sábado, 6 de dezembro de 2008

A sociedade em busca do seu papel na segurança

A idéia era discutir o papel da sociedade na luta contra a violência, mas a tônica do Fórum Segurança Pública e Cidadania, realizado em 24 de novembro no Rio, acabou sendo a atuação do poder público no setor.

No fim do dia, estava evidente que a histórica má gestão da segurança pública no Brasil, pautada por interesses políticos, é o esteio da cultura policial de enfrentamento, repressão, violência e corrupção e atravanca a implementação de políticas de prevenção envolvendo a sociedade. Salvo experiências isoladas, o desejado “pacto social” ainda permanece no campo das idéias, e mesmo assim cheio de interrogações.

O encontro, promovido pelo movimento Rio de Paz no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Centro, reuniu especialistas, representantes de igrejas, policiais, advogados e jornalistas.

O pastor Antônio Carlos Costa, presidente do Rio de Paz, abriu o evento listando "os números da loucura, maldade e indiferença": entre janeiro de 2007 e agosto de 2008, foram registrados no estado do Rio de Janeiro 9.835 homicídios dolosos; 2.179 autos de resistência; 7.835 pessoas desaparecidas; 47 policiais mortos em serviço; 338 latrocínios e 121.729 lesões corporais dolosas. Os dados são do Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec).

“O direito à vida não está sendo respeitado. Estamos em busca da verdade para que em 2009 surja uma ampla mobilização popular para que a sociedade e o governo juntos façam reduzir o número de mortes”, disse o ativista, antes de passar a palavra ao coronel Mário Sérgio de Brito Duarte, presidente do ISP e ex-comandante do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Convidado a falar sobre segurança pública e pacto social, o coronel traçou um histórico da violência no Rio nos últimos 20 anos. De acordo com Duarte, com a vulgarização da cocaína e a entrada de armas de guerra no mercado, houve a incorporação de um ethos bélico e de soberania sobre territórios.

Mas, para ele, a expressão “crime organizado” é muito forte e precoce para designar o tráfico de drogas. “Prefiro chamá-lo de ‘crime coletivizado’, pela quantidade de pessoas que envolve em locais diferentes”, explicou.

Segundo o coronel, nesse período, o conceito de “quadrilha” evoluiu para o de “facção”, e as práticas assistencialistas dos traficantes foram sendo substituídas pela violência imprevisível, com práticas hediondas.

O oficial destacou ainda a força da idéia de pertencimento, onde o valor de grupo pretere até o valor de lucro. A manutenção do poder por líderes presos seria uma conseqüência disso. De qualquer forma, mortes, mutilações e prisões de membros não impedem a reposição permanente dos quadros. “Tem gente na fila querendo entrar para o narcotráfico”, disse.

A solução, para Duarte, depende da retomada e ocupação dos territórios dominados, que seria a parte mais difícil. Ele deu como exemplo de iniciativa bem sucedida o trabalho da polícia na Cidade de Deus, onde ela entrou e está permanecendo. “Não vejo outra maneira de recuperar os territórios”, defendeu.

Sobre o pacto social, o coronel disse que a expressão soa hermética, e prefere usar “participação comunitária”. Segundo ele, a participação se materializa em iniciativas como os cafés e conselhos comunitários, onde as pessoas podem trocar informações com gestores da segurança para informar problemas e buscar soluções.

Outra forma de participação, de acordo com Duarte, são os programas sociais desenvolvidos pela iniciativa privada, as igrejas e o terceiro setor, enfocando por exemplo a prevenção ao uso de drogas, à violência doméstica e à exploração cultural e promovendo a cultura da paz.

Sem pacto social, polícia de espetáculo

A antropóloga Jacqueline Muniz abordou o paradoxo da proteção: quanto mais mecanismos de proteção, mais insegurança. “Os governos confundem proteção com segurança, e os resultados são provisórios e requerem remédios cada vez mais amargos”, diagnosticou.

Para Jacqueline, o somatório dos mecanismos repressivos não produzem a segurança coletiva, e a solução é pactuar. “A sociedade é uma abstração. Viver em sociedade é viver em processos de negociação. Ela se re-pactua constantemente”, teorizou. De acordo com a antropóloga, todas as ações de polícia estão no campo da segurança pública, mas nem todas as ações de segurança pública são de competência da polícia, e sim mecanismos de auto-regulação e controle social.

Entre as formas de prevenção, além da auto-regulação, ela destaca a mediação pacífica de conflitos e a presença da polícia. A ação repressiva seria apenas uma parte pequena, para quando os demais mecanismos dissuasórios não fossem suficientes. Segundo a antropóloga, tende-se a maximizar a repressão em ocasiões desnecessárias, e essas “polícias de espetáculo” acabam desautorizando a própria polícia, por não estarem de acordo com as regras sociais e o pacto.

Jacqueline enfatiza, entretanto, que quanto mais o pacto social é excludente, mais o policiamento se torna desigual e discriminatório. “Quanto mais precário o pacto, maior a resistência social à presença e à ação da polícia. Temos que pactuar, blindar os poderes da polícia para que ela não se volte contra nós”, disse, destacando o papel das ouvidorias, corregedorias, o controle do uso da força e a prestação de contas para a sociedade. Esta, por sua vez, precisa de mecanismos de participação efetiva de controle social. “Pequenas estratégias do cotidiano são grandes estratégias da segurança pública”, resumiu.

Números torturados

O presidente do ISP, coronel Duarte, já tinha ido embora quando a ex-presidente da instituição, a antropóloga Ana Paula Miranda, ganhou a palavra. Ela fez duras críticas à falta de dados, de transparência e de análises cruzadas sobre violência.

“Os números não demonstram a dor. As estatísticas são construídas. São recortes da realidade, e não a realidade inteira. A não divulgação dos números é que é o problema. Sem transparência não há governo democrático. Os dados só registram o que acontece na Polícia Civil, e só se conta com ela para se ter alguma idéia. Falta complementaridade das informações. O Judiciário é informatizado, mas não se sabe quantas pessoas foram presas e por quê. Deveria haver várias outras fontes: a PM, a Guarda Municipal, o Ministério Público, o Judiciário, o IBGE”, disse.

A antropóloga foi mais longe e afirmou que são feitas “malandragens” com os dados, como disfarçar os homicídios dolosos com outras classificações, como “auto de resistência” ou “encontro de cadáver”.

“Qualquer número bem torturado diz qualquer coisa”, brincou. Segundo ela, existe a proposta de se criar a categoria “morte violenta” como indicador. Ela garantiu que a polícia sabe onde ocorrem os crimes, e que não está lá por outras razões.

De acordo com Ana Paula, a situação vem se agravando há décadas. “A polícia aqui já desistiu de prender. Mata de vez. ‘Confrontos’ são execuções. As mortes têm endereço certo”, denunciou. E concluiu: “Ou a gente lida com os dados com compromisso ético ou não adianta nada. Não adianta pensar planejamento, seja de repressão ou de prevenção, sem um diagnóstico do cenário.”

Polícia palaciana

O delegado Vinícius George, secretário geral do Sindicato dos Delegados de Polícia do Rio de Janeiro, defendeu o controle da sociedade sobre a segurança pública, para que a polícia seja de fato pública, e não dissimuladamente privatizada.

“A polícia sabe ser palaciana. Ela cumpre a ordem do palácio, ou dos palácios. Não há mudança real se não se mexer na política. A sociedade precisa se organizar para mudar essas diretrizes”, defendeu.

Ele criticou a lógica de guerra da política de drogas e observou que há hoje, no Brasil, duas políticas incongruentes: uma que importa o modelo de combate americano e outra influenciada pela liberação européia, pela redução de riscos e danos. “É uma coisa meio híbrida”, ironizou. “Gasta-se muito com a guerra contra as drogas, mas para quê? A questão não está na droga, mas na arma e na munição.”

Segundo o delegado, os policiais estão adestrados para uma guerra, em nome da qual matam e morrem. “Não se pode trabalhar com um conceito de inimigo. Isso é caro para o contribuinte, porque a logística de guerra é cara, e inadequado para a polícia. Mas a ordem do palácio é quebrar”, afirmou.

Treinado para matar

O coronel Ubiratan Ângelo, ex-comandante da PM, contou que foi “treinado para matar” e “meter o pé na porta”. Ele lembrou que no início dos anos 80 o coronel Nazareth Cerqueira começou a promover a mudança do paradigma de polícia-força para polícia-serviço. Cerqueira estudou e divulgou estudos de polícia comparada, novas metodologias e idéias de polícia comunitária que começaram a ser implantadas, mas, segundo Ângelo, agora se vê uma volta à repressão.

“Nunca tivemos uma polícia de segurança pública. Temos ações dos instrumentos policiais. A política requer participação da sociedade”, disse.
O papel da imprensa foi discutido pelo jornalista Jorge Antonio Barros, autor do blog Repórter de Crime, no Globo Online. Para ele, a mídia cultiva a cultura do pânico e é preciso ter uma visão crítica para perceber quando ela ajuda e quando manipula.

A principal falha da imprensa, a seu ver, é a exposição de pessoas e vidas, colocando-as em risco. “A imprensa deveria ter preocupação em proteger a sociedade”, disse, acrescentando que delegados dão informações que não deveriam e não dão quando deveriam.

O jornalista fez um histórico das relações entre a polícia e a sociedade brasileira nos 200 anos de sua existência e ressaltou que a internet abriu portas para as pessoas buscarem conhecimento e soluções contra a violência. Ele defendeu iniciativas como a seção A cara da morte, do jornal o Globo, e o blog Casos de Polícia, do Extra, que fazem contagens paralelas dos homicídios, levando em conta dados de outras fontes além da polícia civil.

A última mesa contou com a participação do advogado João Tancredo, especialista em Responsabilidade Civil que foi destituído do cargo de presidente da Comissão dos Direitos Humanos da OAB-RJ após fazer denúncias sobre a ação da polícia no Morro do Alemão, com 19 mortos, e do Bispo Anglicano da Diocese do Recife Robinson Cavalcanti, que falou sobre Segurança e Fé – A Participação das Comunidades Religiosas no Combate à Violência.

Comunidade Segura.

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