A suspensão condicional do processo penal, nos termos do artigo 89, caput, da Lei Federal nº 9.099/95, tem como pressuposto que "o acusado não esteja sendo processado … por outro crime". Este requisito objetivo tem dado margem a questionamentos, notadamente quanto a sua eventual constitucionalidade.
Luiz Flávio Gomes sustentou, a propósito, que neste particular o artigo 89 teria afrontado o princípio constitucional da presunção de inocência. Afirmou: "Estando o processo em curso o acusado é reputado inocente. Logo, o legislador não pode tratá-lo como se condenado fosse" (Suspensão Condicional do Processo Penal, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 159). Suas ponderações receberam o aval de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes (Juizados Especiais Criminais, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 214).
No mesmo sentido, Maurício Antonio Ribeiro Lopes entende que " para o impedimento à obtenção da suspensão condicional do processo, no plano objetivo, é necessário que exista condenação por outro crime com sentença transitada em julgado" (Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 391).
Com a devida vênia, ouso discordar dessas proposições, pois não vejo onde a vedação à suspensão condicional do processo aflige a presunção de inocência.
A Constituição Federal, ao consagrar a presunção de inocência entre os direitos e garantias individuais, vai além, desdobrando o princípio e, em sua homenagem, firmando outros, em especial o monopólio da jurisdição e o devido processo legal. É que o legislador constituinte, também nesta área, teve intensa desconfiança em relação ao Estado e seus agentes, impondo-lhes seguissem caminhos rígidos para a persecução penal.
Ninguém negará que assiste ao Estado o direito subjetivo de exercer o jus puniendi, através da ação penal, exercitando seu direito, ou seja, pleiteando a apuração de fatos que, verdadeiros, ensejarão à punição do responsável, por meio do processo penal, neminem laedet. Durante todo o processo, até ao trânsito em julgado, o investigado é considerado inocente, incumbindo ao titular do direito de ação, como autor que é, o ônus processual de demonstrar o fato constitutivo de seu direito de punir, que abrange a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade. Veja-se: o réu não é apenas presumido inocente; é tratado comum inocente. Nem por isso, entretanto, pode opor objeção ao regular curso do processo penal.
Embora análoga, a suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei nº 9.099/95, não se deve confundir com a suspensão condicional da pena, consoante prevê o artigo 77 do Código Pena. As hipóteses de aplicação, os motivos que as orientam e suas conseqüências – concedidas ou negadas – as distinguem por completo.
Com efeito! O sursis se presta a sustar alguns dos efeitos da decisão condenatória definitiva, ou seja, pressupõe o término da atividade jurisdicional de persecução. E mais, se revogado for, ao condenado se imporá prisão, ainda que em regime brando. Ao contrário, a suspensão do processo impede a continuidade da persecutio criminis. Em sendo revogada, o acusado – ainda presumido inocente – verá retomar curso o efeito, com ampla possibilidade de defesa. Veja-se, sobre este particular, a lição de Damásio Evangelista de Jesus (Lei dos Juizados Especiais Anotada, Saraiva, São Paulo, 1995, pp. 89/90).
É natural se exija mais para a concessão ou a revogação do sursis – o trânsito em julgado de sentença penal condenatória por crime – do que se exige para permitir ou manutenir o benefício da lei neófita.
Acrescento, ainda, que o entendimento esposado pelos ilustres doutrinadores não se coaduna com a interpretação conjunta do caput do artigo 89, com seu § 3º. Ali se lê : "A suspensão será revogada se, no curso do prazo, o beneficiário vier a ser processado por outro crime…"
Esta hipótese é causa de revogação obrigatória da suspensão, consoante entendem Marino Pazzaglini Filho e outros (Juizado Especiais Criminais, Atlas, São Paulo, 1995, p. 99). Lucas Pimentel de Oliveira (Juizados Especiais Criminais, Edipro, São Paulo, 1995, p.74) e Paulo Lúcio Nogueira (Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Saraiva, São Paulo, 1996, p. 101).
No mesmo sentido escreveu Damásio (ob. cit., p. 104): "Beneficiário que, durante o período de prova, vem a ser processado por outro crime (…). A revogação é obrigatória." Ressalvou, todavia, que "esse fato deveria consistir causa de prorrogação do período de prova…" Evidentemente, quando disse "deveria consistir", quis referir-se a nova disposição legal.
A prevalecer o entendimento de que é possível conceder o benefício a quem tenha contra si processo em andamento, estaria o § 3º do artigo 89 fadado a tornar-se letra morta. A lei não tem palavras inúteis.
Prosseguindo, e apenas para argumentar, suponha-se que alguém pratique um furto simples e, na ocasião azada, seja determinada a suspensão do processo. Depois, pratica outros dois, três, quatro delitos que permitam, em tese, a suspensão. Será, sim, presumido inocente no curso de todos os processos. Mas seria razoável que em todas as vezes seja o curso da ação sobrestado? Em caso positivo, mantida a suspensão, quando se daria a condenação definitiva a ensejar a revogação? Seria preciso esperar que pratique uma outra infração, cuja pena inviabilize a suspensão? E o direito do Estado que, na sede da persecução penal, age em nome da sociedade, contra o possível criminoso?!
Dispôs a lei que seria impossível a suspensão condicional do processo quando o réu estivesse respondendo a processo penal por crime, e também impôs sua obrigatória revogação caso viesse a ser processado durante o período de prova. Não quis tratá-lo por culpado. Também não quis consagrar a impunidade.
E tampouco pretendeu atribuir tarefa ao magistrado, como já se disse alhures: "A existência de outro processo em curso, destarte, levará o juiz a um exame mais aprofundado das chamadas condições judiciais (culpabilidade, conduta social, personalidade, motivos, etc.), mas por si só não pode ser obstáculo à suspensão do processo. Em virtude de um juízo negativo (fundamentado) das condições judiciais torna-se possível o indeferimento da mencionada via alternativa. Tal não poderá ocorrer, no entanto, com a invocação 'seca' da existência de processo em curso" (Luiz Flávio, ob. e p. cit; Ada Pellegrini et allia, ob. e p. cit.).
A exegese é imperfeita, concessa venia.
A um, porque a lei faz melhor opção quando escolhe critério objetivo para a concessão ou denegação do benefício que estatui.
A dois, porque os aspectos ligados à culpabilidade, os motivos, etc., ou seja, ao sujeito, são condições judiciais, a serem avaliadas cumulativamente com aquelas de caráter objetivo.
A três, porque o exame judicial é sempre cuidadoso, e invocação da lei, como fundamento de decidir, jamais se pode chamar, em tom depreciativo, de "seca". Quando o pretor decide, é porque já dissecou a norma e se aprofundou, quantum suficcit, nos fatos relevantes.
Concluo, sub censura, ser inteiramente adequada às normas e princípios constitucionais a exigência de que o réu, para ver suspenso o curso do processo penal, não tenha contra si instaurada outra ação por crime. Também não é contrária à Magna Carta a causa obrigatória de revogação, na hipótese de vir o acusado a ser processado por outro crime.
Cyrilo Luciano Gomes Junior, Promotor de justiça.
GOMES JUNIOR, Cyrilo Luciano. Suspensäo condicional do processo e presunção de inocência: constitucionalidade do requisito objetivo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.46, p. 04, set. 1996.
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