terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Entrevista - Elcio Carvalho da Costa

O local é do perito!

Quem assiste a seriados de TV como CSI, Without a Trace e Crossing Jordan sabe a regra número um numa investigação criminal: o local do crime é do perito e deve ser preservado intacto pela polícia até a sua chegada.

Essa condição elementar, entretanto, nem sempre é respeitada. Para o presidente da Associação dos Peritos do Estado do Rio de Janeiro, Elcio Carvalho da Costa, o problema começa na falta de autonomia da perícia. Em 18 estados do Brasil, a perícia se reporta diretamente ao secretário de Segurança, mas não no Rio, onde ela é gerida pela Polícia Civil.

Nesta entrevista ao Comunidade Segura, o perito explica as principais reivindicações da classe para a melhoria do seu trabalho e conseqüentemente do resultado das investigações no estado. Ele fala ainda das ameaças veladas que os peritos sofrem e das transferências indesejadas a que estão sujeitos.

O que caracteriza o trabalho da perícia?

O trabalho pericial é voltado para a conformação de elementos e provas materiais que permitam à Justiça exercer eficazmente e irrefutavelmente o seu mister.

Quais as maiores dificuldades dos peritos do RJ no seu dia-a-dia?

A gestão inadequada é a maior dificuldade que enfrentamos, porque ela impede que os organismos de perícia sejam devidamente dimensionados, equipados, treinados e capacitados progressiva e continuamente, fatores imprescindíveis à realização de um melhor trabalho. Ressalte-se que a mão de obra é mal aproveitada, tendo em vista que mais de 60% dos peritos possuem alguma pós-graduação nas diversas áreas científicas das suas formações, mas o conhecimento é pouco aproveitado em decorrência da escassez tecnológica e da falta de investimentos em pesquisa para inovação de técnicas e tecnologias na área de ciência forense. O fato de o Departamento de Polícia Técnico-Científica ser gerido por um delegado dificulta a realização de parcerias e intercâmbios duradouros e eficientes com instituições de pesquisa ou tecnologia do estado.

Em 18 estados do Brasil, a perícia é um órgão separado da polícia, mas no Rio ela está atrelada à Polícia Civil, apesar dos pleitos dos peritos por autonomia. Quais as conseqüências dessa situação?

A conseqüência principal é a má gestão, que resulta no abandono dos órgãos periciais do nosso estado. A perícia não é gerida como uma instituição científica voltada para a produção da prova material. Além do mais, atrelada a uma polícia pouco investigativa, não lhe é dada a devida importância. Os poucos investimentos a ela endereçados são mal orientados por falta de conhecimento de causa dos seus gestores, delegados de polícia.

Poderia dar exemplos de má gestão?

A construção de prédios novos para abrigar o Instituto Médico Legal (IML) e o Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE) no interior do estado, denominados de Postos Regionais de Polícia Técnico-Científica (PRPTC), redundaram em claro desperdício de dinheiro público. No caso dos investimentos feitos na perícia criminal e médico legal do estado a situação é ainda mais grave do que o citado no Relatório do Tribunal de Contas do Estado de 2007, que chega à seguinte conclusão: “as metas e os custos do programa delegacia legal (incluindo construção de PRPTCs) não foram tratados com o devido zelo, não tendo sido previstas todas as instalações necessárias ao atendimento do objetivo inicial”. Investimentos feitos de forma errada são gastos públicos desnecessários, que não aumentam a eficiência dos serviços.

O que faz mais falta na perícia do Rio?

A falta de investimento adequado, seja na estrutura ou no que diz respeito aos equipamentos e instrumental necessário ao trabalho pericial, é uma espécie de interferência indireta na perícia. Isso ficou explícito no relatório feito pela Aperj em março de 2007, amplamente divulgado pela imprensa e de conhecimento das autoridades da Polícia Civil e do governo do estado (arquivo PDF).

Como são feitos os investimentos na perícia? Quem decide onde aplicar?

Os investimentos na perícia são feitos, na sua maioria, de forma aleatória, pelo fato de a Polícia Civil não ter um planejamento para os órgãos periciais. Os poucos investimentos feitos apropriadamente são pontuais e em função de demandas específicas, como os jogos Panamericanos, os quais foram decididos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) com interveniência da Secretaria de Segurança do Estado.

A construção do novo IML, até agora não operacional, parece-nos um posicionamento político, como paliativo às aberrações praticadas nas antigas (porém ainda em uso) instalações. É como se estivéssemos construindo parte de um todo que não conhecemos. O certo seria projetarmos uma nova perícia, com a participação de peritos, únicos conhecedores das suas necessidades, sob o enfoque de uma instituição de produção e desenvolvimento de ciência forense para o bom desempenho da Justiça.

O que os peritos estão fazendo para tentar mudar o quadro?

No dia do perito, em dezembro do ano passado, a Aperj reuniu em seminário representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) e do Sindicato e da Associação dos Delegados de Polícia do Estado do Rio de Janeiro para discutir as principais questões relativas à autonomia e reestruturação da perícia.

Ao final do evento chegou-se às seguintes conclusões: a direção do Departamento de Polícia Técnico-Científica (DPTC) deve ser feita por peritos ao invés de delegados; é necessária a criação de escalonamento salarial especial para a perícia, a exemplo do que acontece com os delegados; a perícia oficial, composta da perícia criminal e da perícia médico-legal, deve ser diretamente subordinada ao Secretário de Estado de Segurança, como já ocorre nos 18 estados autônomos. Com exceção deste último item, rejeitado pelos representantes dos delegados, houve consenso a respeito das demais conclusões. Só nos falta a sensibilidade dos nossos governantes.

Recentemente, dois crimes sem solução renderam críticas ao trabalho da perícia (o sumiço da engenheira cujo carro caiu no canal da Barra e o assassinato de um funcionário do Infoglobo). Em ambos os casos há indícios de que houve equívocos na conduta policial. O trabalho da perícia foi prejudicado pela polícia?

Sem dúvida a manipulação da perícia, no caso da engenheira, e a ação desastrosa com conseqüente desfazimento do local, no caso do funcionário da Infoglobo, prejudicaram sobremaneira o trabalho pericial. A designação de peritos por um delegado, desrespeitando o Código de Processo Penal, e a quebra da cadeia de custódia na preservação dos elementos materiais colhidos por via escusa à legislação podem criar um enorme imbróglio judicial. A má condução da investigação, a falta de preservação do local, associada à ausência de requisição de reprodução simulada, prejudicam o desempenho do trabalho pericial.

E quem leva a culpa?

A designação de peritos diretamente por parte de delegados de polícia, à revelia do preceito legal, aumenta a suspeição que relaciona a perícia à sua inserção na estrutura da Polícia Civil e pode conduzir a inferências que os inquéritos estariam sendo conduzidos segundo os interesses da instituição policial, em detrimento da busca da verdade dos fatos.

A preocupação com as implicações que podem resultar disso fez com que a Aperj solicitasse à Corregedoria Geral Unificada a apuração dos fatos no caso da engenheira Patrícia Amieiro. As ações da polícia nas comunidades carentes e as declarações de representantes de instituições da sociedade, como a OAB e as organizações de defesa dos direitos humanos, mostram que qualquer tipo de suspeição é prejudicial ao trabalho policial e ao processo judicial.

Muitos peritos dizem que foram transferidos de área e até de município como retaliação por realizarem perícias que contradiziam os rumos das investigações. Isso ocorre mesmo? O medo de transferência afeta o trabalho dos peritos?

No momento recente que coincidiu com a ocorrência desses dois casos de repercussão, houve uma grande intervenção administrativa, na qual mais de 200 funcionários (peritos e pessoal de apoio) foram remanejados. Dentro deste contexto fica difícil afirmar se houve ou não motivação política e/ou de caráter punitivo especificamente para um ou outro profissional.

Entretanto, em situações “normais” podemos afirmar que as “punições geográficas” ocorrem com freqüência na Polícia Civil, como forma de suprir a falta de mecanismos de controle e avaliação do trabalho dos profissionais. Obviamente tal artifício não resolve o problema, mas apenas transfere-o para outras localidades. A punição geográfica muitas vezes está associada também por motivações pessoais de um superior hierárquico contra seu subordinado.

Há outras ameaças em relação à atuação dos peritos?

Ocorrem, de fato, ameaças veladas ao trabalho do perito, que vão desde pressão para finalizar um laudo abaixo do prazo legal, independente da necessidade de maior tempo de avaliação e estudos em casos complexos, até a pressão direta ou indireta para cercear a atuação do perito, como no caso da abertura prematura de sindicância para apurar supostas “irregularidades”.

Obviamente, o receio de ações autoritárias retaliativas afeta não somente o desempenho de alguns peritos, como as sua atitudes frente a essas injustiças. Destaca-se que, dentro da estrutura correcional da Polícia Civil, um perito pode ser arrolado injustamente ou sem causa aparente por uma autoridade policial em sindicância sumária, e mesmo que tenha sido comprovada sua total inocência, nada é feito para apurar o abuso de autoridade do sindicante ou acusador. O autoritarismo nunca é punido.

Como são os salários dos peritos do Rio em comparação aos de outros estados?

Em termos de salário bruto, o estado do Rio de Janeiro é o terceiro pior do Brasil. Mas em termos de plano de cargos e salários, a situação é ainda pior. No Rio de Janeiro são três classes de perito e a diferença da primeira para a última é de apenas 400 reais. No Rio de Janeiro, um perito, em média, ganha cerca de três vezes menos que um delegado de polícia. Esse é um dos maiores contrastes no Brasil, só visto em outras duas unidades da federação.

Existem mecanismos de troca de experiência entre peritos no Brasil e exterior? Alguma rede de trabalho?

A gestão inadequada, por nós abordada, nunca criou esses mecanismos. Existe sim a iniciativa individual de alguns profissionais. Não há redes de trabalho e a criação de procedimentos operacionais padrões, comum em outros países, é ainda incipiente.

Quais as principais mudanças na forma de fazer e conceber perícia nos últimos dez anos?

Infelizmente não ocorreram mudanças significativas nos conceitos utilizados por nossos gestores. Basta constatarmos a nossa situação atual de uma perícia mal equipada, subdimensionada, pessimamente remunerada e atrasada em relação às concepções dos 18 estados já autônomos. Em alguns postos do interior podemos dizer que a defasagem tecnológica é de mais de 20 anos.

Os vestígios úteis para a orientação da investigação, para a identificação de um suspeito ou para a localização de certo instrumento utilizado no crime, são na maioria das vezes invisíveis aos nossos olhos. Só é possível enxergar esses vestígios com a utilização de equipamentos e reagentes, alguns com elevada tecnologia e valor agregado. Sem isso a elucidação de crimes torna-se ineficiente. Quem ganha é a criminalidade, que julga ser inócua a apuração dos crimes. Quem perde é a sociedade, oprimida pela violência.

Comunidade Segura.

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