quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Artigo: Juiz inquisidor e a reforma do código de processo penal: uma questão controvertida

As tão esperadas mudanças no Código de Processo Penal vieram. Mas, infelizmente, com surpreendentes distorções. Se, de um lado, é um alívio a disposição segundo a qual “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação...” (art. 155, do CPP), de outro, vê-se o estabelecimento de regras que legitimam a figura de um juiz inquisidor, inexistente no processo penal do tipo acusatório e a afronta à amplitude do direito de defesa.

Atendendo à ansiedade de um processo mais célere, o artigo 212, trazido pela Lei nº 11.690/08, regulamentou a possibilidade de as partes indagarem diretamente à testemunha, sem desnecessárias repetições e interpretações. Sem embargo, no parágrafo único, vem a seguinte disposição: “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.”

Tal disposição vaga e elástica coloca a defesa em posição absolutamente desequilibrada e injusta, merecendo severas críticas. O que são pontos não esclarecidos? No que consiste tal possibilidade? Se pensarmos que o juiz não tem no processo penal a figura de inquisidor e, portanto, perseguidor das proposições acusatórias, dever-se-ia pensar que pontos não esclarecidos são obscuridades percebidas na resposta da testemunha em decorrência das indagações direta das partes. Na prática, no entanto, tal dispositivo veio para consagrar a participação do magistrado na busca de provas, afastando-se cada vez mais de sua posição eqüidistante das partes e próxima da Justiça. E pior, após a defesa ter direito de questionar as testemunhas. Vale dizer, feitas as reperguntas da defesa, o juiz, a pretexto de buscar apenas “esclarecimentos” pode desmontar o trabalho defensivo.

Como ensina o prof. Tourinho Filho “No Direito pátrio, o sistema adotado é o acusatório. A acusação, nos crimes de ação pública, está a cargo do Ministério Público(..)”(1). Aliás, lembrando a lição de Marcellus Polastri Lima, o sistema acusatório já adotado anteriormente à Carta de 1998 “hoje deflui de princípios processuais inseridos na própria Constituição, mormente ao estabelecer a Carta Magna o princípio do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV), o princípio do juiz natural e imparcial (arts. 5º, LIII, 92 e 126) e, principalmente, a privatividade da promoção da ação penal pública assegurada ao Parquet (art. 129, I)”(2). É por isso que “dispondo o art. 129, I, da Constituição Federal, que compete ao Ministério Público a exclusividade da promoção da ação penal pública, e examinando-se os demais incisos do art. 129, mormente o VII, que confere o controle externo da atividade policial ao Parquet, não há dúvida que constitucionalmente foi adotado no Brasil o sistema acusatório puro”(3).

Portanto, embora, o processo penal no Brasil seja, ao menos formalmente, do tipo acusatório, ou seja, o ônus da prova cabe a quem a alega (artigo 156, do CPP), o artigo 212, parágrafo único, do CPP, contraditoria­mente, dá ensejo a interpretações que consagram a figura do juiz inquisidor, que não só tem a possibilidade de perguntar por último à testemunha — preterindo, quando não, anulando, o direito de defesa —, como invade o campo acusatório para buscar provas sobre o fato afirmado na denúncia (artigo 212, parágrafo único, do CPP).

Insista-se, se a lei permite ao magistrado questionar a testemunha após as partes terem encerrado suas indagações, este questionamento deve restringir-se unicamente a esclarecimentos sobre pontos controvertidos do depoimento e não sobre a acusação, ônus exclusivo de quem alega. Do contrário, é manifesta a falta de isenção do magistrado que investe a função de acusador. A sistemática anterior convenha-se, era melhor, pois ainda que o juiz fosse do tipo “acusatório”, a defesa poderia relativizar o peso do magistrado perguntando por último. Se não era o ideal, estava, ao menos, mais próximo do que agora sem tem considerando o valor constitucional da ampla defesa.

Aliás, a inovação trazida pelo novo artigo 156 também merece atenção. Enquanto estabelece que “a prova da alegação incumbirá a quem a fizer”, faculta ao magistrado de ofício “ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida” (inciso I), e, ainda, “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante” (inciso II).

Mais uma vez, tais dispositivos afrontam diretamente os princípios que norteiam um processo penal do tipo acusatório, permitindo que o juiz determine a realização da prova, sem qualquer requerimento das partes. Não que isso já não aconteça. Causa preocupação, porém, que o legislador contemple regras em franco desalinho com o modelo constitucional do processo penal.

Como se vê, com as alterações do Código de Processo Penal, especialmente aquelas trazidas pela Lei nº 11.690/2008, houve um alargamento das atribuições e poderes do magistrado à frente do processo penal, podendo, inclusive, de ofício, intervir no curso das investigações, antes de instaurada a ação penal.

Se o interesse e dever de provar a acusação é ônus da parte que acusa e esta não requereu diligências ou, mesmo no caso da realização de oitiva de testemunhas, esgotou seus questionamentos, é inadmissível que o magistrado num âmbito cognitivo absolutamente discricionário e sem qualquer provocação das partes produza provas.

Até porque, como lembrado pelo ilustre procurador da República Rodrigo de Grandis em artigo brilhante publicado na RBCCrim sob o título “Juiz x compromisso com a luta contra o crime?”: “o principal atributo do juiz — em especial, o juiz criminal — é a imparcialidade. De fato, esse atributo é tão importante, tão fundamental, que é possível afirmar, sem medo de equívoco, que ele consubstancia verdadeira condição sine qua non do legítimo exercício da função jurisdicional”(4). E a imparcialidade com que deve agir o magistrado, parece especioso dizer, deve mantê-lo distante da pretensão que se postula. Como lembra o autor “ao concretizar o ato de julgar, o magistrado deverá conduzir-se com isenção, humildade e sabedoria, fechando os olhos — e o coração — ao ódio, ao preconceito e às suas próprias paixões”(5). E conclui: “o conceito de compromisso não casa, não se conforma, não se amolda ao exercício da atividade jurisdicional, notadamente aquela desempenhada no âmbito do direito processual penal, pautado, hodiernamente pelo sistema acusatório, no qual apenas o juiz criminal tem o poder de dizer se alguém cometeu crime, cabendo a titularidade da ação penal ao Ministério Público e a defesa dos direitos constitucionais fundamentais do réu ao advogado”(6).

Assim, deve-se sempre ter em mente que “o dever de perseguir a verdade real, todavia, não é absoluto, incondicional. Ele sofre temperamentos decorrentes da adoção, no Brasil, do sistema acusatório, calcado, consoante declinado alhures, no actum trium personarum, isto é, no postulado de que as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas, e no ne procedat iudex ex officio, o que significa dizer que, enquanto sujeito processual imparcial, não se confere ao juiz a prerrogativa de iniciar a ação penal ou adotar qualquer providência probatória na fase pré-processual, como, exemplo, determinar, ex officio, a interceptação de comunicações telefônicas”(7).

Por isso, alerta Geraldo Prado que “atribuir ao juiz o poder de produzir provas de ofício deforma o ‘duelo intelectual’”(8). Como lembra o autor, o juiz não pode estar “desde logo psicologicamente envolvido com uma das versões em jogo. Por isso, a acusatoriedade real depende da imparcialidade do julgador, que não se apresenta meramente por se lhe negar, sem qualquer razão, a possibilidade de também acusar, mas, principalmente, por admitir que a sua tarefa mais importante, decidir a causa, é fruto de uma consciente e meditada opção entre duas alternativas, em relação às quais se manteve, durante todo o tempo, eqüidistante. (...) a posição equilibrada que o juiz deve ocupar, durante o processo, sustenta-se na idéia reitera do princípio do juiz natural — garantia das partes e condição de eficácia plena da jurisdição — que consiste na combinação de exigência da prévia determinação das regras do jogo (reserva legal peculiar ao devido processo legal) e da imparcialidade do juiz, tomada a expressão no sentido de estarem seguras as partes quanto ao fato de o juiz não ter aderido a priori a uma das alternativas de explicação que autor e réu reciprocamente contrapõem durante o processo”(9). Isso sem dizer que a isenção e imparcialidade representam a base da garantia da paridade de armas de raiz constitucional porque “só há processo penal real se no início do procedimento ambas as teses — de acusação e de resistência — puderem ser apresentadas em condições de convencer o juiz (Otto Kirchheimer)”(10).

Não por outra razão, o Pleno do STF no julgamento da ADIN nº 1570/DF quando declarou a inconstitucionalidade do artigo 3º, da Lei nº 9.034 de 3 de maio de 1995, que permitia o juiz investigar os fatos diretamente, afastou a possibilidade da existência de um juiz inquisidor que se imiscui na função que deve ser exclusivamente exercida pelo Ministério Público nas ações penais públicas incondicionadas: “Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público a às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e §2º; e 144, §1º, I e IV, e §4º). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia” (Pleno, STF, rel. min. Maurício Correa, DJ 12/02/2004).

O juiz é espectador e destinatário das provas colhidas no inquérito e processo para que possa livremente formar sua convicção, devendo zelar para que os direitos e garantias das partes sejam rigorosamente respeitados. O questionamento indiscriminado sobre a acusação ao final formulado à testemunha, após a manifestação da defesa, substituindo-se ao órgão acusatório, viola o direito constitucional à ampla defesa. O mesmo se diga da sua interferência na determinação antecipada de provas que subjetivamente entende como relevantes e urgentes.

A missão do julgador, perdoe-se a redundância, é julgar. Aplicar a lei diante do caso concreto e provado. Não tem compromisso com a acusação, tampouco com a defesa. Tem compromisso, sim, de julgar as provas apresentadas no processo e concluir se a pretensão acusatória é procedente. Quem acusa tem o dever de provar. Se não o faz, não cabe ao magistrado — que deve ser absolutamente imparcial — buscar a prova acusatória. Até porque, não se pode perder de vista que o réu é inocente até que se prove o contrário. Isto não quer dizer que o juiz deva ser um espectador inerte. Até porque se pode buscar provas para acusar, poderia fazê-lo para absolver o réu e suprir um defesa técnica falha. No entanto, como sabemos, no processo penal, não cabe ao réu provar a sua inocência, mas sim o órgão acusatório é quem deve provar suas imputações. Não é a toa que o princípio da presunção de inocência é norteador do processo penal e, portanto, se o réu é inocente por presunção constitucional (CF, art. 5º, inciso LVII), não deve fazer prova de sua inocência e nem deveria ser auxiliado a fazê-lo pelo magistrado.

O que se quer dizer é que o juiz deve sim dentro da sua soberania e independência buscar a realização da Justiça, sem, contudo, tornar-se com esta atuação aliado do órgão acusatório na sua pretensão, desequilibrando, assim, a balança que mede a igualdade processual.

Não se pode conceber em uma ação penal, que haja verdadeira disparidade de armas, em que o juiz em papel nitidamente inquisidor assessora as atividades do Ministério Público, complementando o trabalho acusatório. Todos contra a defesa.

Parece evidente que se a lei não pode se sobrepor à Constituição Federal, a única interpretação possível e aceitável dos dispositivos abertos deve ser feita de acordo com a Lei Maior: portanto, o juiz poderá esclarecer pontos controvertidos da própria inquirição e não buscar provar o fato apontado pela acusação, dando oportunidade à defesa, se por esta reclamado, de reperguntar por último; e, ainda, a determinação para produção antecipada de provas deve ser permitida apenas com a demonstração do seu real risco de perecimento, dando ciência sempre às partes, ou seja, Ministério Público e acusado, ainda que não instaurada a ação penal.

Não se pretende de forma alguma tisnar a independência do magistrado, mas apenas preservar as garantias de uma Constituição Federal de um Estado Democrático de Direito. Como lembrou o eminente min. Nilson Naves ao reconhecer violação ao devido processo legal no julgamento histórico do Habeas Corpus nº 76.686 pelo colendo Superior Tribunal de Justiça: “[...] Afinal, somos ou não somos nós que à lei damos espírito? Sou daqueles, e todos já sabem, que defendem, com unhas e dentes, a independência do julgador, independência, porém, que não consigo dissociar de interpretação equilibrada, sem paixão, arrojada, se for o caso, mas sempre respeitadora dos direitos individuais.”

Notas

(1) Processo Penal, 18ª ed., vol. I, Saraiva: Rio de Janeiro, p. 90.

(2) Ministério Público e Persecução Criminal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1997, pp. 124/125.

(3) Ob cit., p. 125.

(4) RBCCRIM 71/250.

(5) Idem.

(6) Idem.

(7) Rodrigo de Grandis, “Juiz x compromisso com a luta contra o crime”, RBCCrim 71/258.

(8) “Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais, 3ª. ed., Ed Lumen Iuris, 2005, p. 105.

(9) Ob. cit., pp. 108/9.

(10) Ob.cit., p. 109.


Carla Domenico, Advogada em São Paulo, especialista em Administração Legal para Advogados pela FGV - GVLaw (2006); pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM (2004/2005); especialista em Direito Penal Econômico pela FGV - GVLaw (2003); e professora da Pós-Graduação da Escola Paulista de Direito (2008-atual)

DOMENICO, Carla. Juiz inquisidor e a reforma do código de processo penal: uma questão controvertida. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 11-12, nov. 2008.

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