O aspecto mais pernicioso das atitudes e dos comportamentos superficiais, meramente aparentes, é que transmitem conceitos e impressões que não correspondem à realidade dos fatos e das verdadeiras intenções. Criam, assim, situações ilusórias que ficam entranhadas no subconsciente coletivo, influenciam condutas e formam convicções, dando a enganosa idéia de que algo é, quando, na verdade, não é.
O sistema penal brasileiro, atualmente, constitui um exemplo eloqüente da utilização de métodos e de instrumentos que têm um sentido puramente simbólico e, no seu caso específico, também agridem os direitos e as garantias individuais.
Tais métodos procuram mostrar a eficácia das ações de combate ao crime. Ademais, passam a idéia de estar provada a culpa do suspeito, embora o inquérito policial ainda esteja no seu nascedouro. E, por outro lado, querem convencer que é normal e necessário o uso de certos instrumentos de força, como a prisão no início das investigações, sem ao menos o suspeito ter sido ouvido.
Assim, a teatralização do fato tido como criminoso pela exagerada cobertura da mídia, a exibição das operações, a exposição pública do suspeito, o uso desnecessário de algemas, o inútil aparato bélico empregado nas operações, a decretação de buscas e prisões divorciadas dos critérios de necessidade, dentre outras medidas, constituem símbolos de um sistema que engana e ilude, mas também fere a dignidade humana e provoca a exclusão social do investigado.
A opinião pública, carente de senso crítico e de conhecimentos legais e jurídicos, crédula em relação ao que é veiculado pela mídia, crê na eficácia do aparelho repressivo e passa a considerar o suspeito como culpado definitivo, embora ele não tenha sequer sido ouvido, processado ou julgado.
O simbolismo penal, aos poucos, vai disseminando e impregnando na sociedade a cultura do castigo, da vingança e da intolerância raivosa. Esta cultura desconhece as causas e as circunstâncias do crime, não reconhece a dignidade do suspeito e despreza o seu sagrado direito de defesa, o devido processo legal e a presunção de inocência.
Os danosos efeitos da cultura repressiva estão atingindo alguns, embora poucos, responsáveis pela aplicação e pela execução do sistema penal, a ponto de estarem assumindo a condição de verdadeiros "combatentes do crime" e agindo como tal.
Ao incorporarem essa condição, juízes, promotores e delegados passam, antecipada e subjetivamente, a se comprometer com uma das opções que o conflito penal oferece.
O juiz, como é óbvio, não combate, ele aplica a lei com isenção. No momento em que se deixa influenciar por suas convicções pessoais ou por seus anseios e temores como cidadão, perde os dois requisitos essenciais para o correto desempenho de seu mister: a independência e a imparcialidade.
O representante do Ministério Público, por sua vez, deve acusar sem paixão, pois o seu compromisso é com os ideais de Justiça, e não com a acusação sistemática e obstinada.
Já a autoridade policial, quando no desempenho de suas funções de polícia judiciária, deve investigar também com independência, imune a influências e sem ter uma prefixada opinião sobre o crime e sobre o seu autor.
A errônea idéia de serem combatentes leva as autoridades a considerarem os suspeitos ou os acusados como seus adversários. E adversários passam a ser também os seus advogados, por terem a ousadia de defender aquele que por eles está, ainda, sendo investigado ou processado, mas já considerado culpado.
Essa atitude conduz tais autoridades a flexibilizarem as normas de garantia penal, bem como as leva a não reconhecerem ou não valorizarem os direitos constitucionais e processuais dos acusados.
Os primeiros a serem desconsiderados são os comezinhos, elementares e naturais direitos dos acusados de serem ouvidos e defendidos.
São eles presos, para depois serem ouvidos. A prisão se dá sem nenhuma razão a justificá-la. As decisões judiciais de prisão, como não podem declarar a verdadeira razão - ouvir os suspeitos -, baseiam-se em alegações estereotipadas, que não variam de caso para caso, pois seguem sempre a surrada fórmula de sua necessidade para as investigações. Mas tal necessidade nunca é exposta.
Com a sua dignidade e sua reputação irreversivelmente atingidas, humilhado com a cruel exposição pública de sua prisão, o cidadão se vê, também, privado de um outro singelo e universal direito: o de ter uma adequada e pronta assistência legal.
Os advogados estão sendo visto pelos combatentes do crime como verdadeiros cúmplices dos acusados, co-autores da conduta investigada. São tolerados, apenas, porque a Constituição federal sabiamente afirma ser a advocacia indispensável à administração da justiça. No entanto, esforços não são economizados para dificultar as atividades dos defensores.
Tais dificuldades chegam às raias do absurdo, do inverossímil. Basta citar um desses obstáculos: demora dias para se ter acesso à decisão que decretou uma prisão. Portanto, o preso fica dias sem saber por que a violenta medida foi decretada...
Digo e invoco o testemunho dos advogados mais antigos: hoje os percalços para a advocacia criminal são maiores do que o foram durante o regime militar. Pelo menos as prerrogativas dos advogados eram respeitadas.
Não se deseja a impunidade. Mas tão perniciosas quanto ela são as violações à ordem jurídica e à dignidade humana. Que se combata o crime, mas sem subterfúgios ilusórios e enganosos, dando idêntica relevância à acusação e à defesa. Tenha-se presente que, se o sistema penal acusa e pune, ele também deve proteger e garantir os direitos e a liberdade do acusado, contra a barbárie e a desumanidade.
Por Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado criminal.
Estadão.
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