sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Artigo: A súmula vinculante nº 9 e o direito penal: análise de dois aspectos à luz da garantia da legalidade

Introdução

Os debates que são observados, no ordenamento jurídico em geral, quanto às súmulas vinculantes, encontram maior evidência quando a questão envolve o Direito Penal. Isso se dá, principalmente, porque na esfera penal a garantia da legalidade é mais incisiva, de modo que os princípios da reserva legal, taxatividade e anterioridade da lei não admitem exceções nem relativizações.

Ocorre, entretanto, que a prática do Direito Penal tem nos ensinado que a rigidez do princípio da legalidade nem sempre se traduz numa jurisprudência uniformizada e, conseqüentemente, num Direito Penal previsível e igual para todos. Veja-se, a esse respeito, as importantes discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre ser absoluta ou relativa a presunção de violência nos crimes sexuais, acerca da possibilidade de remição da pena pelo estudo, sobre o que significa “crimes da mesma espécie” para fins de caracterização do crime continuado ou a respeito da configuração da tentativa de latrocínio, por exemplo.

Isso demonstra, claramente, que mesmo num setor do ordenamento em que o respeito à taxatividade apresenta-se como pressuposto de constitucionalidade da norma, sempre há algum espaço em que o juiz será chamado a atuar. E isso será sempre uma constatação inevitável, uma vez que as próprias palavras que compõem o enunciado jurídico já comportam uma interpretação.

Nesse contexto, utilizar as súmulas vinculantes como instrumento para se tentar minimizar os efeitos deletérios de uma jurisprudência aleatória parece ser a melhor justificativa para a inserção desse novo instituto no Direito brasileiro. No entanto, a simples importação de instrumentos estrangeiros sem o acompanhamento de um sistema de garantias a eles atrelados (que lhes são inerentes em seus ordenamentos de origem) pode gerar efeitos tão ou mais indesejáveis se comparada com a situação anterior. Dessa forma, sob a ótica dos valores expressos pelo princípio da legalidade (garantia primeira do Direito Penal), serão analisados dois aspectos atinentes às súmulas em geral e, especificamente, à Súmula Vinculante nº 9, a fim de procurar entender e operacionalizar o uso dos precedentes judiciais a favor do Direito Penal, e não torná-lo um perigoso instrumento de engessamento do sistema.

Da interpretação da súmula

A fim de evitar a petrificação do Direito, é importante observar e considerar que, mesmo quando a jurisprudência estiver sedimentada — inclusive quando isso se der por meio de súmulas vinculantes — é necessário que as decisões judiciais possam sempre ser valoradas e constantemente submetidas à crítica, sem que isso signifique desrespeito à interpretação legal realizada pelo STF. A estabilização da jurisprudência, portanto, não pode significar uma barreira intransponível para a evolução do direito, o que o tornaria infenso às transformações sociais.

A possibilidade de interpretação da súmula, então, torna-se essencial para garantir não só a evolução do Direito, mas também para possibilitar que a norma penal seja aplicada do modo mais adequado ao caso concreto. Uma vez que o direito que resulta de uma jurisprudência constante se apresenta também sob a forma de enunciados lingüísticos, estes, assim como os enunciados legislativos, carecem de interpretação. Aliás, segundo Larenz, os entendimentos judiciais carecem de interpretação em maior medida do que as leis, pois devido à sua referência a casos concretos examinados, freqüentemente seu alcance é duvidoso e, por conseqüência, também a sua aplicabilidade a outros casos(1).

Analisemos, então, o enunciado da Súmula Vinculante nº 9. Está escrito que “o disposto no artigo 127 da Lei nº 7.210/1984 (Lei de Execução Penal) foi recebido pela ordem constitucional vigente, e não se lhe aplica o limite temporal previsto no caput do artigo 58”. Ou seja, em outras palavras, está dito que a proibição de que a punição exceda a trinta dias (prevista para os casos de isolamento, suspensão e restrição de direitos) não se aplica à perda dos dias remidos causada pela prática de falta grave durante a execução penal, ou, ainda, que a perda dos dias remidos pode ser superior a trinta dias.

Resta, então, a pergunta: a Súmula Vinculante nº 9 estabelece que a falta grave obriga o magistrado a reconhecer a perda de todo o tempo anteriormente remido? Embora o conteúdo da súmula seja claro no sentido de não levar necessariamente a essa conclusão, algumas observações merecem ser feitas.

Se quisermos atribuir às súmulas de jurisprudência o mesmo sentido de garantia que é atribuído aos precedentes judiciais nos sistemas da Common Law, a análise apenas dos enunciados sumulados não deve ser suficiente para a compreensão do seu alcance. Significa, portanto, que teremos que levar em consideração não só o texto da súmula aprovado pelo STF, mas também o precedente como um todo, isto é, as razões temporais, sociais e culturais que levaram à edição da súmula, assim como os debates que precederam sua aprovação e, ainda, eventuais manifestações por parte de ministros que restaram vencidos.

No caso específico da Súmula nº 9, há que se observar, em primeiro lugar, que a sua edição não se deu de forma unânime. O ministro Marco Aurélio manifestou-se contrário à sua edição seja por motivos formais (não se esclareceu quem levou a proposta ao ministro Lewandowski, a discussão não se deu a partir do julgamento de um caso concreto e a edição da súmula não foi submetida à Comissão de Jurisprudência do tribunal), seja por questões de fundo (segundo o ministro, “não há como, diante de uma falta grave verificada, fazer-se retroagir, em si, as conseqüências a ponto de se afastar do cenário jurídico um pronunciamento judicial já reconhecendo o direito que, portanto, passou a integrar o campo de interesses do presidiário”).

Além disso, durante as discussões que antecederam a aprovação da súmula, ficou absolutamente claro que a súmula afirma, apenas e tão-somente, que não cabe mais falar em inconstitucionalidade da perda dos dias já remidos. Quanto ao alcance dessa perda nada é estabelecido, cabendo à prudência do magistrado estabelecê-la. Nesse sentido, o ministro Carlos Britto foi explícito. Disse ele, textualmente: “Senhor presidente, vou aderir, insistindo nas duas observações. O conceito de falta grave está em aberto. Nós não estamos aqui fechando nenhum compromisso com o conceito de falta grave. Depois, a perda dos dias remidos pode se dar por forma proporcional à gravidade da falta”; posteriormente, afirmou: “não estamos dizendo que se perde tudo, que os dias remidos serão totalmente perdidos a partir da constatação da falta grave”; e, mais adiante: “apenas isso, que a previsão da perda dos dias remidos é constitucional. É o que estamos afirmando”. Também explicitamente manifestaram-se de acordo com essas observações do ministro Carlos Britto os ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes. Este último, ainda, esclareceu que a decisão sobre a proporcionalidade entre a perda do tempo remido e a gravidade da falta deverá ser submetida ao controle judicial devido, assim como o único efeito concreto da súmula é deixar claro que não há direito adquirido quanto ao tempo remido; disse claramente: “não haveria falar em direito adquirido, porque estaria submetido a regras específicas”, e conclui afirmando: “É só isso.” Nenhum dos outros ministros se opôs ou fez ressalvas às observações feitas por Carlos Britto e Gilmar Mendes, nem mesmo o vice-procurador-geral da República(2).

Difícil ser mais claro do que isso. Interpretar a súmula no sentido de que passou a ser obrigatória a perda de todo o tempo remido quando se pratica uma falta grave é interpretar contrariamente ao que se decidiu no Plenário do STF e, mais grave do que isso, é interpretar a súmula de maneira mais gravosa para o condenado — em flagrante afronta à garantia da legalidade.

Da irretroatividade da súmula

Não se pode ignorar que, ao mesmo tempo em que a valorização do precedente judicial tem por finalidade garantir ao cidadão a previsibilidade do direito e impedir a aplicação arbitrária e casuística da lei, a necessária evolução da jurisprudência (que pela própria essência do ato judicial somente pode ser conhecida no momento em que o juiz profere a decisão) pode surpreender o cidadão que agiu de acordo com a forma como o direito vinha sendo interpretado.

Portanto, assim como se dá com o advento de uma nova lei, eventual mudança na orientação jurisprudencial pode trair a confiança dos cidadãos que realizaram suas condutas antes da modificação, que se aplicará não apenas ao futuro, mas também àquela conduta em julgamento, que faz parte do passado.

Dessa forma, com fundamento no princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais severa, também se torna possível falar em limites a interpretações mais restritivas à liberdade do acusado, não admitidas à época do fato criminoso e desenvolvidas posteriormente em razão da evolução natural do Direito. Nesse contexto, faz sentido afirmar a regra da irretroatividade não apenas quando, por meio de lei, for introduzido um tratamento mais rigoroso do que aquele aplicado anteriormente, mas também quando, ainda que por meio de uma nova interpretação judicial, o tratamento jurídico-penal tornar-se mais severo — o que se dá, por exemplo, com a Súmula Vinculante nº 9.

E é justamente por causa dessa constatação que alguns magistrados já vêm reconhecendo a impossibilidade de aplicação retroativa da referida súmula. A título de exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem entendendo que, com relação a faltas graves ocorridas antes de 20/06/08 — data da publicação da Súmula Vinculante nº 9 —, não é obrigatória a obediência ao entendimento sumulado. Constam de acórdãos proferidos nesse sentido, as seguintes observações: “em prol, sobretudo, da segurança jurídica, cumpre afastar a possibilidade de casos contemporâneos e que versam sobre a mesma controvérsia jurisprudencial receberem soluções díspares, pelo simples fato de alguns serem apreciados antes e outros depois da vigência da Súmula Vinculante”(3), “se a garantia constitucional da irretroatividade da lei penal mais rigorosa impede sua aplicação a fato ocorrido anteriormente, da mesma forma, veda a incidência do enunciado da Súmula Vinculante nº 9 a fato anterior, na medida em que prejudique a situação do recluso”(4) e, também, “a segurança jurídica, direito fundamental inviolável (art. 5º, caput, da Constituição Federal) que o ordenamento deve e precisa proporcionar aos que convivem no grupo social e que justificou a edição da mencionada súmula, é também o fundamento que determina a aplicação desta tão-somente a fatos posteriores, já que se conferiu ao art. 127 da LEP interpretação mais gravosa ao sentenciado”(5).

Conclusão

Embora a utilização de súmulas vinculantes possa vir a significar uma diminuição de processos que versem sobre as mesmas questões de Direito já pacificadas em nossos tribunais, isso não significa que essa possa ser a finalidade última de tal instituto. Ao contrário, imaginar ser possível colocar eventual desafogo do Poder Judiciário como valor mais importante do que a justiça do caso concreto constituiria verdadeira afronta aos valores do Estado Democrático de Direito.

Assim, se queremos trazer para o nosso ordenamento a possibilidade de usarmos os precedentes judiciais para conferir ao cidadão mais garantia quanto à certeza do direito a ser aplicado, devemos ter claro que a única forma adequada de se fazer isso é trazermos, também, as garantias atreladas a tal tradição, tais como a exigência de que o precedente não seja analisado exclusivamente a partir de seu enunciado final (que nada mais é do que o resumo da decisão) e a necessidade de que novos entendimentos que impliquem maior restrição à liberdade individual não sejam aplicados retroativamente. Quanto à eventual objeção no sentido de que tais garantias levem a uma diminuição do número de demandas judiciais abaixo do esperado — já que não pouparão os juízes de analisar cada caso concreto —, resta a justificativa de que as garantias decorrentes do princípio da legalidade não devem fazer concessões em prol de uma eficiência apenas formal.

No caso da Súmula nº 9, independentemente de se concordar ou não com o seu conteúdo, parece que a sua edição traz para a sociedade uma importante certeza quanto à constitucionalidade da perda dos dias remidos quando da prática de falta grave, o que deve evitar que recursos sejam interpostos a fim de se discutir esse específico aspecto da questão. Ocorre, entretanto, que o Poder Judiciário continuará sendo chamado a decidir, em cada caso concreto, não só sobre a possibilidade de perda dos dias remidos, mas, sobretudo, quanto ao alcance de tal perda. Vê-se, portanto, que a súmula vinculante acarretará, sim, uma diminuição no número de processos, mas não impedirá que cada caso seja analisado individualmente e que sejam consideradas suas especificidades, a fim de se estabelecer qual é a punição mais adequada para cada indivíduo que cometer falta grave durante o cumprimento da pena.

Notas

(1) Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed., trad. José Lamego, Lisboa: Fundação Calouste Gul­benkian, 1997, p. 506.

(2) Os debates que levaram à edição da Súmula Vinculante nº 9 encontram-se publicados no DJ nº 172/2008, pp. 31 e 32, também disponível no site do STF.

(3) HC 993.08.041328-2, rel. des. Breno Guimarães.

(4) Agravo 993.07.022129-1, rel. des. Angélica de Almeida.

(5) Agravo 990.08.014874-5, rel. des. Vico Mañas.


Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Mestre e doutora em Direito Penal pela USP e professora de Direito Penal da USP e da USJT

GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. A Súmula vinculante n. 9 e o direito penal: análise de dois aspectos à luz da garantia da legalidade. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 17-18, nov. 2008.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog