segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Artigo: Ônus da prova

Após situar o desinteresse do mercado jurídico para com o processo penal, eis que se trabalha com um material dogmático sucateado, anacrônico, o douto Fauzi Hassan Choukr, argutamente, sublinha que, na verdade, a prática revela uma realidade sombria, a de se procurar adaptar a Constituição ao texto processual penal, e não o oposto(1).

O onus probandi, por exemplo, sobretudo após a Carta de 1988, é assunto abordado sob a ótica dos falsos truísmos, objetivados pelo proficiente Alberto Silva Franco quanto à aplicabilidade da regra tempus regit actus(2). Há uma obstinada insistência no tratamento dos motes do Processo Penal como se cogitassem de matéria processual civil.

O estatuto processual destina o art. 156 à questão, gizando que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer. Nas faculdades, nos ensinamentos fulcrados na analogia, foram ao Processo Civil e transplantaram para o Penal o art. 333. Reitera-se, assim, que à acusação cumpriria o ônus de provar os fatos constitutivos (existência da infração e sua autoria). A defesa se desincumbiria dos fatos extintivos, impeditivos e modificativos. Reconhece-se que, tangentemente à culpabilidade, "a jurisprudência construiu uma curiosa interpretação: o dolo é presumido, emergindo desde que provadas a materialidade e a autoria, enquanto a culpa necessita ser demonstrada pela acusação"(3) (grifos nossos).

Estabeleceu-se, dessa forma, contornando-se as dificuldades, principalmente em se olhando com os olhos da teoria finalista, uma presunção iuris tantum que preponderaria sobre o dogma constitucional da presunção de inocência, anteriormente insculpido na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Outro obstáculo à criação em causa residiria no in dubio pro reo, máxima derivada do princípio da presunção de inocência(4). Arrostando o estorvo, Magalhães Noronha, magistralmente, consignou: "Vê-se, pois, que o ônus da prova cabe às partes. Há uma diferença, porém. A da acusação há de ser plena e convincente, ao passo que para o acusado basta a dúvida"(5). No mesmo sentido Frederico Marques(6).

O sempre consultado Tourinho, discrepando da curiosa construção pertinente ao dolo, preleciona: "se o réu goza da presunção de inocência, é evidente que a prova do crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti, deve ficar a cargo da acusação"(7).

Sempre me pareceu por demais evidente que à acusação cumpre a demonstração dos elementos constitutivos da infração. Quando o réu alega excludente de ilicitude ou de culpabilidade está negando a imputação que lhe foi feita, a prática de fato punível e, em conseqüência, a sua defesa escuda-se na tese de negativa de autoria. O autorizado Sergio Hamilton Demoro argumenta a respeito do conceito de confissão qualificada: "Desde logo impõe-se um reparo ao conceito de confissão qualificada, muito difundido na doutrina. Segundo tal entendimento, a confissão qualificada se daria quando o autor da infração penal, embora atribuindo a si a prática do ilícito penal, alega, em seu favor, qualquer fato ou circunstância que exclua ou o isente de pena. Entendo, porém, que a chamada confissão qualificada, dentro de um conceito técnico de confissão, não pode ser admitida como tal. Com efeito, se emprestarmos ao vocábulo a significação que vimos acima, o réu, em tal caso, não está reconhecendo a responsabilidade pela prática da infração penal. Muito pelo contrário, está afastando de si tal responsabilidade"(8). Por seu turno, Afrânio Silva Jardim, judiciosamente, fixa, depois de descartar a aplicação automática do art. 333 do Código de Processo Civil, que na verdade o réu não formula qualquer pedido no processo penal, tratando-se de ação condenatória, arrematando: "Apenas pode se opor à pretensão punitiva do Estado, procurando afastar o acolhimento do pedido do autor. Mesmo quando o réu alega um fato que poderia caracterizar uma legítima defesa, nada mais faz do que negar os fatos como descritos na peça acusatória"(9). Bertolino, objetivamente, assevera que no processo penal cumpre sempre à acusação o ônus de demonstrar a culpabilidade, único modo válido de destruir o mencionado princípio da inocência(10).

Com efeito, segundo Cafferata Nores, o sistema jurídico vigente requer que o tribunal, para poder prolatar uma sentença condenatória, "alcance, da prova colhida em juízo, a certeza acerca da culpabilidade do acusado"(11).

Descabe, nesta nota, analisar a parte final do art. 156 da lei processual, certo que o magistrado não pode se despedir da imparcialidade, atuando como um investigador ou um defensor, podendo tão-somente dirimir dúvidas sobre ponto relevante e o fato de que, conforme Max Hirschberg, casos demonstram o perigo da "convicção íntima", mais emocional do que racional, que domina ainda hoje a justiça penal(12).

Notas

(1) Garantias Constituticionais na Investigação Criminal, p. 25, RT, SP, 1995.

(2) Crimes Hediondos, p. 151, 3ª ed., RT, SP, 1992.

(3) Adalberto José Q. T. Camargo Aranha, Da Prova no Processo Penal, pp. 10-11, 3ª ed., Saraiva, SP, 1994.

(4) Cafferata Nores, La Prueba en el Proceso Penal, p. 10, 2ª ed., Depalma, B. Aires.

(5) Curso de Direito Processual Penal, p. 91, 21ª ed., SP, 1992.

(6) Elementos de Direito Processual Penal, vol. II, p. 288, Forense, RJ, 1965.

(7) Processo Penal, vol. III, p. 215, Saraiva, SP, 17ª ed., 1995.

(8) "O desvalor da confissão policial", in Doutrina, Instituto de Direito, RJ, nº 1, p. 81, 1996.

(9) Direito Processual Penal, pp. 295 e 311, 5ª ed., Forense, RJ, 1995.

(10) Código de Procedimiento de la Provincia de Buenos Aires, p. 286, Depalma, B. Aires, 1987.

(11) Op. cit., p. 10.

(12) La Sentencia Erronea en el Processo Penal, trad. de Thomaz A. Banzhaf, p. 169, Ed. Jurídicas Europa-América, 1969.


Antônio Carlos Barandier, Advogado e professor de Processo Penal da Faculdade Cândido Mendes - Ipanema, RJ.

BARANDIER, Antonio Carlos da Gama. Ônus da prova. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.52, p. 07, mar. 1997.

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