quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Artigo: Intervenção mínima: um princípio em crise

Sabidamente, o Direito Penal é instrumento à salvaguarda dos bens e valores mais relevantes na sociedade, aqueles cujo maltrato torna insuportável a vida em comunhão. Por se cuidar de suprema forma de coação estatal, impõe-se extrema cautela na filtragem dos valores/bens sujeitos à sua incidência. Por isto, a tarefa dele é assegurar o núcleo mínimo da moral — ou o “mínimo ético”, de que falava Jellinek(1) —, extraído à luz das violações reputadas intoleráveis pela consciência social. De tal sorte, sua ingerência nas relações sociais há de ser a menor possível. Aí, pois, o princípio da intervenção mínima, balizado pela Escola de Frankfurt(2).

Contudo, nos últimos tempos, o princípio sob foco, tal como enunciado, parece envolto em profunda crise, quando confrontado a dados reais(3). O núcleo mínimo da moral passível de tutela penal tem sido alvo de substancial dilatação. Assim o revela a torrencial edição de leis penais, ocorrência cosmopolita. Novos tipos são concebidos, os existentes são incrementados, novos setores são alcançados (novos bens jurídicos), alargam-se os espaços de riscos juridicamente relevantes, flexibilizam-se as regras de imputação e garantias processuais são reinterpretadas. Hoje, soa duvidoso falar de “núcleo mínimo”, tamanho o espectro de abrangência do Direito repressivo. Vale dizer, o minimalismo doutrinário é severamente colocado em xeque pelas tendências de maximização da legislação penal(4).

Muitos divisam a constatação como corolário exclusivo da chamada “legislomania”, materializada na inflação legislativa: ao emoldurar um problema na lei penal, supõe o legislador estar o solucionando(5). Modificações gravosas e produção maciça no campo legislativo resolveriam as chagas sociais. Neste tema, os meios de comunicação, amiúde, retroalimentam demandas populistas por mais leis penais, fomentam soluções irracionais, sem qualquer compromisso ético e propelidos pela avidez lucrativa(6). Com enfoques descontextualizados, sob um “clima punitivista”, convolam-se numa verdadeira fábrica de medo e, com isto, geram infindáveis postulações por segurança, acriticamente abrigadas pelas instituições estatais(7).

Urge abordagem mais ampla da questão. Há mais, bem mais, propelindo a hipertrofia do Direito punitivo.

A verdadeira gênese do filão expansionista jurídico-penal deita raízes noutros fatores, comumente olvidados. Com efeito, a época hodierna é caracterizada pela infindável demanda social por segurança, por maior proteção estatal, a desaguar em correlata demanda por punição. Os principais motivos de tanto, entrelaçados entre si, assim podem ser compendiados:

a) Novas realidades forjaram novos bens jurídicos passíveis de tutela penal. In exem­plis: a-1) As práticas espúrias e altamente lesivas protagonizadas por agentes de instituições econômicas/financeiras deixam à mostra a premência na regulação de crimes econômicos/financeiros; a-2) O branqueamento do produto obtido com práticas ilícitas leva à incriminação da lavagem de dinheiro; a-3) A contumaz agressão a bens e riquezas naturais, indispensáveis à vida planetária, conduz à instituição dos crimes contra o meio-ambiente e tipos congêneres; a-4) O risco de uso indevido de tecnologia atômica também rende ensejo à instituição dos tipos atômicos; a-5) As fraudes cometidas através de redes de informática e da rede internacional de computadores impõem o combate à chamada delinqüência cibernética ou ciberdelinqüência; a-6) As diversas formas de criminalidade organizada, operando sem fronteiras, reclamam a atuação resoluta do Direito repressivo;

b) O alto grau de complexidade experimentado pela sociedade, com o enleamento de diversas esferas organizativas, potencializa o risco de resultados danosos, produzíveis a longo prazo. A tradicional relação de causa e efeito, inerente aos tipos de resultado material, tem se mostrado insuficiente à abordagem da problemática. Na sociedade complexa, a palavra de ordem é precaução. Daí o freqüente recurso aos tipos de perigo abstrato ou presumido, cuja consumação reclama a mera probabilidade de causação do dano, independentemente de o agente querê-lo: é suficiente o dano possível ou o eventus periculi;

c) O entrelaçamento nas relações sociais exacerba a interdependência entre as pessoas. A realização e a preservação dos bens de cada um dependem, cada vez mais, de condutas ou prestação positivas de outrem. Por isto, à medida que frustram bens jurídicos, as omissões ganham espaço no campo da incriminação, mormente através do recrudescimento dos crimes omissivos impróprios ou comissivos por omissão. A conduta positiva (ação), tradicional foco da tipicidade penal, cede espaço à omissão penalmente relevante: alarga-se, sensivelmente, a figura do garante;

d) A regulação penal vem adelgaçando, paulatinamente, os limites do risco permitido. Na ponderação entre os custos e os benefícios advindos de dada conduta, tem preeminência capital a segurança. O consectário é a restrição ao leque de liberdades, porquanto muitas delas são reputadas socialmente perigosas: a liberdade ilimitada é manancial de riscos;

e) A interdependência imperante no mundo moderno induz à forçosa conexão entre o resultado lesivo e a conduta de alguém, comissiva ou omissiva. A produção de danos, supõe-se, é consectário de alguma intermediação do homem: sempre há algum responsável. Há resistência psicológica em tolerar o casual, o fortuito, o imprevisto, o infortúnio: a tendência é metamorfoseá-los em injustos penais. Se o gravame ou o risco de sua ocorrência é empiricamente inextrincável, cumpre irrogá-lo a alguém;

f) Numa sociedade dominada por classes passivas (destinatários de prestações públicas e assistenciais de todos os matizes, consumidores, pensionistas, bolsistas etc.), a postura dos sujeitos do bem-estar propiciado pelo Estado-Providência ou do Bem-Estar é no sentido de garantir-lhe a existência, como forma de satisfação da própria esfera pessoal: o homem vive no Estado e do Estado. Há insuperável paradoxo entre um Estado maximamente dimensionado, a fim de propiciar bem-estar ao maior número possível de súditos, e um Direito Penal minimamente formatado. Nesta ordem de idéias, o Direito Penal é divisado, essencialmente, como instrumento de defesa dos próprios cidadãos (vítimas: sujeitos passivos) frente a quem (infrator: sujeito ativo) ataca o provedor do bem-estar (Estado). É instituída a concepção do Código Penal como Magna Carta da vítima, sobrepujando a clássica noção dele ser, antes de tudo, a Magna Carta do delinqüente. A nova perspectiva tem possíveis repercussões, inclusive, na esfera da tradicional interpretação restritiva dos tipos penais e da analogia in bonam partem, alvo de abordagem noutro espaço;

g) A percepção do arcabouço penal também como Magna Charta da vítima transmuda o paradigma clássico de reflexão jurídico-penal, focalizado na delinqüência tradicional (condutas atentatórias à vida, à saúde, à liberdade, à propriedade). A ordem do dia é a persecução quanto aos crimes perpetrados pelos poderosos (crimes of the powerful), pelos agentes de grandes corporações (corporate and business crime), pelos grupos organizados, pela classe alta ou de colarinho branco (white-collar crimi­nality), composta por respeitáveis ou pelo menos respeitados homens de negócio ou profissionais, num contexto aparentemente insuspeito. Contra eles, a Justiça Criminal há de desembainhar a espada, brandida, até agora, contra os despossuídos, os marginalizados (crimes of the powerless);

h) A falência, a ineficiência e o descrédito dos mecanismos informais (não-jurídicos) de contenção ao crime resultam na convocação do Direito Penal para suprir a demanda por segurança. De fato, hoje, de modo geral, a sociedade evidencia parâmetros sofríveis de moral e ética. A família, a escola, o trabalho, a igreja, os usos e costumes calcados na solidariedade, na compaixão, os órgãos assistenciais e de formação são instituições não-econômicas e, portanto, consideradas secundárias. O exacerbado individualismo outorga preponderância ao critério econômico, relegadas instituições não-econômicas(8). A situação se avizinha à anomia, um mau presságio às liberdades públicas, porquanto conducente ao Estado tirânico, suposto veículo hábil a arredar a desordem e o receio dela decorrentes(9). Nem os novos gestores atípicos da moral coletiva (atypische moralunter­neh­mer) — associações de ecologistas, de consumidores, de bairros, de pacifistas, de contrários à discriminação, de direitos humanos etc. — têm dado alento às instâncias não-jurídicas convencionais. Talvez por isto cerrem fileiras ao incremento legislativo-penal, no afã de acudir-lhes as respectivas plataformas. Por outra parte, os demais ramos do Direito ­— civil e administrativo —, conquanto teoricamente aptos a tanto, têm se revelado impotentes em arrostar as postulações por segurança. A objetivação da responsabilidade e o modelo de seguro imperantes na seara cível diluem a eficácia preventiva em relação a condutas danosas: não se propõe discussão de culpa e o dano se encontra assegurado. As instâncias administrativas padecem de crônico emperramento burocrático, desnaturam o princípio da oportunidade e, muitas vezes, têm quadros integrados por cúmplices de delitos.

Há, bem se vê, muitas razões legítimas ao expansionismo jurídico-penal.

Nesta conjuntura, o Direito Penal mínimo — e, pois, o princípio da intervenção mínima, na conformação tradicional — aparenta estar em rota de colisão com as aspirações sociais. Há um raro discurso unânime, conquanto desconforme quanto ao objeto e aos limites, advogando a expansão do Direito Penal. Por isto, disse-o Silva Sánchez, “não parece que a sociedade atual esteja disposta a admitir um Direito Penal mínimo”(10).

Na atual quadra, a concretização da intervenção mínima parece possível através do prosseguimento cauteloso dos processos de despenalização e diversificação. Descriminalização somente é viável se não fizer periclitar a paz pública. De toda maneira, é fundamental rememorar: Direito Penal mínimo não significa nenhum Direito Penal. É inadmissível deságüe o minimalismo em laxismo penal(11), impregnado de retórica meramente simbolista e convolado, com alguma freqüência, em braço doutrinário do crime organizado.

A ligeira reflexão em derredor da intervenção mínima, princípio assaz caro à ciência penal, tem um porquê. Ao operador do Direito não é lícito ferreamente se apegar a princípios etiquetados inflexíveis e ignorar os fatos da vida. Ao ensimesmar-se em torre de marfim, brandindo refrões da moda acriticamente, desconecta-se do real e corre o risco de propor soluções irresponsáveis. O academismo lírico é atropelado pela dura e inexorável realidade quotidiana. O avanço da civilização, ao incrementar-lhe a complexidade, impõe o repensar e o debate quanto a dogmas reputados intangíveis, numa perspectiva retroativa e prospectiva.

Notas

(1) “(...) o direito não é senão o mínimo ético que a sociedade precisa em cada momento de sua vida para continuar vivendo” (JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Tradução espanhola da 2ª ed. alemã por Fernando de los Rios. Buenos Aires: B de F, 2005, p. 29). Cf. MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho Penal. Tradução espanhola de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: EDIAR, 1948, pp. 39-41, v. 1, t. 1.

(2) A Escola de Frankfurt, integrada por Hassemer, Naucke e Lüderssen, dentre outros, perfilha um Direito Penal ultraliberal, de conteúdo mínimo e maximamente garantista (Hassemer, Winfried; NAUCKE, Wolfgang; LÜDERSSEN, Klaus. Principales Problemas de la Prevención General. Tradução espanhola de Gustavo Eduardo Aboso e Tea Löw. Buenos Aires: B de F, 2006, pp. 9-10).

(3) ARROYO ZAPATERO, Luis; NEUMANN, Ulfrid; NIETO MARTIN, Adán. El Derecho Penal en el Cambio del Siglo. Análisis Critica de la Escuela de Frankfurt. Cuenca: Universidad de Castilla la Mancha, 2004.

(4) SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Perspectivas Sobre la Política Criminal Moderna. Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo Depalma, 1998, p. 52.

(5) BONFIM, Edílson Mougenot. Direito Penal da Sociedade. 2ª ed., São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, pp. 45-46.

(6) Os mass media, estruturas de comunicação altamente organizadas e de atuação modulada pelo lucro, manipulam e persuadem a mente dos espectadores. É corrente, destarte, açularem demandas irracionais por punição.

(7) DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. La Política Criminal en la Encrucijada. Buenos Aires: B de F, 2007, p. 108.

(8) MESSNER, Steven F.; ROSENFELD, Richard. Crime and the American Dream. Belmont: Wadsworth Publishing Company, 1994, pp. 109-111.

(9) Dahrendorf, Ralf. A Lei e a Ordem. Tradução portuguesa de Tamara D. Barile. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1997, p. 14.

(10) SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La Expansión del Derecho Penal: Aspectos de la Política Criminal en las Sociedades Postindustriales. 2ª ed. Buenos Aires: B de F, 2008, p. 179.

(11) O laxismo penal consiste na “tendência a propor a) solução absolutória quando as evidências do processo apontem em direção oposta, ou b) punição benevolente, desproporcionada à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do condenado, tudo sob o pretexto de que, vítima do fatalismo socioeconômico, o delinqüente sujeita-se, quando muito, a reprimenda simbólica” (MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de; DIP, Ricardo Henry Marques. Crime e castigo: Reflexões Politicamente Incorretas. 2ª ed., Campinas: Millen­nium, 2002, p. 2).


Élcio Arruda, Professor de Direito Penal e de Processo Penal, mestre em Direito e juiz federal.

ARRUDA, Élcio. Intervenção mínima: um princípio em crise. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 13, nov. 2008.

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