quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Artigo: A nova redação dos artigos 155 e 156 do código de processo penal e a produção antecipada da prova testemunhal na fase do inquérito policial

O inquérito policial visa apurar a existência de infração penal e de sua autoria, oferecendo elementos ao titular da ação penal para a promoção da peça acusatória inicial. A investigação, geralmente a cargo da Polícia Judiciária, se desenvolve por impulso oficial sob a forma escrita, sem in­tervenção das partes (modelo inquisitório), sendo formada por uma série de diligências como buscas e apreensões, exames de corpo de delito, interrogatórios, depoimentos de testemunhas e ofendidos e reconhecimento de pessoas e coisas.

A prova colhida exclusivamente na fase de inquérito policial não passa pelo crivo do contraditório, com a presença das partes e, em razão disso, está sujeita ao contraditório diferido ou deve ser repetida em juízo para ser considerada apta a fundamentar o convencimento do julgador. Algumas provas produzidas na fase policial, embora não sujeitas ao contraditório prévio tais como as perícias realizadas em infrações que deixam vestígios (CPP, art. 158), guardam a presunção relativa de veracidade capaz de atestar a materialidade da infração e, em regra, não são repetidas em juízo em face do desaparecimento dos vestígios, embora seja admitida prova em contrário.

Na fase de investigação policial, admite-se a produção da prova através da intervenção judicial como a interceptação telefônica, a quebra do sigilo bancário e a busca e apreensão; nesses casos o contraditório será diferido para a fase judicial.

Dentre as provas colhidas no inquérito policial, a prova testemunhal tem valor relevante, pois não raras vezes, por deficiência de perícia técnica adequada e oportuna, as infrações penais só podem ser comprovadas por declarações de pessoas que assistiram ao fato ou dele tiveram conhecimento.

A prova testemunhal exclusivamente colhida na fase inquisitorial, contudo, não pode fundamentar uma decisão judicial condenatória(1), necessitando ser repetida na ação penal sob o crivo do contraditório.

Aguardar a conclusão das investigações policiais para a adequada propositura da ação penal, resguardando a dignidade da pessoa humana que não deve ser atingida por denúncia temerária, por vezes, no entanto, leva ao perecimento da prova testemunhal colhida na fase investigatória. Daí a necessidade e urgência, ainda na fase de inquérito policial, da produção antecipada da prova testemunhal perante o juiz quando atendidos os requisitos para a concessão da cautelar: fundado receio de que a demora e a incerteza quanto ao comparecimento da testemunha em juízo possam determinar o perecimento da prova.

A probabilidade de perecimento da prova testemunhal, a exemplo do que prevê a legislação processual penal para a fase judicial (CPP, art. 225), verifica-se quando a testemunha tiver necessidade de ausentar-se da comarca para lugar incerto, ou por enfermidade ou velhice inspirar receio de que ao tempo da instrução criminal já não exista.

A Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008, que alterou a redação dos artigos 155(2) e 156(3) do Código de Processo Penal, previu a possibilidade de, na fase de inquérito policial, desde que preenchidos os requisitos para a concessão da cautelar, poder ser deferida pelo juiz a produção antecipada da prova testemunhal, para resguardar o direito à prova que está ligado à garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV) correlato aos direitos de ação (CF, art, 5º, XXXV) e de defesa (CF, art. LV), em que procuram as partes demonstrar a veracidade de suas afirmações. Fernandes (2000, pp. 68-69) sintetiza que o direito à prova se manifesta processualmente através de vários direitos da parte: “a) direito de requerer a produção da prova; b) direito a que o juiz decida sobre o pedido de produção da prova; c) direito a que, deferida a prova, esta seja realizada, tomando-se todas as providências necessárias para sua produção; d) direito a participar da produção da prova; e) direito a que a produção da prova seja feita em contraditório; f) direito a que a prova seja produzida com a participação do juiz; g) direito a que, realizada a prova, possa manifestar-se a seu respeito; h) direito a que a prova seja objeto de avaliação pelo julgador.”

Uma vez produzida a prova testemunhal na fase inquisitorial sob o crivo do contraditório, ela será apta a realizar sua finalidade — convencer o juiz a respeito da existência ou inexistência de fato pretérito, da sua autoria e das circunstâncias em que ocorreram —, visando propiciar uma futura decisão judicial em ação penal que restabeleça um direito violado ou ameaçado.

O pedido de produção antecipada de prova deve ser processado em autos apartados ao da investigação policial da seguinte maneira: 1- formulação de requerimento motivado pelo Ministério Público (ação penal pública), pelo ofendido (ação penal privada) ou pelo indiciado ou suspeito, endereçado ao juiz competente; 2- para apreciar o pedido, em concorrendo dois ou mais juízes igualmente competentes ou com jurisdição cumulativa, prevalecerá aquele que tiver antecedido aos outros na prática de algum ato do procedimento investigatório, tais como decretação de prisão preventiva, concessão de fiança, mandado de busca e apreensão ou autorização de interceptação telefônica (CPP, art. 83). Não havendo prevenção entre os juízes, a precedência da distribuição fixará a competência (CPP, art. 75); 3- deferido o pedido, o juiz procederá à ouvida da testemunha, com a participação do Ministério Público, do ofendido, do indiciado ou suspeito, devidamente acompanhados de advogado, resguardado o contraditório.

Como, no inquérito policial, ainda não foi delimitada a acusação que apenas ocorre com o oferecimento da denúncia ou da queixa, quais devem ser os fatos questionados à testemunha sobre o crivo do contraditório? A prova oral deve ser colhida quanto à provável imputação ao agente descrita no auto de prisão em flagrante ou em outras provas até então coletadas. Evidentemente que a prova cautelar produzida sob o crivo judicial só terá valor a respeito dos fatos já identificados e definidos e entre as partes que participaram da coleta da prova, resguardada a ampla defesa e o efetivo contraditório.

Vale ressaltar que o deferimento e a produção da prova como cautelar não subtrai a imparcialidade do juiz que visará unicamente perquirir fatos reais e verossímeis (onde e como ocorreram, quem os praticou e em que circunstâncias), não conhecendo o resultado que a prova trará ao mundo jurídico e qual das partes será beneficiada com a sua produção.

O processo penal acusatório não se desnatura com a produção antecipada da prova testemunhal (cautelar) na fase de inquérito policial, permanecendo hígidos os seus corolários: “a) os elementos probatórios colhidos na fase investigatória, prévia ao processo, servem exclusivamente para a formação do convencimento do acusador, não podendo ingressar no processo e ser valorados como provas (salvo se se tratar de prova antecipada, submetida ao contraditório judicial, ou de prova cautelar, de urgência, sujeita a contraditório posterior); b) o exercício da jurisdição depende de acusação formulada por órgão diverso do juiz (o que corresponde ao aforisma latino nemo in iudicio tradetur sine accusatione); c) todo o processo deve desenvolver-se com contraditório pleno, perante o juiz natural” (Grinover, 1999, pp. 71-79).

Admitir a produção antecipada da prova testemunhal na fase de inquérito policial, por sua vez, não confere ao juiz a atribuição de investigador, própria da autoridade policial, senão a função de determinar providências cautelares sob o manto do contraditório e da ampla defesa para evitar o perecimento do direito do Estado (jus puniendi) ou do agente (jus libertatis), enfim a perda da possibilidade de elucidação da verdade real.

Na busca da verdade real, a extensão do direito à prova, apenas encontra barreira na inadmissibilidade da prova obtida por meio ilícito (CPP, art. 157), ou quando, na sua produção, não são resguardados os princípios do contraditório e da ampla defesa.

A concessão judicial da medida cautelar de antecipação da produção da prova testemunhal, na fase de inquérito policial, não atenta contra qualquer princípio constitucional de garantia individual ou mesmo contra o sistema acusatório e, nos dias atuais, sua importância se revela, especialmente, no combate à força do crime organizado que aposta na ineficiência de técnicas periciais do Estado, no poder de atemorizar e fazer desaparecer testemunhas, de corromper agentes públicos e na demora da prestação jurisdicional.

Referências bibliográficas

FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2ª ed. ver. e atual., São Paulo: RT, 2000.

GRINOVER, Ada Pellegrini. “A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, n. 27, pp. 71-79, jul./set. 1999.

Notas

(1) STJ – RHV nº 10.456/GO, 6ª T., rel. min. Vicente Leal, j. 29.09.01, v.u., DJU 15.10.01, p. 299.

(2) “Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”

(3) “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida;”


Carla Campos Amico, Promotora de Justiça da Comarca de Natal-RN; especialista em Criminologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e especialista em Processo Penal pela Universidade Potiguar e Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Norte.

AMICO, Carla Campos. A nova redação dos artigos 155 e 156 do Código de processo penal e a produção antecipada da prova testemunhal na fase do inquérito policial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 7-8, nov. 2008.

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