segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Artigo: Jogo de espelhos

Um problema quase sempre negligenciado quanto à democracia é o fato de que a chamada opinião pública tende a refletir os valores e as preocupações dos privilegiados. Esta característica distorce duplamente a realidade: primeiro, contribuindo para que a agenda política seja definida à margem de um debate efetivamente público; segundo, fazendo com que muitas pessoas se convençam de determinados enfoques, apenas porque não se lhes permitiu a experiência do contraditório. A boa notícia é que a internet está mudando este quadro. No Brasil, o processo é ainda lento, mas não pode ser desconsiderado. Cada vez mais, blogs independentes alguns com produção jornalística de qualidade se constituem como fontes importantes, influenciando a formação de uma nova opinião pública, tendencialmente mais plural e exigente.

Ao início de 2007, Hillary Clinton realizou um debate online, recebendo 11 mil perguntas. Dez delas eram sobre sua comida e filmes preferidos. Todas as outras 10.990 tratavam de problemas relevantes e sobre como ela pretendia enfrentá-los. Mark Penn, autor do interessante Microtendências: as pequenas forças por trás das grandes mudanças do amanhã (Best Seller, 2008, 582 págs.), comenta este fato, sustentando que ele contraria a definição do voto a partir de atributos pessoais dos candidatos. Para a maioria dos eleitores americanos, as propostas do candidato é que definem o voto. Entretanto, os eleitores que ganham mais de US$ 100 mil/ano se comportam de outra maneira. Neste grupo, os aspectos decisivos envolvem características pessoais dos candidatos. O fenômeno, que traduz uma determinada despolitização, refletiria o fato de que as elites americanas estão mais interessadas em banalidades e fofocas e se situam cada vez mais à margem das questões significativas para o país. Boa parte da mídia americana – inclusive a mais tradicional – segue esta tendência, disputando seu público entre quem já não demonstra apreço pelo pensamento e também não enfrenta qualquer dos problemas vividos pelo povo, como a falta de assistência médica, a má qualidade da escola pública e do transporte coletivo, ou as baixas aposentadorias e pensões. Aquela mídia reproduz as opiniões das elites, que, por sua vez, só ouvem pessoas das próprias elites (algo como 10% da população), encontrando, como num jogo de espelhos, sempre o reflexo de sua própria imagem. Assim, os privilegiados se convencem de que a maneira como vêem o mundo é aquela dos demais 90% do restante do país. Os políticos, por seu turno, em sua grande maioria, estão sintonizados com as aspirações e os valores das mesmas elites, não casualmente aquelas que financiam suas campanhas. Também por conta disto, a representação política tende a se despregar da realidade social dos eleitores e a estabelecer vínculos orgânicos e real interlocução apenas com os poderosos. O círculo, finalmente, se fecha e faz com que “prioridade” seja, paradoxalmente, o que afeta a minoria.

Tudo isto nos EUA, claro.


Marcos Rolim, Jornalista.


Zero Hora.

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