quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Artigo: Hamlet entre nós

Receber ou não receber a denúncia?

Como é sabido, o recebimento formal da acusação é ato que não pode ser menosprezado. Com efeito, ao declarar admissível a imputação, reconhecendo a presença de elementos mínimos que lhe conferem sustentabilidade, o Estado-juiz sacramenta graves conseqüências que extravasam o campo processual, para alcançar, também, o meio social. De fato, a admissão de uma acusação penal reforça o estigma social que já pairava sobre quem até então figurava como suspeito, investigado ou indiciado justamente por estreitar o vínculo pessoa/fato-criminoso, tornando mais sólido o caminho em direção à efetivação do poder-dever punitivo.

No entanto, ao tratar desse importante ato, a nova legislação provocou grande perplexidade. Isso porque o recebimento veio referido em dois momentos distintos. O primeiro imediatamente após o oferecimento da acusação (art. 396, caput)(1). E o segundo após a realização de um contraditório preliminar materializado com a apresentação da resposta pelo acusado (art. 399)(2). Um exame superficial dos dispositivos poderia levar à conclusão de que dois foram os momentos estipulados para o recebimento da acusação, o que, obviamente, se mostra insustentável. As incongruên­cias no texto legal são evidentes impondo-se ao operador superá-las. Nesse ponto, interpretações puramente gramaticais são reducionistas não contribuindo para uma solução lógica e adequada. Daí ser imperiosa a compreensão do sentido desenhado para cada fase do procedimento penal.

O procedimento é uma unidade lógica, de modo que os atos que o compõem, para além dos efeitos imediatos produzidos, também contribuem para o desenrolar ordenado do processo rumo ao ponto culminante que é a sentença. A seqüência é, repita-se, lógica de modo que os atos singulares integram fases que, por sua vez, também estão interligadas entre si. Nenhum ato ou fase são inócuos e tampouco podem ser esvaziados pelo operador. Afinal, como observa Scarance(3): “Cada ato tem um efeito próprio, particular, que opera dentro do universo do processo. Porém, esse efeito serve também pata fazer com que o processo progrida na direção da sua meta e, por isso, o resultado de cada ato visa a influir direta ou indiretamente no conteúdo do ato final, cujo efeito se projeta para fora do âmbito processual.”

Há, pois, uma lógica em se desenhar um contraditório anterior ao recebimento formal da acusação. E tal se relaciona com a efetividade que se quer emprestar, tanto à garantia da ampla defesa quanto à própria atividade processual. De fato, a resposta à acusação é o momento processual oportuno para que o acusado — que, invariavelmente não tomou parte na construção dos elementos informativos — traga todos os elementos que repute aptos a impedir o recebimento da acusação. O objetivo, portanto, é o de evitar que acusações desprovidas de sustentabilidade, ou mesmo desde logo manifestamente infundadas, tenham prosseguimento, prolongando o drama individual, além de onerarem, desnecessariamente, o Estado. Assim, uma vez reconhecida a pertinência da acusação, fica superada uma etapa processual, passando-se para a subseqüente em que todos os esforços estarão concentrados para a discussão e para o exame da veracidade da afirmação acusatória.

A questão não é nova entre nós. Muito pelo contrário. Ela está presente no processo de julgamento dos crimes de responsabilidade de funcionário público(4) — o que, aliás, remonta a uma tradição oriunda do Código Criminal do Império —, nos crimes de menor potencial ofensivo(5) e também na Lei de Tóxicos(6). Por sua vez, os Anteprojetos de reforma do CPP, sucessivamente apresentados, já propunham uma alteração substancial nessa etapa com o estabelecimento da resposta preliminar para todos os procedimentos(7). E nem se alegue tratar-se de peculiaridade nacional. Há muito está consolidada no direito norte-americano sob a denominação de preli­mi­nary hearings(8), além de ter sido incorporada no processo penal internacional pelo Estatuto de Roma(9).

Logo, não foi por menos que o artigo 394, § 4º, com redação dada pela Lei 11.719/2008, impôs a observância dos artigos 395 a 398 a todos os procedimentos penais, previstos ou não pelo Código. Afinal, a intenção era a de sempre conceder ao acusado uma oportunidade para a apresentação de uma defesa que fugisse do âmbito da mera formalidade. Na verdade, deve ela constituir importante instrumento potencialmente capaz de impedir o recebimento formal da acusação ou mesmo de consagrar a absolvição imediata do acusado, resgatando, assim, o prejuízo moral a que foi submetido.

E foi essa mesma preocupação com acusações desprovidas de requisitos mínimos que levaram à previsão de uma filtragem liminar a ser realizada pelo juiz. Assim, se desde logo constatada a inépcia, a ausência de pressuposto processual, a ausência de condição da ação ou a ausência de justa causa, a denúncia ou queixa será rejeitada liminarmente(10). Obviamente, nova peça poderá ser apresentada, desde que corrigidos aqueles vícios. O que se pretende, reitere-se, é evitar a desnecessária movimentação da máquina judiciária. Por outro lado, caso o juiz repute presentes aqueles requisitos mínimos, determinará o processamento sem que tal ato implique recebimento formal da acusação com todos os efeitos jurídicos que lhe são próprios. É, note-se, a melhor, leitura a ser dada à expressão “receber” inserida de última hora no artigo 396. Cuida-se, portanto, de uma aceitação liminar e que leva, tão somente, ao chamamento daquele que foi indicado como o responsável pelo fato imputado. É por isso que ele terá ciência da apresentação da acusação para que então possa, desde logo, exercer a sua defesa em toda a sua plenitude e extensão.

E nem se alegue que a citação pressupõe o recebimento da acusação. Não há, necessariamente, tal ordem como já revelava a própria Lei dos Juizados Criminais. Afinal, o objetivo da citação é o de formalizar a ciência ao acusado dos termos de uma acusação que foi contra ele apresentada. Trata-se, portanto, de ato de informação, condição essencial para o exercício do contraditório e da ampla defesa. E havendo citação válida, desnecessária a sua repetição futura, até mesmo porque a relação, entre todos os sujeitos processuais, estará estabilizada(11).

Dessa forma, os argumentos que procuram ver na redação dada ao artigo 395 o momento desenhado para o recebimento formal da acusação partem de uma interpretação literal que desconsidera inúmeros aspectos ligados à estrutura lógica imaginada para o novo procedimento. Com efeito, este “recebimento” jamais poderia ser definitivo, pois do contrário, restaria totalmente esvaziada a previsão de uma resposta ampla por parte do acusado. Ademais, diante da clara regra de extensão dada pelo § 4º do artigo 394, haveria um inadmissível retrocesso em procedimentos que já traziam previstas a resposta preliminar. Por outro lado, imaginar “dois recebimentos” seria de todo absurdo além de trazer graves complicações na determinação do marco interruptivo da prescrição.

Logo, quando do oferecimento de denúncia ou da queixa, caberá ao juiz fazer um exame preliminar e que se limita a averiguar se a peça e a narrativa ali exposta reúnem os requisitos e as condições mínimas para o processamento com o chamamento do acusado para exercer a sua defesa. Não atendidos os requisitos e/ou ausentes as condições de ação ou de procedibilidade, o juiz desde logo a rejeitará. E, o recurso em sentido estrito eventualmente interposto poderá levar ao processamento da ação com a determinação de citação do réu, desde que julgado procedente. Assim, quando da apresentação da resposta, restarão ao juiz várias alternativas: rejeição diante da configuração de alguma das hipóteses previstas pelo artigo 395, absolvição sumária diante de todo o material que lhe foi apresentado pelas partes, acolhimento de alguma das exceções opostas ou, finalmente, o recebimento formal da acusação com a designação de audiência de instrução, debates e julgamento. E somente na última hipótese é que estará caracterizado o marco interruptivo do prazo prescricional.

Essa ordem lógica, é importante pontuar, deve ser aplicada a todos os procedimentos, inclusive aos Juizados Criminais e ao Tribunal do Júri. Quanto ao primeiro, todavia, deverá ser compatibilizada com os princípios da celeridade, da informalidade e da concentração dos atos processuais. De qualquer modo, naquele juízo deverão ser observadas a possibilidade de rejeição ou mesmo a absolvição sumária, após a resposta e antes do recebimento formal, mas tudo em audiência de instrução e julgamento.

Quanto ao procedimento do júri, também aplicam-se as regras previstas nos arts. 395 a 398, por mais que uma interpretação literal do art. 406 indique o contrário. Afinal, a regra de extensão prevista pelo art. 394, § 4º não deixa dúvidas quanto à sua amplitude. Aliás, são justamente os crimes dolosos contra a vida que se mostram compatíveis com muitas das excludentes de an­ti­juridicidade ou de culpabilidade. Nem seria lógico impor-se ao juiz o recebimento formal da acusação quando manifestamente evidenciada a presença de alguma excludente para somente reconhecê-la ao final. Daí o cabimento, também neste procedimento, do contraditório inicial.

É esta, enfim, a interpretação que resgata a lógica de todo o sistema o qual não pode ser comprometido por exegeses puramente literais. Os procedimentos penais devem ser avaliados em sua totalidade. O conjunto recentemente desenhado aponta para a efetividade de uma defesa capaz de impedir o recebimento formal da acusação ou até mesmo de conduzir a uma absolvição sumária. Se o legislador, no entanto, estabeleceu incongruências, cabe ao juiz fixar uma solução que resgate a unidade lógica tendo em vista o dogma do fair trial. Afinal, esta é uma das missões que lhe compete.

Notas

(1) “Art. 396. Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”

(2) “Art. 399. Recebida a denúncia ou queixa, o juiz designará dia e hora para a audiência, ordenando a intimação do acusado...”

(3) Teoria Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 33.

(4) “Art. 514. Nos crimes afiançáveis, estando a denúncia ou queixa em devida forma, o juiz mandará atuá-la e ordenará a notificação do acusado para responder por escrito, dentro do prazo de 15 (quinze) dias.”

(5) Como dispõe o art. 81 da Lei 9.099/95: “Aberta a audiência, será dada a palavra ao defensor para responder à acusação, após o que o juiz receberá, ou não, a denúncia ou queixa...”

(6) É o que dispõe o art. 55, caput da Lei 11.343/06: “Oferecida a denúncia, o juiz ordenará a notificação do acusado para oferecer defesa prévia por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.”

(7) Anteprojeto Tornaghi e Projeto de Frederico Marques. Nesse sentido: Fernandes, Antonio Scarance. A Reação Defensiva à Imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 174-177.

(8) Trata-se de uma audiência em que a acusação e a defesa apresentam os seus argumentos e as suas provas a fim de ser aferida a existência ou não de fundamentos mínimos para a acusação. Caso esta seja considerada admissível, a causa é levada a julgamento. Ver: Burnham, William. Introduction to the Law and Legal System of the United States. 2ª ed., St. Paul: West, 1999, pp. 262-263.

(9) Art. 61.1.

(10 De acordo com a nova redação do artigo 395.

(11) Daí a redação dada ao art. 363, caput: “O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.”


Marcos Zilli, Juiz de Direito, professor doutor de Processo Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e coordenador de Relações Internacionais do IBCCRIM

ZILLI, Marcos. Hamlet entre nós. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 192, p. 6, nov. 2008.

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