terça-feira, 8 de setembro de 2015

Medidas cautelares penais e o conforto argumentativo do Poder Judiciário



Antes do início do século XXI, a utilização de medidas cautelares de índole pessoal era rara no bojo de procedimentos de persecução penal, limitando-se, praticamente, à aplicação dos institutos da prisão em flagrante e da fiança.
Mais recentemente, ocorreu a pulverização desses institutos, decorrente não apenas de modificações legislativas que lhes conferiram especial atenção[1]e do avanço tecnológico que possibilitou a criação de mecanismos de controle antes inexistentes, como a monitoração eletrônica, mas também da instrumentalização dos órgãos investigativos brasileiros e da organização destes no combate ao crime organizado, os quais passaram a formar, por exemplo, Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco).
Nesse sentido, como a aplicação de medidas cautelares pessoais no processo penal brasileiro apenas foi disseminada nos últimos anos, em especial no âmbito das grandes operações promovidas pela Polícia Federal, verifica-se, em diversas ocasiões, a utilização de medidas constritivas em detrimento das balizas estabelecidas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal.
Como consectário do princípio da presunção de inocência, estatuído no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, as medidas cautelares pessoais penais previstas em no ordenamento não podem ser impingidas como espécie de antecipação de tutela, mas apenas como forma de acautelamento de determinada finalidade processual[2].
Em verdade, o sistema constitucional brasileiro determina que a imposição de medidas constritivas pessoais, sejam elas destinadas à segregação cautelar ou não, apenas se legitima se obedecer aos ditames das cautelares de índole não satisfativa, que não antecipam a entrega da pretensão punitiva requerida processualmente. Justamente nesse contexto é que se tornou célebre a crítica do ministro Marco Aurélio de que, ao contrário do que o direito constitucional brasileiro apregoa, normalmente, prende-se o investigado primeiro para depois apurar o fato criminoso[3].
Por sua vez, o sistema infraconstitucional brasileiro não admite a utilização de medidas cautelares criminais em toda e qualquer casuística fática, mas apenas naquela em que se verifica a existência concreta de (i) risco à incidência da lei penal ou à instrução criminal ou da (ii) necessidade de evitar a reiteração da prática de infrações penais ou de garantir a ordem pública ou econômica.
Desse modo, por imposição constitucional e legal, as medidas cautelares pessoais devem ser utilizadas em atenção à sua instrumentalidade, devendo-se aferir a sua utilidade de forma prospectiva, e não pretérita, à luz de determinado cenário fático. Assim, em um primeiro momento, deve o julgador identificar qual problema processual se encontra sob análise para, após, verificar se ele se subsume a uma das hipóteses que autorizam a sua aplicação. Caso haja subsunção, deve o magistrado identificar qual das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal é apta a escoimar o empecilho processual a que está defronte.
Em razão de ser recente a disseminação desses institutos, constata-se corriqueiro e danoso equívoco na utilização deles, em especial a aplicação de medidas cautelares inadequadas ao cenário fático-processual delineado. Esse problema é bastante visível com o sem-número de prisões preventivas decretadas pelo Poder Judiciário, que ensejam o abarrotamento do sistema carcerário.
Certamente, se há um empecilho para o natural e escorreito deslinde do processo penal (uma casuística que autoriza a imposição de medidas cautelares pessoais), a prisão preventiva terá aptidão para afastá-lo do caso concreto. Por ser a mais severa, a segregação cautelar prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal é apta a inibir toda e qualquer uma das casuísticas que justificam a imposição de medidas constritivas pessoais. Sem prejuízo, a decretação dessa cautelar também terá o condão de danificar a dignidade humana do jurisdicionado caso não observe a máxima da proporcionalidade.
A desatenção à adequação da prisão preventiva às particularidades do caso concreto, mentalidade tão alastrada atualmente na jurisdição brasileira, transforma essa forma de segregação cautelar em remédio processual de uso desmedido[4]. Nesse tocante, a jurisprudência dos Tribunais superiores tem sido cada vez mais contundente ao revogar prisões preventivas decretadas de forma desproporcional, quando existentes medidas cautelares menos invasivas ao acusado e que também tem o condão de atingir o empecilho processual proposto[5].
Todavia, quando os tribunais revogam a prisão preventiva que foi decretada de forma desproporcional, costumam aplicar, em contrapartida, um sem-número de medidas cautelares pessoais alternativas, previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal, que não detêm qualquer correlação com a casuística processual que ensejou a segregação cautelar. Noutras palavras, malgrado esteja rechaçando prisões cautelares que não encontram guarida na máxima da proporcionalidade, a jurisprudência pátria tem aplicado, de forma substitutiva, medidas cautelares que não se mostram aptas a atingir a finalidade para a qual a prisão preventiva havia sido anteriormente decretada.
Foi exatamente isso o que aconteceu, recentemente, no emblemático julgamento promovido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal do Habeas Corpus 127.186, impetrado em favor de um dos investigados na operação lava-jato. Nesse writ, a Segunda Turma reconheceu a desnecessidade da prisão preventiva sob o argumento de que havia se encerrado a  instrução da ação penal a que respondia o Paciente em primeira instância, mas aplicou, em seu detrimento, extenso rol de cautelares, notadamente o (i) afastamento da gestão das empresas envolvidas nas investigações, a (ii) proibição de acesso aos estabelecimentos dessas empresas, a (iii) suspensão do exercício profissional de atividade de natureza empresarial, financeira e econômica, o (iv) recolhimento domiciliar integral até que demonstre ocupação lícita, quando fará jus ao recolhimento domiciliar apenas em período noturno e nos dias de folga, o (v) comparecimento quinzenal em juízo, para informar e justificar atividades, com proibição de mudar de endereço sem autorização, a (vi) obrigação de comparecimento a todos os atos do processo, sempre que intimado, a (vii) proibição de manter contato com os demais investigados, por qualquer meio, (viii) a proibição de deixar o país, devendo entregar passaporte em até 48 (quarenta e oito) horas e a (ix) monitoração por meio da utilização de tornozeleira eletrônica.
Assim, apesar de a prisão cautelar ter sido imposta pelo Magistrado da 13ª Vara Federal da Seção Judiciária de Curitiba/PR primordialmente com o escopo de afastar suposto risco à instrução criminal, o Supremo Tribunal Federal impôs ao Paciente do Habeas Corpus 127.186 diversas constrições judiciais que não possuem qualquer relação com a finalidade originária do decreto prisional.
Com efeito, não é difícil constatar que a determinação de suspensão do exercício profissional de atividade de natureza empresarial, financeira e econômica, feita de forma abstrata, não tem aptidão de soçobrar o já reconhecidamente inexistente perigo à fase de colheita de provas da ação penal. Do mesmo modo, as medidas cautelares de recolhimento domiciliar, comparecimento quinzenal em juízo, obrigação de comparecimento a todos os atos do processo, proibição de deixar o país e imposição de monitoração eletrônica também se mostram claramente inadequadas para o propósito para o qual a prisão preventiva foi inicialmente decretada. Todas essas constrições judiciais servem, precipuamente, para coibir condutas tendentes a obstaculizar a aplicação da lei penal mediante fuga, casuística que, ao menos da leitura do acórdão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sequer foi aventada.
Não bastasse isso, se o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu que, no julgamento do Habeas Corpus 127.186, não existia mais risco à instrução criminal, não haveria motivo para aplicar constrições cautelares em detrimento do Paciente para qualquer outro específico propósito, sob pena de se estar inovando o ato jurisdicional proferido pelo magistrado da 13ª Vara Federal da Seção Judiciária de Curitiba.
Decerto, o conforto argumentativo que a substituição da prisão preventiva por outras constrições confere aos julgadores, especialmente em casos midiáticos como o da operação lava-jato, e a falta de familiaridade do Poder Judiciário com os requisitos para imposição de medidas cautelares pessoais, recentemente discriminados em nosso ordenamento, impedem a escorreita utilização dessas constrições de liberdade.
Assim, decisões que deveriam caminhar no sentido de conceder integralmente a liberdade a indivíduos presos preventivamente de forma indevida terminam por vir, inadequadamente, acompanhadas da imposição medidas cautelares que, além de cercear o direito dos jurisdicionados, não encontram respaldo fático e subvertem a característica constitucional não satisfativa dessas constrições pessoais.

[1] Apenas em 2011 é que a lei n. 12.403 incluiu no artigo 319 do Código de Processo Penal o extenso rol de medidas cautelares pessoais alternativas à prisão preventiva.
[2] É o que se depreende, inclusive, do julgamento do Habeas Corpus 84.078 pelo Supremo Tribunal Federal, que assentou ser inviável a execução provisória da sanção penal.
[4] Para combater essa equivocada prática jurisdicional, o anteprojeto do novo Código de Processo Penal prevê, em seu artigo 532, VI, que, para decretar a prisão preventiva, deve o magistrado consignar expressamente as razões pelas quais considera que as demais medidas cautelares não são suficientes para atingir a finalidade colimada. Esse anteprojeto pode ser acessado em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=85509&tp=1
[5] Nessa direção, exemplificativamente, o RHC nº 36.443/STJ, da Relatoria do Eminente Ministro Rogério Schietti do Superior Tribunal de Justiça, e o AgRg no Segundo AgRg no Inq n. 3.842/STF, da Relatoria do Eminente Ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal.

Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é advogado, professor do IDP, mestre em Direito Público pela UnB e doutorando em Direito Constitucional pela USP.
Felipe Fernandes de Carvalho é advogado formado pela UnB e especialista em corrupção e crime organizado pela Universidad de Salamanca.
Revista Consultor Jurídico, 5 de setembro de 2015.

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