sábado, 21 de junho de 2008

Artigo: Da (in)existência de políticas públicas ao sistema penal: uma proximidade

A implementação de políticas públicas de base (em especial educação, saúde e segurança) constitui um dever do Estado e objetiva o pleno exercício da cidadania, da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho. Busca também a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, além da garantia do desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza e da marginalidade de modo a reduzir as desigualdades. Quando o Estado falha na formação de base da pessoa para exercício da cidadania, permitindo, de outra ponta, o êxito apenas de quem disponha de meios próprios, estará direta/indiretamente a fomentar a desigualdade, a pobreza e a marginalização das pessoas excluídas dos instrumentos de ascensão social.

Uma sociedade calcada na livre iniciativa e cujo investimento na pessoa, visando à formação do cidadão, não alcance o mínimo necessário para romper a barreira histórica da política da promessa (ou da promessa política), está fadada a arcar/suportar as conseqüências do exercício da violência, assim expressada como manifestação individual e apolítica, cujo agravamento chega às raias de uma silenciosa guerra civil desarticulada/desorganizada. A inexistência de políticas públicas de base, dever do Estado, estabelece um deficit no exercício da cidadania e atua diretamente na perpetuação de gerações de pessoas sobre as quais, excluídas de acesso aos mecanismos de ascensão social, correntemente o sistema de justiça criminal seleciona e deflagra a persecução penal. O sistema de justiça criminal, pelos agentes formais da persecução criminal (de regra operadores do Direito), cede ao discurso político dominante fazendo perpetuar uma crise de legitimidade do Estado nessa persecução. Agrava-se a crise quando essa intervenção penal, indiscriminadamente, passa a decidir casos sem qualquer nota do interesse público.

O atual quadro da persecução criminal no Brasil é flagrante na seleção de pessoas excluídas do acesso aos mecanismos de ascensão social, vez que constituem a ampla maioria dos acusados e encarcerados.

Um dos efeitos da existência de políticas públicas na/para a formação de base da pessoa-cidadã é exatamente criar uma expectativa de mudança de comportamento, ação e metas individuais. A ausência dessas ações afirmativas é frequentemente relegada quando ecoa o discurso criminalizante da lei e ordem, somada à irracionalidade do sistema de justiça criminal que tem como âncora a tradicional dogmática penal (dever ser) como fomentadora do distanciamento entre a realidade jurídica com a realidade social (ser).

Esse descompasso entre a dogmática tradicional e a realidade social ganha vulto quando o sistema de justiça criminal, em operação, na verdade, reproduz a violência por meio das investigações, processamentos, acusações, condenações e encarceramentos de pessoas envolvidas em situações cujos fatos não ultrapassam a nota da irrelevância jurídico-penal e do interesse público.

Não custa lembrar que o ápice do “moderno” saber penal foi alcançado pela (de)nominada dogmática jurídico-penal. Esse saber teve como escore a Escola Clássica fundada na ideologia da defesa — ou promessa de segurança — do indivíduo, bem como na Escola Positiva fundada na ideologia da defesa da sociedade.(1) Com o superado discurso da ressocialização, estabelecido mais como um monólogo do dominante para o dominado, que busca a prática de uma política criminal “profilática do crime”, constitui, na verdade, mecanismo de proteção e reprodução de “injustiças e desigualdades sociais, bases permanentes (e intocadas) de produção e reprodução do crime”.(2)

A inexistência de políticas públicas, em especial para as populações jovens das regiões periféricas brasileiras, outrora oriundas dos conhecidos “cinturões de miséria”, cria uma ausência de perspectivas a que essas pessoas possam superar as deficiências de um preparo intelectual minimamente exigido para certas atividades laborais, reduzindo-as às atividades dos subempregos, senão as deslocando para a economia informal que campeia os grandes centros urbanos. Mesmo em sociedade vista como desenvolvida, a restrição orçamentária que antes buscava atender determinadas pessoas em situação de emergência, ou em risco de emergência, redundou numa evidente inflação da população carcerária e no acréscimo da intervenção punitiva em algumas localidades.(3) A população carcerária alvo do sistema de justiça criminal, na grande maioria do caso brasileiro, surge desse meio. Dessa classe é que o sistema penal seleciona os desviantes da conhecida criminalidade visível,(4) eis que em torno de 80% dos delitos perseguidos constituem “reações individuais e não políticas às contradições típicas do sistema de distribuição da riqueza”, tornando impossível enfrentar o problema da marginalização criminal sem incidir na estrutura da desigualdade.(5)

Nesse contexto, o sistema de justiça criminal (enquanto produtor e reprodutor da violência impondo a garantia coativa da ordem social disciplinada pela legalidade idealizada/demarcada pelo Estado Novo) ainda espera resposta adequada e comportamento conforme a “lei” dessa população que, pela posição social, está em condições anormais/adversas — insuperáveis pelas próprias forças — e tratadas, continuamente, quando desviantes, como “produto de uma natureza má”, de “um sujeito anti-social” e possuidor de uma “vontade livre e consciente” que se volta contra os valores fundamentais da sociedade “protegida pela lei penal com ameaça de pena”.(6) Aqui reside um ponto de aparente irracionalidade dos operadores do sistema de justiça criminal, vez que mesmo no âmbito da legalidade “nunca se pode interpretar um texto legal sem incorporar dados da realidade”, sob pena de, negligenciando essa realidade, incorrer em “arbitrariedade”.(7)

É de conhecimento geral que os operadores do sistema de justiça criminal, enquanto adeptos do retribucionismo calcado na concepção da pena como prevenção-geral do crime, não enfrentam a crise de legitimidade do sistema penal e permanecem na noção (senão ilusão) do plano do dever-ser de que se vive em uma sociedade “justa”, igualitária e legitimante da pena que alcança todos os desviantes. Essa sociedade ideal não existe. Nesse contexto, nas condutas voltadas contra o patrimônio privado, mas sem lesão efetiva (com a restituição do objeto pretendido), fica evidente a falta de interesse público para persecução e possibilita privilegiar não a retribuição penal pela violação do direito (não raras vezes pela mera intenção e sem dano efetivo — ex., casos de tentativas de crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa), mas sim de modo preponderante e efetivo, a saber, da real dimensão do fato e da possibilidade de composição, particularmente levando em conta o interesse da pessoa diretamente atingida.

Essa é uma direção proclamadora da superação do “universo estreito de lógica ultrapassada e insuficiente, que é o universo do Direito penal”,(8) por meios alternativos à pena e de modo a minimizar os efeitos (de dor) decorrentes da intervenção penal, senão mesmo de evitar a persecução penal desnecessária/inútil nos casos/fatos sem relevância jurídico-penal e sem a nota do interesse público, por uma atitude de política criminal do titular da ação penal pública: Ministério Público.

Notas

(1) ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão da Segurança Jurídica – Do Controle da Violência à Violência do Controle Penal. 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, pp. 45-71.

(2) SANTOS, Juarez Cirino dos. As Raízes do Crime: Um Estudo sobre as Estruturas e as Instituições da Violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 95.

(3) WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres – A Nova Gestão da Miséria nos Estados Punitivos (A Onda Punitiva). Trad. de Sérgio Lamarão, 3ª ed. rev. ampl., Rio de Janeiro: Revan, 2007, pp. 96-125.

(4) NEPOMOCENO, Alessandro. Além da Lei: A Face Obscura da Sentença Penal. Rio de Janeiro, Revan, 2004, pp. 177-198.

(5) BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à Sociologia do Direito Penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos, 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1999, pp. 190-198.

(6) SANTOS, loc. cit., p. 95.

(7) ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda de Legitimidade do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1996, p. 80.

(8) ZACKSESKI, Cristina. “A Guerra Contra o Crime: permanência do autoritarismo na política criminal latino-americana”, in: ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e Reverso do Controle Penal: (Des)Aprisionando a Sociedade da Cultura Punitiva. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002, p. 124.


Por Edimar Carmo da Silva, Promotor de Justiça do MPDFT e mestrando em Ciências Criminais na PUC/RS.


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog