terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Artigo: O "sabe" e o "deve saber" no crime de receptação

A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996, deu nova redação ao art. 180, caput e § 1º, do Código Penal, definindo o crime de receptação:

"Art. 180. Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte" (sublinhado nosso):

Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.

§ 1º Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime" (sublinhado nosso):

Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa."

A doutrina, apreciando as diversas normas incriminadoras que empregam elementos subjetivos do tipo, é tranqüila no sentido de que a elementar "sabe" é indicativa de dolo direto. Quanto à expressão "deve saber", existem duas posições:

1ª - trata-se de dolo eventual (Celso Delmanto e Paulo José da Costa Júnior);

2ª - significa culpa (Nelson Hungria, Magalhães Noronha e Heleno Cláudio Fragoso).

Consideramos que as expressões "sabe" e "deve saber" são, na verdade, elementos subjetivos do tipo distintos do dolo e da culpa. Dolo é a vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo, inserindo-se no plano da volição. Na receptação, v. g., corresponde à vontade de adquirir, receber ou ocultar o objeto material. Algumas vezes, entretanto, para haver crime, o legislador acrescenta no tipo um especial estado anímico do autor: que saiba ou deva saber, referindo-se ao conhecimento pleno ou parcial da situação de fato (certeza e incerteza). Esses elementos típicos não estão situados no plano da vontade, pertencendo ao intelecto. Nada têm a ver, pois, com o dolo, seja direto ou eventual, ou com a culpa.

Sob o aspecto da exigência de dolo, culpa e elemento subjetivo do tipo, o crime de receptação, antes da reforma de 1996, de acordo com a nossa posição, era classificado em três formas:

1ª - dolosa, acrescida do elemento subjetivo do tipo "sabe", que a doutrina introduzia no dolo direto (caput do art. 180). O receptador "sabia" que a coisa era produto de crime. Corresponde ao "a sabiendas" dos estatutos penais iberoamericanos ("com pleno conhecimento");

2ª - dolosa, com o elemento subjetivo do tipo "deve saber", que os doutrinadores ligavam ao dolo eventual (ou à culpa). Incluía-se na receptação culposa (§ 1º da antiga redação do art. 180), de acordo com a jurisprudência prevalente, tendo em vista que inexistia descrição de figura com a elementar "deve saber" (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, São Paulo, 1978, 2:173, nº 541; Celso Delmanto, Código Penal Comentado, Rio de Janeiro, Renovar, 3ª ed. atualizada por Roberto Delmanto, 1991, p. 330; Silva Franco, Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 2.278, nº 3.00). O receptador "devia saber" que o objeto material advinha de crime. Agia na dúvida, não tendo certeza de que a coisa tinha origem delituosa;

3ª - culposa (§ 1º): o agente adquiria ou recebia coisa que, diante de certas circunstâncias, "devia presumir-se obtida por meio criminoso". Note-se que a lei fala em "devia presumir-se" (critério normativo) e não "devia presumir", o que conduziria a um critério psicológico, subjetivo, mais condizente com o dolo.

Os três casos eram e são, para nós, bem distintos.

No primeiro ("sabe"), há plena certeza da origem delituosa da coisa (Bento de Faria, Galdino Siqueira, Nelson Hungria, Magalhães Noronha e Heleno Cláudio Fragoso). Nessa hipótese, diz a jurisprudência, "entende-se não uma vaga noção que oscila entre a suspeita e a certeza, mas, sim, a plena certeza da origem ilícita das coisas receptadas. A suspeita e a dúvida não bastam" (Silva Franco, Julgados do TACrimSP, 81:541). Empregando a interpretação gramatical, a expressão sabe, na literatura, leva ao pleno conhecimento: "sabe fiscalizar todo o serviço" (Alves Redol, Anúncio, Lisboa, Portugália Ed., 1994, p. 177), "ele sabe manejar garrucha" (Taunay, Inocência, São Paulo, Melhoramentos, 31ª ed., p. 203), "Augusto sabia construir corsários" (Gustavo Corção, Lições de Abismo, Rio de Janeiro, Agir, 1952, p. 199), significando pleno conhecimento da fiscalização, do manejo de arma e da construção de navios (João de Almeida, Introdução ao Estudo das Perífrases Verbais de Infinitivo, Assis, São Paulo, Ilhpa-Hucitec, 1978, p. 176).

No segundo ("deve saber"), a origem ilícita do objeto material passa pela mente do sujeito, porém subsistem dúvida, incerteza, insegurança. Para nós, o deve saber é interpretado em sentido estrito, como convém ao processo de adequação típica, não envolvendo pleno conhecimento e sim probabilidade. Como ensina João de Almeida, a construção com o verbo dever mais infinitivo, "quando serve à categoria modal da possibilidade", "traduz essencialmente a noção da probabilidade" (op. cit., p. 173). Ele deve saber quer dizer "é provável que ele saiba", mas não conduz à crença de seu conhecimento, como na elementar sabe. A consciência de a coisa ser produto de crime sai do plano do dever, obrigação, para revestir-se de característica hipotética: "em face das circunstâncias, ele devia ter pleno conhecimento da proveniência ilícita do objeto material", mas não se sabe com certeza se tinha ou não. Utilizando-se a interpretação gramatical, a literatura traduz essa probabilidade: "Prenda o primeiro que encontrar, se possível os três. Já devem estar bêbados" (Fernando Sabino, O Encontro Marcado, Rio de Janeiro, Ed. Sabiá, 1968, p. 59), "Achei que deviam ser ricos" (Lúcia Fagundes Telles, O Cacto Vermelho, Rio de Janeiro, Ed. Mérito, 1949, p. 74), "Devia pois estar pronta para sair" (Clarice Lispector, Laços de Família, São Paulo, Livraria Francisco Alves, 1960, p. 52), "Para vir na companhia de Augusto, que deve passar o dia conosco" (Joaquim Manuel de Macedo, A Moreninha, São Paulo, Ed. Melhoramentos, 7ª ed., p. 157). Nas quatro situações, não se tem certeza de que as pessoas efetivamente estejam bêbadas, estavam prontas para sair, sejam ricas ou que Augusto realmente passará o dia inteiro conosco: parece que sim, tudo leva a crer que sim. Não há, porém, certeza absoluta.

No terceiro, na forma culposa, a ilicitude da proveniência da coisa não passa pela mente do receptador. Ele, entretanto, a adquire, recebe ou oculta sem o devido dever de diligência.

Nesse contexto, em face das inovações na descrição do crime de receptação introduzidas pela Lei n. 9.426/96, entendemos que:

1. o "sabe" do caput indica conhecimento pleno da origem ilícita da coisa;

2. o "deve saber" (§ 1º) indica incerteza: o receptador não "sabe", não tem certeza de que o objeto material é produto de crime, agindo na dúvida;

3. a cláusula coisa "que deve presumir-se obtida por meio criminoso" (§ 3º) contém modalidade culposa.

Os três casos, tratando de elementos do tipo (os dois primeiros, subjetivos; o terceiro, normativo), apresentam uma graduação da censurabilidade da conduta (escala normativa), partindo da forma típica mais grave ("sabe"), passando pela intermediária ("deve saber") e descendo à menos reprovável (culpa). Nas duas primeiras hipóteses, quando o legislador reúne em tipo único o "sabe" e o "deve saber", o juiz considera, para fixar a pena concreta, ter o sujeito agido com conhecimento pleno ou parcial da situação de fato ou jurídica ("sabendo" ou "devendo saber") ou com simples culpa (Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, coment. ao art. 130 do Código Penal).

O § 1º do art. 180 do Código Penal, com redação da lei nova, descrevendo crime próprio, pune o comerciante ou industrial que comete receptação, empregando a expressão "que deve saber ser produto de crime". Como o caput prevê o conhecimento pleno ("coisa que sabe ser produto de crime"), que a doutrina e a jurisprudência conectam ao dolo direto, e o § 3º descreve a forma culposa, o § 1º só pode tratar de crime doloso com o chamado conhecimento parcial da origem ilícita da coisa (dúvida, insegurança, incerteza), que a doutrina liga ao dolo eventual (ou à culpa). Se o § 1º definisse modalidade culposa, a figura típica nele contida não teria sentido em face do § 3º, que enuncia o crime culposo. Dessa forma, de acordo com a lei nova, se o comerciante devia saber que a coisa era produto de crime (dúvida, incerteza, desconfiança, dolo eventual), a pena é de 3 a 8 anos de reclusão (§ 1º). E se sabia, i.e., se tinha pleno conhecimento? O fato não se encontra especificamente descrito no caput e nem no § 1º.

Haverá, no mínimo, cinco orientações:

1ª - se o comerciante ou industrial, presentes as elementares do tipo, sabia que o objeto material era produto de crime, responde por receptação dolosa própria (caput do art. 180), levando-se em conta que o § 1º só prevê o devia saber. Se sabia, o fato é atípico diante do § 1º, que exige o elemento subjetivo do tipo deve saber (princípio da legalidade ou de reserva legal). Se não sabia, embora devendo saber, aplica-se o § 1º;

2ª - o fato é absolutamente atípico, uma vez que o crime próprio de receptação de comerciante ou industrial se encontra descrito no § 1º, que não prevê o elemento subjetivo do tipo "sabe". Assim, o fato não se enquadra no caput e nem no § 1º;

3ª - o fato adequa-se ao § 1º, que abrange o sabe (dolo direto para a doutrina) e o deve saber (dolo indireto eventual): se a lei pune o fato menos grave com o mínimo de 3 anos de reclusão (deve saber), não seria crível que o de maior gravidade (sabe) fosse atípico ou punido com pena menor (1 ano de reclusão). O deve saber não pode ser entendido como indicativo somente de dolo eventual, de dúvida ou incerteza, significando que a origem criminosa do objeto material ingressou na esfera de consciência do receptador, abrangendo o conhecimento pleno (sabe) e o parcial (dúvida; desconfiança);

4ª - o tipo do § 1º deve ser totalmente desconsiderado porque ofende o princípio constitucional da proporcionalidade: se aplicado, "sabendo" o comerciante ou industrial que a coisa origina-se de crime (delito mais grave), a pena é de 1 a 4 anos de reclusão (caput do art. 180); "devendo saber" (infração de menor gravidade), de 3 a 8 anos (§ 1º). De modo que, consciente da origem delituosa do objeto material, responde por receptação dolosa própria (caput do art. 180); se devia saber, aplica-se a forma culposa (§ 3º), conforme pacífica jurisprudência anterior à lei;

5ª - concorda com a posição anterior, desconsiderando, contudo, somente o preceito secundário do § 1º do art. 180, permanecendo a definição do crime próprio do comerciante (preceito primário). Se "sabia", aplica-se o caput; se "devia saber", adequa-se o fato ao § 1º, com a pena do caput, cortando-se o excesso. A diferenciação pessoal e subjetiva é considerada pelo juiz na fixação da pena concreta.

A primeira orientação não pode ser aceita. Se o comerciante sabia, a pena é de 1 a 4 anos de reclusão; se devia saber, de 3 a 8 anos. O fato menos grave é apenado mais severamente.

A segunda posição carece de fundamento. A afirmação de que a conduta, consciente o comerciante ou industrial da origem ilícita do objeto material, é absolutamente atípica, despreza o processo de atipicidade relativa: é atípica em face do § 1º (delito próprio), porém a incriminação subsiste diante da redação prevista no caput (crime comum). A ausência da elementar desloca a adequação típica para outra figura.

O terceiro posicionamento desrespeita o princípio da tipicidade, uma vez que não distingue o sabe do deve saber. O deve saber, para essa orientação, inclui o sabe, o que é de todo improcedente, uma vez que constitui tradição de nossa doutrina, como vimos, ligar o deve saber ao dolo eventual ou à culpa, categorias psicológico-normativas de censurabilidade menor.

A quarta orientação somente peca porque desconsidera totalmente o § 1º.

Preferimos a quinta orientação, para nós a menos pior, tendo em vista que a lei nova veio para confundir, não para esclarecer: o preceito secundário do § 1º deve ser desconsiderado, uma vez que ofende os princípios constitucionais da proporcionalidade e da individualização legal da pena. Realmente, nos termos das novas redações, literalmente interpretadas, se o comerciante devia saber da proveniência ilícita do objeto material, a pena é de reclusão, de 3 a 8 anos (§ 1º); se sabia, só pode subsistir o caput, reclusão de 1 a 4 anos. A imposição de pena maior ao fato de menor gravidade é inconstitucional, desrespeitando os princípios da harmonia e da proporcionalidade.

A Constituição Federal, no art. 5º, XLII e XLIV, determina que a prática do racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, constituem crimes inafiançáveis e de pretensão punitiva e executória imprescritível, impondo-se reclusão. São também inafiançáveis e insuscetíveis de indulgência soberana a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo e os crimes hediondos (XLIII). No art. 227, § 4º, a Carta Magna impõe o dever de a lei punir severamente o abuso, a violência e a exploração da criança e do adolescente. Arrolando as proibidas (XLVII), apresenta uma relação de penas criminais permitidas, das mais graves às mais leves (XLVI), determinando sua individualização legislativa, judicial e executória (XLVI). E no art. 98, I, prevê a criação dos Juizados Especiais Criminais, permitindo a transação penal nos casos de "infrações de menor potencial ofensivo". Vigora, pois, como princípio expresso, o da individualização da resposta penal, determinando uma graduação de severidade da pena em face da prática do crime. Do contexto, extrai-se a regra da proporcionalidade: para os crimes mais graves, penas e conseqüências severas; para as infrações penais de menor potencial ofensivo, respostas mais brandas. E esse princípio conduz a outro, o da harmonia legislativa: na descrição das infrações penais e na cominação das sanções o legislador deve guardar o sentido da concordância, da conformidade e da igualdade. "Concebida como expressão de poder", observa Juarez Tavares, "a pena deve guardar uma relação proporcional com o dano produzido pelo delito", devendo o legislador imprimir "congruência nas cominações" (Critérios de Seleção de Crimes e Cominação de Penas, Revista do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992, nº de lançamento, p. 84, nº 6). Como dizia Heleno Cláudio Fragoso, "o legislador é obrigado a manter a lógica interna do sistema que ele estabelece na cominação das penas" (A Cominação das Penas no Novo Código Penal, em co-autoria com Lídia Sequeira, Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, 1975, 17/18:24). Devem, pois, ser respeitadas a "harmonia valorativa e a racionalidade", na palavra de Raquel Denize Stumm, obedecidos "parâmetros limitadores" que refletem "a unidade de sentido da ordem jurídica" (Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, São Paulo, Livraria do Advogado Editora, 1995, p. 72).

Considera-se, na individualização legislativa ou legal da pena, princípio expresso na Carta Magna, especialmente o desvalor da ação e não do resultado. O homicídio doloso é apenado mais severamente do que o culposo não por causa do resultado, que é o mesmo nos dois tipos, mas em face do desvalor da ação: a conduta dolosa é mais censurável do que a culposa. Eleva-se a vontade como elemento norteador da cominação quantitativa das sanções penais. E não só a vontade, como também eventuais elementos subjetivos do tipo. Assim, no delito de rapto (Código Penal, art. 219) é cominada pena maior do que a imposta ao seqüestro (art. 148) em face da presença do elemento subjetivo do tipo "para fim libidinoso", que não se insere no terreno do dolo. Na verdade, como diz Silva Franco, o princípio da reserva legal, que comanda os cânones constitucionais, encerra todos os elementos da conduta, vinculando-se à exigência da responsabilidade subjetiva (Crimes Hediondos, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 3ª ed., 1994, p. 273, nº 1). Além disso, leva-se em conta a gravidade objetiva do fato, razão pela qual o estupro é delito hediondo, considerado de extrema gravidade e sujeitando o autor a acentuadas conseqüências, enquanto a importunação ofensiva ao pudor configura simples contravenção, ensejando sanções alternativas e composição penal. As duas hipóteses são dolosas. A gravidade do fato, entretanto, é diversa. Assim, como observa Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, são conjugados o "conteúdo do injusto", que corresponde "à gravidade do delito cometido", e "a maior ou menor reprovabilidade de seu autor" (Proporcionalid y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal, Madri, Colex, 1990, p. 29). E essa censurabilidade do sujeito ativo do crime é considerada não somente na fase da imposição concreta da pena. O legislador, na elaboração da descrição do delito, leva em conta, muitas vezes, a qualidade do autor, como são as hipóteses de causas de aumento de pena e circunstâncias agravantes relacionadas com a função, profissão, atividade etc. (exs.: ser médico, funcionário público etc.).

A elaboração da norma penal incriminadora não pode subtrair-se à obediência aos preceitos constitucionais. Cumpria, pois, à Lei n. 9.426/96, ter como parâmetro o princípio da proporcionalidade entre o fato cometido e a gravidade da resposta penal, pois é nesse momento, o da individualização legislativa da pena (Constituição Federal, art. 5º, XLVI), que a proporcionalidade apresenta fundamentalmente a sua eficácia (Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, op. cit., pp. 29 e 30).

A legislação penal brasileira tem empregado as elementares "sabe" (ou "sabendo") e "deve saber" (ou "devendo saber") em várias disposições: no Código Penal, nos arts. 130, caput; 138, § 1º;174; 245; 316, § 1º; 324; 334, § 1º, "c" e "d", 339 e 340; na Lei de Imprensa, no art. 20, § 1º; no Código de Defesa do Consumidor, nos arts. 67 e 68; e assim por diante. Qual é a conduta mais censurável: de quem sabe ou de quem deve saber? Inegavelmente, de quem sabe, uma vez que tem conhecimento perfeito da situação de fato. Na receptação, tem plena consciência do elemento normativo (produto) "de crime". Já quem deve saber não tem certeza a respeito da situação típica. Tanto que, para alguns, age com culpa. Na receptação, é incerto, duvidoso o seu conhecimento a respeito da origem delituosa do objeto material, ou o adquire, como entende parte da doutrina, com falta de cuidado. Em face disso, quando a norma insere as duas expressões em tipo unitário, como ocorre no art. 130, caput, do Código Penal, embora a pena abstrata seja a mesma, compete ao juiz, em face do desvalor da ação, fixá-la concretamente considerando ter o sujeito agido "conhecendo" ("sabendo") a situação de fato ou "devendo conhecê-la" ("devendo saber"). Se, em crimes conexos cometidos em concurso, um réu "sabia" e o outro "devia saber", a pena concreta do primeiro deve ser maior do que a do segundo.

Se a pena, abstrata ou concreta, de quem "sabe", é mais censurável do que a do sujeito que "devia saber", sendo comum no sistema da legislação penal brasileira descrever as duas situações subjetivas no mesmo tipo, não podia a Lei nº 9.426/96, ferindo o princípio da proporcionalidade, inserir o "devia saber", de menor censurabilidade, em figura autônoma (§ 1º), com pena de 3 a 8 anos de reclusão, subsistindo o "sabia", de menor reprovabilidade, no caput, com pena de 1 a 4 anos. A proporcionalidade, que indica equilíbrio, foi ferida. Não se observou, na palavra de Suzana de Toledo Barros, a idéia "de relação harmônica entre dois valores" (O Princípio da Proporcionalidade e o Controle Constitucional das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Brasília, Brasília Editora, 1996, p. 71). Se a lei nova, fugindo do sistema, desvinculou o "deve saber" do "sabe", colocando-os em dois tipos autônomos, a pena abstrata do "deve saber" não podia ser mais grave do que a do "sabe". Como diz Assis Toledo, "a questão do tamanho de uma pena criminal não pode ser solucionada de modo empírico, isolado, em desacordo com o sistema de penas adotado" (Crimes Hediondos, Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, 5:68, nº 2).

O dolo e a culpa, na reforma penal de 1984, passaram a integrar o tipo, retirados da culpabilidade. Por isso, o art. 59 do Código Penal, ao prever os critérios diretivos do juiz na fixação da reprimenda, não faz referência à "intensidade do dolo" e ao "grau da culpa" (Damásio). Se fizesse, esses dados atuariam duas vezes na cominação da resposta penal: 1ª - na fase da individualização legislativa da pena abstrata; 2ª - na individualização judicial da pena concreta. O mesmo ocorre com outros elementos subjetivos do tipo. Como ensina Muñoz Conde, "o que não se pode fazer é querer introduzir" um mesmo dado "em duas categorias sistemáticas distintas, pois, então, para que servem as classificações e disposições sistemáticas?" (Introdução da Política Criminal y Sistema de Derecho Penal de Roxin, p. 14). Em alguns casos, entretanto, quando o legislador insere na mesma figura típica incriminadora elementos subjetivos de valores desiguais, a solução foge à regra: é imperativo, na fixação da pena, analisar "a intenção que emerge do fato", como recomenda o art. 46, § 2º, do Código Penal alemão. Se a lei insere as elementares sabe e deve saber em tipo incriminador unitário, como o faz no art. 130, caput, do Código Penal, comina a mesma pena abstrata nas duas hipóteses, cumprindo ao juiz diversificar as diferenças subjetivas na sentença. Então, embora esses elementos subjetivos estejam contidos no tipo, o juiz não pode fugir ao dever de verificar a presença de um ou de outro para dosar a pena, noção que se aproxima da doutrina de Luiz Flávio Gomes, para quem o dolo, que também é um elemento subjetivo do tipo, cumpre dupla função: integra o tipo e atua na censura da culpabilidade (Erro de Tipo e Erro de Proibição, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 3ª ed., 1996, p. 121, nº 40). Se, contudo, o legislador pretende descrever um daqueles elementos em figura típica autônoma, não pode deixar de observar o princípio da harmonia na cominação das penas, devendo impor em abstrato quantidades diferentes para situações psicológicas diversas, em função da maior ou menor censurabilidade da conduta subjetiva.

A situação mostra-se mais absurda para quem entende que a expressão "deve saber" indica culpa. Estaria o legislador cominando pena de 3 a 8 anos de reclusão no caso de crime culposo e de 1 a 4 na hipótese dolosa.

Dir-se-á que o tipo do § 1º é próprio do comerciante ou industrial: por isso a pena é maior. Sim, desde que a disposição contivesse a cláusula "sabe".

Se o fato de menor gravidade subjetiva, em face da redução da censurabilidade da conduta, é apenado mais severamente do que o de maior reprovabilidade, cumpre ao intérprete cortar o excesso ("teoria da proibição do excesso" ou da "redução teleológica"). Como vimos, o sistema criminal, sob o comando dos princípios constitucionais da legalidade e da proporcionalidade, impõe harmonia na dosimetria abstrata e concreta da pena. E, como diz Raquel Denize Stumm, "uma lei infraconstitucional que contradiga um princípio constitucional é inválida" (op. cit., p. 71), cabendo ao exegeta e ao aplicador da lei, na lição de Silva Franco, "tanto quanto e precedentemente ao legislador, obviar o absurdo, afastar o paradoxo" (Crimes Hediondos cit., p. 274, nota 1). O juiz, ensina Raúl Cervini, "deve prescindir da pena ou impô-la abaixo do limite legal quando ela se mostra manifestamente excessiva". Cabe-lhe — prossegue — "aplicar pena inferior à estabelecida para determinado delito se do contexto geral do corpo normativo resultar o entendimento inequívoco de que a mesma conduta é castigada em outro lugar com uma penalidade menor" (Os Processos de Descriminalização, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p. 114).

Sugerimos que o preceito secundário do § 1º do art. 180 seja desconsiderado, permanecendo, entretanto, a figura do crime próprio (preceito primário). De modo que:

1º - se o comerciante sabia da origem criminosa do objeto material, aplica-se o caput do art. 180 (preceitos primário e secundário);

2º - se devia saber, o fato se enquadra no § 1º (preceito primário), com a pena do caput (preceito secundário). Não nos socorremos da forma culposa, uma vez que o "deve saber" está descrito e contém conduta subjetiva mais grave do que a simples inobservância do cuidado objetivo necessário.

Corta-se o excesso (de 3 a 8 anos de reclusão), reduzida a pena à cominação mais grave subsistente (de 1 a 4 anos de reclusão).

A pena abstrata é a mesma nos dois casos. Na individualização concreta, entretanto, o juiz deve considerar a diferença subjetiva, como faz nas hipóteses dos arts. 130, 174, 334 etc. do Código Penal, e a qualificação especial do sujeito ativo (comerciante ou industrial).

Aguarda-se que o legislador, para compor a harmonia típica, altere a redação do § 1º, inserindo a cláusula "que sabe ou deve saber". Enquanto isso não ocorre, cumpre-nos a missão a que se refere Raquel Denize Stumm: "O intérprete exerce a função de esclarecedor do conteúdo da lei em conformidade com a Constituição" (op. cit., p. 71).


Damásio E. de Jesus, Procurador de justiça aposentado.

JESUS, Damásio Evangelista de. O sabe e o deve saber no crime de receptação. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.52, p. 05-07, mar. 1997.

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