Há 25 anos, no dia 11 de julho de 84, era promulgada a Lei de Execução Penal (Lei 7.210). Uma lei que significou um sopro de esperança para reverter a caótica situação penitenciária enfrentada até então.
A LEP (assim como é chamada) foi elaborada por juristas do mais alto nível, sobretudo humanístico, com sensibilidade e crença no potencial de recuperação do ser humano, desde que tratado com dignidade no cárcere.
Um de seus maiores avanços foi o de trazer o juiz de direito para dentro do processo de execução da pena, cabendo a ele, respeitado o devido processo legal e o contraditório, decidir sobre os incidentes da execução, isto é, sobre a progressão ou regressão do regime de pena, os excessos e os desvios eventualmente verificados, o desconto de um dia da pena para cada três dias trabalhados, o livramento condicional etc.
Isto com a consciência de que a pena deve ser permanentemente individualizada, levando-se em conta o comportamento de cada condenado, o seu trabalho, a sua higiene e disciplina, enfim, o seu esforço em se adequar às regras, sendo, por isso, premiado com a progressão da pena, com elogios e algumas regalias, estimulando o bom comportamento. Igualmente, se não trabalhar, não tiver disciplina e cometer faltas, não obterá a progressão da pena, podendo, inclusive, regredir para regime mais severo.
É verdade que a lei mostrou-se, em alguns pontos, equivocada, como na benevolência excessiva ao prever a progressão com o cumprimento de apenas um sexto da pena. Os acertos, porém, foram expressivos, sendo uma das leis, ouso afirmar, mais modernas do mundo.
Com exceção do inconstitucional Regime Disciplinar Diferenciado, criado recentemente, ao lermos a LEP temos a impressão de que estamos em um País respeitador dos direitos humanos.
Surge, então, o desconcertante paradoxo: como pode uma lei tão humanista defrontar-se com uma realidade carcerária medieval?
Sequer o mínimo é observado. Trata-se do seu artigo 88, que determina serem os condenados alojados em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório, dotada de ambiente salubre pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana, com área mínima de seis metros quadrados.
A resposta simplista é a de que a lei, embora vigente, não vem sendo devidamente aplicada por falta de recursos e de estrutura: afinal, se não temos dinheiro nem para ajudar as pessoas de bem, não haveria como priorizar aqueles que são considerados a escória da sociedade.
Porém, o que está por detrás dessa constatação é um fenômeno preocupante, que expõe a fragilidade do Estado de Direito brasileiro, ficando sujeito a reprimendas de Cortes Internacionais de Direitos Humanos.
Fenômeno, este, que decorre do absurdo cultural de indagarmos sempre que editada uma nova lei: será que ela “vai pegar”?
Até onde precisaremos chegar para a sociedade acordar e perceber que o descumprimento da LEP está intimamente relacionado com o nascimento de organizações criminosas dentro do sistema penitenciário e com o alarmante aumento da criminalidade, com o número de latrocínios em São Paulo crescendo 80% no último trimestre, como noticiado pela Folha de São Paulo (Cotidiano, 4.7.09).
Depois de todo o dispêndio de recursos públicos e humanos para se descobrir a autoria de um crime, processar a pessoa acusada, angariar provas suficientes para condená-la, até se chegar ao trânsito em julgado, a execução penal deveria ser vista como o ápice de todo o sistema punitivo, visando devolver ao convívio social uma pessoa melhor.
Tenho convicção, a propósito, que as regras da execução penal devem corporificar um verdadeiro Direito de Execução Penal, ao lado do Direito Penal e do Direito Processual Penal, e não simplesmente uma das modalidades de ação previstas no Direito Processual (classicamente, na esfera cível, ações de conhecimento, cautelar e de execução).
Na execução penal, tudo é diferente. Ao se executar o comando de uma condenação transitada em julgado, há permanente individualização e mutação desse comando, alterando-se a quantidade (com a remição e a unificação de penas) e a intensidade da punição aplicada (com a progressão e o livramento condicional). Afinal, estamos lidando com um ser humano, que também muda, ou ao menos deve ter a chance de mudar. Poderíamos, inclusive, afirmar: o Direito Processual Penal volta-se sempre ao passado, buscando-se a verdade para reconstruir um episódio criminoso; o Direito Penal mira-se no passado (condena-se alguém pelo fato criminoso que cometeu) e no futuro (a pena necessariamente deve ser vista como prevenção especial, por imperativo ético); já o Direito de Execução Penal dirige-se, única e exclusivamente, para o futuro (sendo o seu fundamento a ressocialização do condenado, reafirmando-lhe a necessidade de respeitar valores, para que seja reinserido no seio social como uma pessoa melhor, ou ao menos mais respeitosa com os direitos do próximo; daí a relevância de seu comportamento no cumprimento da pena).
Na prática, e salvo honrosas exceções, a impressão que temos é a de que juízes e Tribunais, com a simples prolação de uma sentença ou acórdão condenatório, já entendem como cumprido o seu dever, tendo a “justiça sido feita”, sendo a execução penal algo de importância secundária, um mero exaurimento da condenação, sem maior importância. Ledo engano.
Afinal, de que adianta todo o processo penal para, depois, jogar-se o condenado em uma penitenciária dominada por facções criminosas, em que os recém- chegados não tem outra escolha senão a de se filiar a uma delas, passando ele a ser mais um “soldado” do crime, sob pena de represálias ?
Talvez a maior lição que a LEP nos tenha deixado nesse um quarto de século é a de que não bastam boas leis para mudar uma realidade vergonhosa que teima em persistir desde o Brasil Colônia; mais do que isso, é preciso que a sociedade se conscientize da sua importância, para a sua própria sobrevivência.
Quem viver verá!
Roberto Delmanto Junior
Mestre e doutor em Direito Processual Penal pela USP.
Advogado criminalista
DELMANTO JÚNIOR, Roberto. 25 anos de lei de execução penal. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 201, p. 6-7, ago. 2009.
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