quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Artigo: Lei nº 9.434/97: Os transplantes e a polêmica sobre seus aspectos contitucionais e penais

A Lei nº 9.434 de 04.02.97 que dispõe sobre a remoção de órgãos e tecidos para fins de transplantes inovou a ordem jurídica em muitos sentidos, inclusive no âmbito penal, criando em seu Capítulo V, Seção I, uma série de crimes cujas penas vão de seis meses de detenção a 20 anos de reclusão (e até 360 dias multa). Ela pode ser abordada sob vários aspectos já que seus efeitos se espraiam sobre distintas searas do Direito . No âmbito civil inova no sentido de disciplinar o evento morte, ampliando a primitiva concepção do Direito Civil que vinculava tal fenômeno à ausência de sinais vitais, para trazer à nivel legislativo especial o conceito de morte clínica representada pela "morte encefálica"do doador (cujos primeiros critérios conceituais foram desenvolvidos em Harvard nos anos 60 - A definition of irreversible coma: Report of the ad hoc committee of the Harvard Medical School to examine the definition of brains death- 1968). Mas talvez ponto crucial da Lei nº 9.434/97 é seu aspecto constitucional que acaba por influir decisivamente em suas disposições penais, como veremos adiante. Resumidamente podemos dizer que tal Lei possui méritos e acertos mas também parece cometer sérios equívocos, reafirmando a idéia de que o paradoxo acompanha a conduta do legislador brasileiro como um estilo de técnica legislativa. O lado positivo da lei é que o Brasil parece tomar posição de maneira mais enérgica com relação à temas fundamentais e transcedentais, como o transplante de órgãos, optando por formular uma legislação definitiva sobre o assunto (enquanto isso ainda não ocorre em muitos países ditos "desenvolvidos") o que prova que seguimos um caminho de opções temáticas por vezes acertado. Em nossa experiência pessoal tivemos a oportunidade de entrar em contato com a problemática dos transplantes de órgãos à nível europeu, através de visitas a centros especializados e freqüência a debates sobre o tema. O que restou desta experiência empírica é a certeza de que o drama vivido pelos pacientes portadores de falência de órgãos vitais ou vítimas de importantes deficiências é intenso e comovedor. Assim, qualquer crítica à intenção de trazer à luz uma legislação que favoreça a solução do problema vivido por estas pessoas esbarra no manto protetor de sua exposição de motivos. Porém, necessitamos ir além dos motivos invocados para a elaboração da norma. E neste ponto surge a polêmica. Justificamos:

1) O artigo 4º da lei estabelece que todos "salvo manifestação de vontade em contrário" são doadores de órgãos. Com isso, pela primeira vez no Brasil, o legislador ordinário manifesta-se sobre a "autodeterminação" do ser humano e o faz de maneira a levantar uma polêmica. É que por lei não somos detentores — em princípio — de nosso patrimônio corporal (que para muitos não se extinguiria pela morte, em boa hermenêutica...). Desde que nascemos temos autonomia de vontade (por vezes suprida por familiares) mas ao morrer, salvo manifestação formal em contrário, adquirimos a condição de títeres orgânicos nas mãos do Estado. Tudo estaria bem se isso não esbarrasse em princípios constitucionais que protegem a autonomia da vontade inclusive naquilo que pertine à individualidade post mortem. Sob estes aspectos é perfeitamante possível afirmar que a lei é inconstitucional, o que macula a aplicabilidade dos dispositivos penais que decorrem de sua existência: vale dizer que enquanto não resolvida a constitucionalidade intrínseca da lei seus dispositivos penais não são inaplicáveis. Isso pode ser argumentado pela via de ação perante o Supremo Tribunal Federal, dando lado ainda à discussão sobre o papel que o Poder Judiciário cumpre em exercer uma "função corretiva" sobre normas de natureza penal, que violem direito constitucional, afastando sua aplicação total ou parcialmente. Buscarei em breves palavras explicar esta arrojada posição. O art. 5º da CF/88 imprime um caráter de prestígio à autonomia do homem. Por força de seu § 2º encontramos a existência de verdadeiros direitos implícitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais a que aderimos. Seguindo o espírito garantista das normas contidas no art. 5º, em comunhão com normas de porte internacional às quais nos vinculamos (Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, ambas de 1948) concluímos que o respeito à autodeterminação humana é a pauta básica dos Estados Democráticos em que o Direito impera. A própria Declaração Universal protege o atributo da razão como um princípio e brinda a liberdade de consciência expressamente em seu art. I. Assim, uma norma que neste âmbito suplante ab initio a vontade humana seria inconstitucional. O tema é bastante polêmico. O prestígio ao princípio de que o homem possui uma vontade livre (liberam voluntatem habens) foi largamente debatido ao longo da história por distintos pensadores, como Tomás de Aquino que afirmava que "o homem está dotado de livre arbítrio e domínio sobre seus atos" (in Summa Theologiae) passando a ser discutido por juristas como Binding (The release of destruction of life devoid of value, 1920) e outros estudiosos modernos de maneira cada vez mais intensa, elevando progressivamente o status do aspecto volitivo do homem.

2) "A crise valorativa do direito à vida": Segundo boa parte da doutrina penal moderna o direito à vida está assumindo um caráter relativo, o que vem sendo reconhecido por legislações modernas (como a da Holanda) e por uma jurisprudência liberal como a americana (p.ex. casos Karen Quinlan, 1976, T.S.N. Jersey e Cruzan, 1990, Trib. Supremo dos EUA). Essa "relativização da proteção jurídica da vida", nas palavras de Arthur Kaufmann, o ilustre penalista de Munich, conduz à uma necessária discussão sobre o valor do consentimento e da vontade humana. A autodeterminação do homem é conseqüência da vida moderna, e é provavelmente a maior conquista do ser humano no último século, pois traça os limites de um universo pautado pela consciência e pelo apreço ao arbítrio individual, base da civilização desde seus primordios. No caso brasileiro, o legislador manifesta-se sobre o intrincado tema da vida encarando-o sob um novo paradigma — seu valor. Isto traz consigo valores correlatos como a dignidade e qualidade de vida, de maneira que ela já não é um conceito absoluto, mas sim um valor relativo. O que importa no estágio atual de evolução da humanidade não é a vida em si mas os níveis de qualidade e dignidade com que esta é levada adiante. Estes valores são importantes também para o receptores de órgãos. Assim, surgiu a Lei nº 9.434/97 e os dispositivos penais que tutelam seus bens jurídicos. O problema é que — por princípio — a vontade do receptor acaba por eclipsar a vontade do ser humano vivo, na medida em que todos nós somos doadores em potencial.

3) A autodeterminação negativa: O direito subjetivo à autodeterminação decorre do princípio da autonomia da pessoa, e como direito subjetivo implica numa relação de obrigação entre duas pessoas (credor-devedor) sobre algo. A autodeterminação obriga ao Estado a não intervir na disposição de nossos despojos sem antes consultar nossa vontade. Trata-se portanto de um direito "negativo". Violado tal direito a norma seria inconstitucional em todos seus termos.

4) Recusa expressa: ao prescindir do consentimento a lei exige a negativa expressa que deve constar formalmente na "Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação"através da expressão "não-doador" (art. 4º §1º). Esta formalidade é preocupante (pois em outros países basta até mesmo a declaração perante testemunhas). Por razões obvias esta providência deixará de existir. Não podemos esquecer que (longe de uma constatação preconceituosa) vivemos em um país consideravelmente pobre. Nosso povo não é o povo instruído e equipado juridicamente de que trata a lei. É razoável perguntar: Será que as pessoas menos ilustradas irão procurar os organismos oficiais para constar a condição de não-doadores? Será que até mesmo as pessoas com um mínimo de instrução e condigna condição de vida irão tomar as providências formais a que lei se refere ? Por que não consultar por ocasião da expedição do documento: "Quer ser doador?". Seria uma alternativa.

5) Necessidade de consulta à família: a Lei deixa de amparar a possibilidade de oposição por parte da família, o que aumenta a polêmica.

6) Transplantes de tecido fetal: uma grave omissão. Com o avanço a ciência estudos demonstram que as células, tecidos e órgãos fetais demonstram vantagens clínicas em transplantes. Desde o início dos anos 80 os tecidos embrionários estão sendo utilizados para combater (com grandes perspectivas de sucesso) o mal de Parkinson, o Alzheimer, a leucemia e problemas em órgãos vitas, porque as células fetais crescem rapidamente, adaptam-se com facilidade ao transplante e quase não provocam reação imunológica (cf. The New Journal of Medicine, 318, 1988, p. 51). A Lei nº 9.434/97 não protege os abortos expontâneos ou clínicos, deixando de valorizar o consentimento materno ou familiar. Ocorre mais um defict de proteção penal ao embrião e à vida intra-uterina.

7) O Direito comparado: A abordagem do tema em outros países revela que a questão é realmente tormentosa. Os penalistas costumam identificar três sistemas para disciplinar a matéria: o modelo do consentimento, o modelo do estado de necessidade e a solução da oposição. O sistema do consentimento exige a manifestação da vontade autorizando o transplante. No sistema de oposição o transplante está em princípio permitido sendo proibido no caso de recusa do doador. O estado de necessidade (que suprime a vontade) está reservado para os casos limítrofes de calamidades ou guerra. Cada país faz sua opção:

a) A Espanha possui uma lei (n.º 30/79) que regula a matéria. Nela primam os interesses do receptor, existindo uma presunção iuris tantum que permite a extração de órgãos no caso do doador não deixar expressa oposição.

b) Na Austria foi adotada a solução da oposição (Widerspruchslösung). Naquele país a Lei de Instituições Hospitalares (§ 62 e segtes.) permite o transplante, que somente deixará de ocorrer quando conste oposição expressa do falecido. Leva em consideração que a maioria não realiza declaração de oposição o que aumenta as possibilidades de ter acesso à órgãos disponíveis, valorizando a vida dos doentes. Entende que a possibilidade de efetuar declaração de oposição não vulnera princípios penais nem o Direito Constitucional. É a autodeterminação positiva. Como afirma Heinz Zipf (o famoso Catedrático de Direito Penal de Salzburg, Áustria) o modelo do consentimento tem o inconviente de diminuir o número doadores ao solicitar continuamente voluntários. Ponderando a situação: o modelo da oposição não ofereceria obstáculos constitucionais ou político-criminais.

c) A Alemanha não adota formalmente a solução da oposição (Widerspruchslösung). Neste país, a ausência de legislação sobre o tema obriga recorrer ao Princípios Gerais de Direito que implica na adoção do sistema do consentimento para justificar a extração de órgãos (Schönke-Schröder-Eser, §223, Rn. 50).

Para todos países vigora o binômio voluntariedade (em sentido amplo) e gratuidade da doação.

8) A lei deveria criar um sistema de recepção e distribuição de órgãos. Nos países que já trataram do assunto ficou demonstrado que é fundamental a existência de uma rede que coordene a localização do doador, o transporte de órgãos, que organize as listas de espera, que crie meios instrumentais e tecnológicos (equipamentos, treinamento, e instrução) possibilitando a realização dos transplantes. É necessária uma infraestrutura de nível nacional, com setores hospitalares específicos. Como será a situação prática? Ademais, são necessários recursos, dinheiro e vontade política. Tudo isso antes da própria existência da norma. Tais atitudes são o pressuposto lógico para a formação de uma Política Criminal sobre o assunto.

9) Tipos Penais: A lei cria basicamente os seguintes tipos penais - a) Art. 14 caput: Tipo de natureza aberta que pune os transplantes "em desacordo com as disposições desta lei". É um tipo impreciso, que nivela a conduta típica, sem descrevê-la, utilizando a tipicidade indireta interna ao reportar-se "aos termos desta lei". O desvalor é o mesmo para qualquer conduta. Pena: reclusão de 02 a 06 anos. b) Art. 14 §. 1º: "Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena - Reclusão de 03 a 08 anos e multa". A pena é agravada no concurso de agentes, deslocando-se a agravante genérica do art. 62, IV para norma especial que pune o agente que atua à mando ou mediante vantagem econômica. Perguntamos: Onde está a punição especial daquele que promove, organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes? Nos contentamos com a agravante genérica do art. 62, I do CP? c) Tipo clássico de lesões corporais classificado pelo resultado: § 1º: Lesões Graves - pena de reclusão 03 a 10 anos, § 2º: Lesões Gravíssimas - pena de reclusão de 04 a 12 anos. Os delitos estão reservados para intervenções em pessoas vivas, sendo que pena para a lesão corporal foi consideravelmente aumentada (varia no CP de 01 a 08 anos).d) Art. 14, § 4º : resultado morte - pena de reclusão de 08 a 20 anos. O legislador cria um crime qualificado pelo resultado. É um crime preterdoloso, utilizando o critério das qualificadoras (pena mínima/máxima). e) Art. 15 : é o tráfico, cuja pena vai de 03 a 08 anos de reclusão. f) Art. 16: pune a realização do transplante tendo ciência do desrespeito à Lei 9434/97. Não identifica especificamente quais as pessoas sobre as quais recai a norma (somente médicos?). g) Art. 17: desdobramento da modalidade de tráfico ou forma especial de receptação — pune-se o contato com o órgão em termos de transporte, guarda ou distribuição. Pena: reclusão de 06 meses a 02 anos. Não há forma culposa. h) Art. 18 : pela primeira vez no Brasil pune-se o atentado ao consentimento como delito autônomo. A realização do transplante sem consentimento implica em pena de detenção de 06 meses a dois anos. I) Art. 19: proteção da dignidade do morto e sentimentos da família - não recompor seu aspecto estético ou retardar sua restituição à família supõe pena de 6 meses a 2 anos.J) Publicações em desacordo com a lei sobre transplantes: penas de multa.

O centro polêmico da lei é que ela considera como fundamento a doação e toma a transmissão fragmentária da existência humana como um princípio, apenas afastado por uma solene manifestação da vontade. O certo é que a vida realmente possui distintas dimensões, e uma delas é a solidariedade frente à morte, que se concretiza no ato de disposição do próprio corpo — nossa individualidade material e nossos únicos limites verdadeiramente visíveis. Para muitos o destino desta última fronteira do homem somente à ele pertence (expressa ou tacitamente). Esta escolha de dignificação de sua matéria é inviolável, pois é uma opção íntima em relação à própria humanidade como um todo, e uma maneira altruísta de separar o ente moral do ente físico, num ato de despedida carregado de humanitarismo que necessariamente convém ser voluntário pelos reflexos globais que produz (tais como a formação de uma vontade coletiva ou de um pensamento culturalmente aceito no que tange à doação de órgãos). Muitos poderão reclamar : solidariedade não se impõe! É válido argumentar que não se pode normatizar a obrigatoriedade de uma conduta tão visceral em função de um critério eminentemente utilitarista.

A idéia de transplantar é antiga, nasceu na Índia há mais de 3000 anos. Acompanha o homem em vários momentos, inclusive para fomentar a polêmica sobre o significado da vida, o papel do Estado na proteção (inclusive penal) deste bem supremo e como ele situa o homem nesta problemática. Por fim, parece oportuna a sabedoria de Kant ao expressar que "a humanidade mesma é uma dignidade, porque o homem não pode ser tratado por nenhum homem (nem por outro, nem sequer por si mesmo) como um simples meio ou instrumento, senão sempre, como um fim".


William Terra de Oliveira, Promotor de justiça em São Paulo, doutorando em Direito Penal perante a Universidade Complutense de Madrid e diretor de relações internacionais da RBCCrim.

OLIVEIRA, William Terra de. Lei n. 9434/97 : os transplantes e a polêmica sobre seus aspectos constitucionais e penais. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.52, p. 10-11, mar. 1997.

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