terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Artigo: Da inconstitucionalidade do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro

A Lei nº 11.705/08, que entrou em vigor em 19 de junho de 2.008, alterou, dentre outros dispositivos, o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, mudando o tipo penal, além de retirar alguns termos do artigo 165 do mesmo Diploma Legal, neste último caso, sem alterar substancialmente seu conteúdo.

O escopo do presente artigo não é esgotar o assunto ou encerrá-lo, tal pretensão representaria prepotência de sobejo de nossa parte, vez que as críticas à “novatio legis in pejus”(no que tange ao art. 306) transbordam da mera análise legal ou do evidente uso desapropriado da atividade legislativa, mas sim, afrontam princípios e institutos dos mais variegados no que tange à dogmática[1] jurídico-constitucional e penal.

Não é de hoje que o legislador brasileiro se vale de sua função ordinária para instituir normas por impulso, atendendo a clamor social ou a interesses escusos, o que na prática gera um emaranhado de dispositivos mal redigidos, que se contradizem, inclusive quando analisados de forma sistêmica. São normas vigentes, porém sem eficácia.[2]

Antes de tecermos nossos comentários acerca das ilegalidades do delito supra mencionado, importante ressaltar a diferença entre os artigos 165 e 306 do CTB, aquele capitula infração administrativa em decorrência de dirigir sob efeito de álcool ou substancia de efeito psicoativo que cause dependência; este apresenta redação similar, mas para que se tipifique o delito, há a necessidade de que seja constatada a concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas. Desta forma, nem toda infração administrativa será crime, já sempre que incorrer neste, aplicar-se-á aquela.

Por ora, não nos custa lembrar que a punição administrativa independe da criminal, não obstando, portanto, que seja apurada a responsabilidade criminal do agente e aplicada a sanção administrativa, concomitantemente.

Agora, partindo para a análise do tipo penal, na própria classificação do delito já se encontram razões para que se dê sua inconstitucionalidade. Trata-se de crime de perigo abstrato, uma vez que para sua tipificação não há necessidade de afetação de bem jurídico penalmente tutelado (crime de dano), nem de comprovação de que a conduta praticada poderia acarretar lesão a bem jurídico (crime de perigo concreto), cria-se, destarte, uma presunção “juris et de jure” normativa, visto que o preceito normativo primário do tipo penal se perfaz com a simples prática da conduta considerada criminosa.

Nos crimes de perigo abstrato, o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição. São tipificados certos comportamentos em nome de sua “periculosidade típica” para um bem jurídico, mas sem que ela necessite ser comprovada no caso concreto, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efetivo para o bem jurídico[3].

É questionada de antemão a constitucionalidade do delito em apreço por se tratar de crime de perigo abstrato, visto que seria tutela demasiada de determinado bem jurídico. No entanto, para garantir a legitimidade desta modalidade de crime, criou-se a idéia de que não se deve punir por crimes de perigo abstrato quando não houver perigo para o bem jurídico, ou quando o agente tomou todas as precauções necessárias a fim de evitar a colocação daquele em perigo[4], mas a nosso ver, cria-se nesta hipótese uma dependência do crime de perigo abstrato a ocorrência de um dano a determinado bem jurídico, o que retira a característica peculiar do delito, objeto desta discussão.

Criticando também os crimes de perigo abstrato, pronuncia-se Claus Roxin, quando trata do crime de incêndio: “El tenor literal del precepto se cumple también aunque en el caso concreto estuviera excluida uma amenaza para la vida. Esto puede poner a los delitos de peligro abstracto en colisión com el principio de culpabilidad[5]“. Argumento com o qual coadunamos, ora, se o indivíduo não tinha intenção de ofender ou colocar em perigo bem jurídico, é desarrazoado que seja punido estando ausente o elemento subjetivo, criar-se-ia um Direito Penal repressivo com base em responsabilidade objetiva, o que é inadmissível, por afetar o princípio supra elencado (“nulla poena sine culpa”).

No delito em apreço, não vemos esta preocupação de demonstrar a potencial lesão a bem jurídico, visto que a própria condição de embriaguez, na concentração definida por lei, já é suficiente para tipificar a conduta, pouco importando, se a quantidade é apta a afetar os sentidos e reflexos do indivíduo ou se este empreendeu os esforços exigidos na direção do veículo para evitar periculosidade de sua conduta, portanto, não necessita que seja mostrada aptidão do crime ou na terminologia de Bockelmann “conduta concretamente perigosa” [6], vez que conforme já dito, tais requisitos deixariam de tornar o crime como de perigo abstrato.

Assim, qualquer tentativa para tornar legítimo e constitucionalmente aceitável o crime de perigo abstrato acaba exigindo a lesão efetiva ou em potencial, do bem jurídico, ou até admitindo a prova da não periculosidade, transformando-o em crime de perigo concreto ou até de dano, o que apenas confirma a tese de que o crime de perigo abstrato, da forma que conhecemos, é insustentável em um Estado Democrático de Direito.

No que tange à tutela de bens jurídicos, não obstante divergências[7], entende-se majoritariamente que, dentro de um Estado Democrático de Direito, o direito penal possui por finalidade imediata a proteção subsidiária de bens jurídicos imprescindíveis à sociedade[8]. Isso significa dizer que só se justifica a incidência penal quando houver lesão ou perigo de lesão a um bem jurídico (princípio da lesividade ou ofensividade) indispensável à coexistência humana (princípio da fragmentariedade) e desde que não haja forma menos gravosa de se obter essa proteção (princípio da subsidiariedade)[9]. Verifica-se, pois, que o desrespeito de qualquer desses princípios deslegitima de plano a tutela penal.

O bem jurídico, como ente material ou imaterial haurido do contexto social, é reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem e, por isso, é penalmente protegido. Consoante tal concepção, tal ente deve estar em consonância com o quadro axiológico tratado na Carta Magna e com o Estado Democrático e Social de Direito[10].

O Professor titular de Direito Penal da Universidade de Buenos Aires vai além, enxergando na tutela aos bens jurídicos, verdadeira finalidade da criação delituosa: “Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens. Esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade, dando verdadeiro sentido teleológico à lei penal”[11].

Resumindo, ao nosso ver e em consonância com parte da doutrina, acreditamos na necessidade da materialização do bem jurídico, baseando-se numa concepção teleológica-funcional, portanto, a aptidão da lesividade que causa a conduta, caso contrário, não há tutela de bem jurídico no caso concreto, o que impossibilita a tutela e repressão penais.

Por fim, puras violações morais, proposições meramente ideológicas ou valores de mera ordenação, subordinados a certa política estatal, entoada de contornos jurídico-administrativos não podem constituir motivo de criminalização, concluindo-se que, toda norma penal incriminadora que não pode ser suscetível de trazer em seu bojo um bem jurídico penal claramente definido é nula, por inconstitucionalidade material.[12]

Analisando a sistemática de bem jurídico penal acima traçada em concordância com o já explicitado acerca do delito em apreço, já há diversas razões para a sua inconstitucionalidade.

Como se não bastassem tais argumentos, há amplo arcabouço principiológico apto a retirar a validade do crime tipificado no artigo 306 da Lei 9.503/97.

O princípio da ofensividade ou lesividade já restou violado pelo que discorremos sobre a natureza do delito que ora se analisa, e pelo posicionamento doutrinário acerca da tutela de bens jurídicos, argumentos estes já supra elencados.

Ademais, para os indivíduos que acreditam na necessidade quase que suprema de tutela de bens jurídicos apenas por vias penais, o que além de desarrazoado, enfraquece e macula o Direito Penal, é importante ressaltar que a missão da pena é a proteção subsidiária dos bens jurídicos, decorrente do princípio da subsidiariedade.

O presente princípio estipula que a proteção de bens jurídicos não se realiza somente pelo Direito Penal, sendo este apenas um instrumento dentre todo o ordenamento jurídico existente, daí a frase de Claus Roxin: “se denomina a La pena como la ultima ratio de la politica social y se define su misión como protección subsidiaria de bienes jurídicos”[13].

Na verdade, o princípio em tela é condicionado necessariamente à razoabilidade e à proporcionalidade, sendo verdadeira medida de eqüidade, pois como a pena privativa de liberdade é a mais grave da sanção dentre todas que o Estado aplica, vai ao encontro do Estado de Direito que esta apenas seja aplicada em casos extremos, não de forma repressiva, ou como remédio milagroso para combater determinada conduta criminosa, vez que lei penal por si só não altera realidade social, se isto vem ocorrendo é pela fiscalização crescente, mas não pela aprovação da presente lei.

Portanto, dado o caráter de subsidiariedade, que funciona também como diretriz de política criminal, apenas pode agir a sanção penal, quando as demais punições se mostram inócuas e inúteis a intimidar os criminosos. A criação de figuras penais de forma primordial retira a eficácia do Direito Penal, tornando suas disposições, leis sem eficácia. Ora, se o ramo do Direito que deve punir com mais rigor não tem eficácia em decorrência da quantidade enorme de leis teratológicas que se impõe, que dirá da eficácia de outras, que não tem o mesmo poder de coerção.
Basta no caso concreto a punição administrativa a ser aplicada, desde que com árdua fiscalização, deixando o Direito Penal a se preocupar com condutas de relevante lesividade.

[1] Tratando da dogmática, expõe José Cerezo Mir: “La dogmática del Derecho Penal tiene la tarea de conocer el sentido de los preceptos jurídico-penales positivos y desenvolver su contenido de modo sistemático, Hemos dicho que La dogmática Del Derecho penal há de conocer el sentido de los preceptos jurídico-penales positivos”. (José Cerezo Mir, Derecho Penal, parte general, Editora RT, pág. 92).

[2] “Deve também distinguir-se a vigência da norma de sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme a norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada. Um mínimo de eficácia é a condição da sua vigência.” (Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, Editora Martins Fontes, pág. 11).

[3] Jorge de Figueiredo Dias. Direito Penal. Parte Geral, Tomo I. pág. 309. Editora. RT.

[4] Idem. Pág. 310.

[5] Claus Roxin. Derecho Penal. Parte General. Tomo I, pág. 407.

[6] Jorge de Figueiredo Dias. Direito Penal. Parte Geral, Tomo I. Pág. 310, “in fine”.

[7] Para Welzel, v.g, a finalidade primeira do direito penal seria a “proteção dos valores elementares da consciência, de caráter ético-social” – WELZEL, Hans. Derecho Penal alemán. Parte general. 11ª edição, tradução de Juan Bustos Ramírez e Sergio Yañez Pérez, Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 1997, p. 2).

[8] “A tarefa do Direito Penal foi limitada, como frequentemente se diz hoje, à ´proteção subsidiária de bens jurídicos`” (ROXIN, Claus. La evolución de la política criminal, el Derecho penal e el processo penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000, p. 21)

[9] PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, v. 1, 6ª ed., São Paulo:RT, 2006, p. 138.

[10] Idem. Pág. 257.

[11] Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli. Manual de Direito Penal. 6ª edição, pág. 396.

[12] Jorge de Figueiredo Dias. Direito Penal, parte geral, tomo I. pág. 126 e Claus Roxin. Derecho Penal, pág.51.

[13] Claus Roxin, Idem. Pág. 65.


Rodrigo Francisconi Costa Pardal, Estudante de Direito/SP, Estudante do 4º ano Matutino de Direito da PUC/SP; Estagiário do Ministério Público Estadual - 2ª Promotoria Criminal; Aluno Pesquisador em Iniciação Científica com Projeto PIBIC-CEPE, sob orientação do prof. Hermínio Alberto Marques Porto

PARDAL, Rodrigo Francisconi Costa. lDa inconstitucionalidade do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 09 dez. 2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

Artigo interessante e bem fundamentado, de fato a lei é lastimável.

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