, sim, um investimento considerável em recursos humanos para todas as carreiras, decorre também de uma abdicação de valores como sensibilidade, humanismo e empatia por parte dos operadores do Direito, o que torna a vida acelerada e os momentos de interação cada vez mais protocolares, sem significado, projetando uma Justiça criminal interrompida.
Apresento neste texto algumas premissas para a atuação da Defensoria Pública nas audiências de custódia, notadamente na estratégia de prevenção e repressão da tortura[2].
2. A audiência de custódia ainda não dispensa apresentações
Prevista em tratados internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil voluntariamente aderiu, mais especificamente na CADH (artigo 7.5) e no PIDCP (artigo 9.3), a audiência de custódia, que nada mais é do que o direito de todo preso ser apresentado à presença de um juiz sem demora, está — finalmente — na pauta nacional do Poder Legislativo, com o PLS 554/2011, recentemente aprovado no Senado, e também na agenda nacional do Poder Judiciário, seja com o Projeto Audiência de Custódia do CNJ, que já conta com a adesão de 20 estados[3], seja no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que recentemente proferiu duas decisões em controle concentrado de constitucionalidade sobre a matéria[4].
O instituto, porém, ainda requer apresentações e, sobretudo, reflexões, notadamente para se superar a ideia equivocada de que se trata de uma invenção dos juristas para contribuir com a impunidade e com a liberdade descontrolada de criminosos. A audiência de custódia pode (e deve), sim, contribuir para o combate do encarceramento em massa, mas não está entre os seus propósitos dificultar ou proibir a decretação ou a manutenção da prisão quando necessário.
3. O defensor público e a audiência de custódia: da orientação do preso à prevenção e repressão da tortura policial
O primeiro ponto a ser observado pelo defensor público ocorre previamente à realização da audiência de custódia, quando deve orientar o cidadão preso, em ambiente reservado, sem o acompanhamento de policiais, sobre a finalidade do ato. Tratando-se de uma garantia encontrada no artigo 7.5 da Convenção Americana, que diz respeito exclusivamente à proteção da liberdade pessoal, a audiência de custódia não pode consistir num interrogatório antecipado.
O segundo ponto a ser observado pelo defensor público, ainda nessa fase de orientação prévia do preso, é questioná-lo se ele foi vítima de algum tipo de agressão por parte dos policiais. De tão frequente, banalizada e impune, a pequena ou média violência policial passou a ser assimilada pelos presos (e pela sociedade em geral) como um procedimento padrão, algo quase inevitável. Aqui, o vocabulário facilitado e a postura do defensor público são muito importantes, e isso porque deve se valer de expressões simples e gestos que demonstrem confiança para conversar com o preso sobre esse problema. Recomenda-se, portanto, que indague “Foi vítima de algum tipo de agressão?” em vez de “Foi vítima de tortura?”, por exemplo, já que o termo tortura designa uma violência mais acentuada, como se a “pequena violência” não importasse.
O terceiro ponto a ser observado pelo defensor público, no caso de o cidadão afirmar ter sido vítima de agressão, é requerer ao juiz que a audiência de custódia seja realizada sem a presença dos policiais responsáveis pela condução do preso, fator que pode contribuir para a diminuição do receio de relatar o caso, agindo diretamente, portanto, contra uma das principais causas da impunidade da tortura no Brasil: a subnotificação. Para garantir a segurança do ambiente, se necessário, o juiz pode requisitar a segurança do próprio fórum.
O quarto ponto a ser observado pelo defensor público, já durante a audiência de custódia, em que o preso eventualmente relatar ter sido vítima de agressão, é se opor a qualquer manifestação do Ministério Público ou do juiz que advirta o cidadão sobre a possibilidade de uma mentira sobre o fato lhe causar um processo por crime de denunciação caluniosa (artigo 339 do CP), expediente — comumente utilizado — que apenas contribui para o problema da subnotificação. Nessa hipótese, deve o defensor público pedir para que o procedimento equivocado seja constado na ata da audiência, para posterior adoção das medidas cabíveis.
Finalmente, após a audiência de custódia, tendo havido o relato de agressão pelo preso, e a prisão sido mantida, deve o defensor público incluir esse cidadão num cadastro interno específico de pessoas em estado de vulnerabilidade, procedendo não somente com visitas regulares na unidade prisional, sem prévio agendamento, mas também com requisições de laudos e perícias médicas periódicas sobre a integridade física e psicológica do preso.
A audiência de custódia pode significar uma revolução no sistema de Justiça criminal, uma ruptura com um passado de invisibilidade do preso, mas pode, também, se não conduzida com responsabilidade, ser apenas mais um expediente, em meio a tantos outros, a confirmar a célebre frase do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
[1] Cf. MORO, Sérgio; BOCHENEK, Antônio Cesar. O problema é o processo. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-problema-e-o-processo/. Acessado no dia 28/08/2015.
[2] O tema será aprofundado na 2ª edição do meu livro Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro(http://emporiododireito.com.br/audiencia-de-custodia/), prevista para o primeiro semestre de 2016.
[3] Cf. Justiça Federal adere ao projeto Audiência de Custódia do CNJ nesta quarta, em que é ressaltado: “Lançado pelo CNJ em fevereiro e em execução, até o momento, em 20 estados, o projeto busca garantir os direitos dos presos (...)”. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/80488-justica-federal-adere-ao-projeto-audiencia-de-custodia-do-cnj-nesta-quarta. Acessado no dia 28/09/2015.
[4] Cf. ADI 5240, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 20/08/2015; e ADPF 347 MC, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015.
Caio Paiva é defensor público federal, especialista em ciências criminais e professor do curso CEI. É autor do livro "Audiência de Custódia e o Processo Penal Brasileiro" (2015).
Revista Consultor Jurídico, 29 de setembro de 2015.