quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Artigo: Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais

Divergindo da doutrina majoritária, entendemos que a Lei n° 9.099/95 não mitigou o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública condenatória.

Não aceitamos dizer que nos Juizados Especiais Criminais vigora o princípio da discricionariedade regulada ou controlada.

Na verdade, o legislador não deu ao Ministério Público a possibilidade de requerer o arquivamento do termo circunstanciado e das peças de informação que o instruírem quando presentes todas as condições para o exercício da ação penal. Vale dizer, o sistema de arquivamento continua sendo regido pelo Código de Processo Penal, descabendo ao Ministério Público postular o arquivamento do termo circunstanciado. Aqui também não tem o Parquet discricionariedade que lhe permita manifestar ou não em juízo a pretensão punitiva estatal.

Por outro lado, estabelecemos uma premissa para compreensão do sistema interpretativo proposto: quando o Ministério Público apresenta em juízo a proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, prevista no art. 76 da Lei n° 9.099/95, está ele exercendo a ação penal, pois deverá, ainda que de maneira informal e oral - como a de denúncia - fazer uma imputação ao autor de fato e pedir a aplicação de uma pena, embora esta aplicação imediata fique na dependência do assentimento de réu. Em outras palavras, o promotor de justiça terá que, oralmente como na denúncia, descrever e atribuir ao autor do fato uma conduta típica, ilícita e culpável, individualizando-a no tempo (prescrição) e no espaço (competência do foro). Deverá, outrossim, a nível de tipicidade, demonstrar que tal ação ou omissão caracteriza uma infração de menor potencial ofensivo (competência de juízo), segundo definição legal (art. 61). Vale dizer, na proposta se encontra embutida uma acusação penal (imputação mais pedido de aplicação de pena).

Entendendo o fenômeno processual desta forma, fica fácil compreender como o juiz está autorizado a aplicar a pena aceita pelo réu. Não há violação do princípio nulla poena sine judicio. Existe ação penal, jurisdição e processo. Este é o devido processo legal.

Destarte, presentes os requisitos do § 2° do art. 76, poderá o Ministério Público exercer a ação penal de dois modos: formulando a proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, após atribuir ao réu a autoria ou participação de uma determinada infração penal, ou apresentar denúncia oral. Nas duas hipóteses, estará o Ministério Público manifestando em juízo uma pretensão punitiva estatal. Assim, a discricionariedade que existe está restrita apenas entre exercer um tipo de ação penal ou o outro. Faltando um daqueles requisitos, não cabe a proposta e o Ministério Público terá o dever de oferecer a denúncia, tendo em vista o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal.

Pelo exposto, fica claro porque o juiz é vedado fazer a proposta da aplicação de pena acima mencionada. Dentro do sistema processual acusatório, não é dado ao juiz provocar a sua própria jurisdição. Não pode o juiz acusar o autor do fato de Ter praticado uma determinada infração de menor potencial ofensivo e sugerir-lhe a aplicação de uma pena. A relação processual assim instaurada teria feição meramente linear, própria do sistema inquisitório. Teríamos um processo penal sem a presença do autor da ação penal que, pela Constituição da República é de exclusividade do Ministério Público. Também descabe dizer que o autor do fato tem direito subjetivo de ser acusado da prática de uma infração de menor potencial ofensivo...

Em verdade, o sistema que se depreende da referida Lei n° 9.099/95 não rompe o tradicional princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública condenatória, mas apenas outorga ao Ministério Público a faculdade jurídica de exercer uma espécie de ação. Somente tem pertinência aplicar-se a regra do art. 28 do Código de Processo Penal quando o promotor de justiça, presente todas as condições da ação penal, requer o arquivamento do termo circunstanciado, funcionando aí o juiz como fiscal do aludido princípio. Entretanto, se a ação penal é exercitada, seja pela proposta de transação, seja pela denúncia oral, cabe ao magistrado tão-somente fazer o juízo de admissibilidade daquela ação que lhe é apresentada.

Por derradeiro, resta dizer algumas poucas palavras sobre a sistemática da suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da Lei n° 9.099/95, instituto que não é peculiar aos Juizados Especiais Criminais.

Aqui, forçoso é reconhecer que houve uma clara mitigação ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública condenatória, previsto no art. 42 do Código de Processo Penal. Oferecida a denúncia, pela sistemática do código, não tem o Ministério Público disponibilidade do processo; a pretensão punitiva foi deduzida e será apreciada pelo juiz, ainda que o próprio Ministério Público opine pela absolvição do réu, consoante autorizado pelo art. 385 do Código de Processo Penal.

Presentes os pressupostos processuais e as condições da ação, o pedido de condenação vai ser julgado, entrando-se no mérito do processo. Entretanto, se o crime imputado ao réu tiver uma pena mínima cominada igual ou inferior a um ano, presentes os requisitos do art. 89 da lei especial, tem o Ministério Público a faculdade jurídica - a lei diz poderá propor - de sugerir ao réu a suspensão da relação processual mediante determinadas condições. Cumpridas tais condições no prazo fixado entre dois a quatro anos, estará extinta e punibilidade do acusado. Deste forma, o Ministério Público dispôs da res deducta in judicio, o que lhe era expressamente vedado anteriormente para todas as infrações penais.

Trabalhando dentro desta ótica, pode-se melhor entender porque o juiz não pode fazer, de ofício, a proposta de suspensão do processo contra a vontade do titular da ação penal pública; primeiro, porque estaria dispondo do que não tem: o direito de ação; segundo, porque estaria impedindo que o titular de direito de ação - que tem natureza constitucional - continue a exercê-lo; terceiro, porque estaria excluindo o Ministério Público da própria relação processual penal, destruindo o actum trium personarum, próprio do sistema acusatório. Outrossim, afasta-se a idéia de que a disponibilidade limitada da ação penal pública condenatória possa ser entendida como um direito subjetivo do réu. Cuida-se de discricionariedade, contra a qual nos insurgimos, mas outorgada expressamente pelo legislador ao titular do direito de ação. Note-se que, na ação penal privada exclusiva ou principal, onde o Código de Processo Penal deu discricionariedade de o ofendido conceder ou não perdão ao querelado, que também depende de aceitação, jamais se sustentou que tal perdão seria um direito subjetivo do acusado.

É preciso interpretar a Lei n° 9.099/95 dentro dos postulados dos princípios que informar nosso sistema processual acusatório e não como desejaríamos que o legislador tivesse dito. Na espécie, as diversas interpretações açodadas e simpáticas não contribuem para boa aplicação da lei, cujo espírito é corretíssimo e salutarmente vanguardista. O caos, que se está criando na doutrina, já com reflexos na jurisprudência, em nada contribui para concretizar as mudanças que devem ser sempre desejadas, mas pode levar ao desprestígio esta importante experiência em nosso País.


Afrânio Silva Jardim, Membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, professor adjunto de Direito Processual Penal nas Faculdades de Direito da UERJ e Cândido Mendes, professor dos cursos de mestrado e doutorado da Universidade Gama Filho, mestre e livro-docente em Direito Processual.

JARDIM, Afrânio Silva. Os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade nos juizados especiais criminais. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.48, p. 04, nov. 1996.

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