segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Artigo: Estupro simples é crime hediondo?

Que o estupro e o atentado violento ao pudor, na forma qualificada (quando resulta morte ou lesão corporal grave), são crimes hediondos, ninguém discute.

Que tais delitos, na forma presumida (ato sexual contra menor de catorze anos etc. CP, art. 224), não são hediondos, ninguém mais questiona (porque a lei dos crimes hediondos não faz referência ao art. 224).

Polêmica, entretanto, sempre existiu em relação à forma simples (CP, arts. 213 e 214, caput).

A divergência, aliás, instalou-se inclusive dentro do próprio STF: até o ano 2001 a 1.ª Turma, majoritariamente, entendia que sim; 2.ª Turma pensava o contrário.

Na doutrina predominava o primeiro posicionamento (de que são crimes hediondos). Substancialmente não há dúvida que o crime de estupro, com violência real, é crime hediondo (por ofender bens jurídicos importantíssimos: liberdade sexual, integridade, dignidade e intimidade e por se tratar, em grande parte, de violência de gênero). Mas do ponto de vista formal (princípio da legalidade estrita e suas garantias) tinha razão a 2.ª Turma do Colendo STF.

Vejamos: por força da Lei 8.930/1994 a redação (da Lei 8.072/1990) passou a ser a seguinte: São crimes hediondos: (...) V - estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único); VI - atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único).

Antes a lei dizia: "art. 213, caput" e "art. 214, caput". Foi excluída (em 1994) a palavra caput. Em 17.12.01, de qualquer modo, a questão foi levada ao Plenário do STF: por 7 votos contra 4 prevaleceu o entendimento de que tais delitos, na forma simples, também são hediondos (STF, HC 80.479; veja também STF, HC 81.288).

Do ponto de vista lingüístico faltou uma vírgula depois dos artigos 213 e 214. Se o legislador tivesse escrito "art. 213, e sua combinação com o art. 223" claro que as duas situações teriam sido contempladas (ou seja: o art. 213 na forma simples e sua combinação com o art. 223, que cuida da forma qualificada pelo resultado morte ou pela lesão corporal grave). Não havendo a precitada vírgula, resulta evidente (gramaticalmente) que só a situação do 213 combinada com o 223 é que retrata crime hediondo.

O relator do acórdão (no HC 80.479), Ministro Nelson Jobim, mudou seu posicionamento. Ele disse que anteriormente havia feito leitura isolada da lei e não interpretou corretamente o significado da conjunção "e". Com a devida vênia, sua anterior interpretação era (gramaticalmente) correta. A segunda, embora substancialmente certa, é que incorreu em erro formal.

Fazendo-se abstração dessa questão formal, bem sublinhou a Min. Ellen Gracie que o delito de estupro (ou atentado violento ao pudor) é hediondo, mesmo quando não haja violência, em razão dos seus nefastos efeitos. Em seu voto, o ministro Celso de Mello citou os vários estudos nacionais e internacionais apresentados pela ministra.

Os estudos apontam que os danos psíquicos advindos do estupro são mais contundentes e duradouros que os danos físicos. Respeitamos e acolhemos todos esses argumentos. Mas é preciso ter cuidado com os excessos (como veremos logo abaixo).

A polêmica toda deriva de uma questão formal (ou seja: o problema está no despreparo do legislador, na sua produção legislativa sempre questionável). E ainda não terminou.

Quando o majoritário pensamento jurídico nacional já a imaginava superada, eis que o TJ de São Paulo, em duas decisões (setembro e outubro de 2008, decisões que cuidaram de dois delitos ocorridos em Ribeirão Preto-SP), volta ao patamar inicial, não admitindo o estupro simples como crime hediondo.

O entendimento (predominante no STF: estupro simples também é crime hediondo) é substancialmente correto. Mas é preciso evitar abusos. O antídoto para isso é o princípio da proporcionalidade (ou razoabilidade), que é expressão, segundo a jurisprudência do próprio STF, do devido processo legal substantivo (substantive due process of law).

Recorde-se que nem tudo que o legislador (que muitas vezes atua atrabiliariamente) etiquetou como hediondo o é, segundo o senso comum. Mesmo que se considere o estupro ou o atentado violento ao pudor simples hediondo, ainda assim, há muitas situações que devem merecer atenção especial dos juízes.

Por exemplo: um beijo lascivo ou um toque nas nádegas ou algo semelhante, pela interpretação do STF, também seria crime hediondo, punido com pena mínima de seis anos (igual a um homicídio). Seria estapafúrdio, grotesco e hilariante admitir um absurdo desse teor!

Para evitá-lo o juiz e o jurista do terceiro milênio, tendo em vista o método da ponderação, já não podem se comportar como seguidores (vassalos, assépticos e napoleônicos) da seca e insípida letra da lei. O método puramente formalista, subsuntivo, está morto (embora ainda não devidamente sepultado).

Adequando-se a interpretação do STF com o princípio da proporcionalidade (que tem a virtude de flexibilizar o texto legal, para adequá-lo às peculiaridades de cada caso concreto), deveríamos ler o dispositivo legal arts. 213 e 214 do CP - da seguinte maneira: estupro e atentado violento ao pudor, na forma simples, são crimes hediondos, em princípio (ou seja: é preciso examinar a peculiaridade de cada caso, para se evitar abuso ou excesso).

O critério abstrato e genérico do legislador pode ser válido para a maioria dos casos, mas revela-se totalmente desproporcional e inadequado para muitos outros. Ao juiz compete, em cada um deles, decidir se é ou não hediondo.

Quando o legislador constituinte, em 1988, externou seu desejo de um tratamento mais rigoroso para os crimes hediondos, evidente que não estava pensando num simples beijo lascivo, no toque nas partes íntimas etc. (nem tampouco nas várias inconstitucionalidades da Lei 8.072/90, como bem realçam Alberto Silva Franco, Alberto Z. Toron e tantos outros).

Uma das soluções possíveis que se apresentam seria considerá-los como mera importunação ofensiva ao pudor (LCP, art. 61). Em outras palavras: é para o âmbito do (correto) enquadramento típico, em suma, que é levado o magistrado (e o jurista) preocupado com o equilíbrio e a razoabilidade das suas decisões. Um beijo lascivo (por exemplo) não pode ser inserido no art. 214, senão no citado art. 61, que prevê pena de multa.


Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito Penal pela Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito Penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 23/11/2008.

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