sábado, 6 de dezembro de 2008

Artigo: Criminologia e Psicologia: Ética, Ensino e Produção de Subjetividade

A tarefa que habitualmente se espera da Psicologia na área criminal é a de psicologizar (no sentido de humanizar) a atuação do detento e oferecer resultados, desvelando assim uma determinada ‘essência’ do sujeito, em favor do desenvolvimento de técnicas de gerenciamento – e ‘amansamento’ - das relações. Mas a Criminologia é só um exemplo. Assim também é na escola, no trabalho e em outras esferas da justiça. Discursos que têm o poder de marcar, estigmatizar e matar o outro, pela força e presença de uma certa perspectiva epistemológica de corte positivista, que insiste em um projeto objetivista, asséptico, neutro, inodoro e incolor para a Psicologia, cujas demandas são endereçadas a intervir e resolver problemas de desajustamento em situações definidas como problemas, ou a emitir pareceres técnicos e laudos sobre ‘perfis psicológicos’.

A Psicologia, hegemonicamente, tem se constituído como ferramenta de adequação e ajustamento intimizado, universal, natural e a-histórico, não se colocando, assim, a questão que se refere a práticas datadas historicamente, instituindo modelos de ser e de estar no mundo segundo padrões de normalidade produzidos como únicos e verdadeiros, inferiorizando e desqualificando os lugares ocupados pelos chamados diferentes, anormais, perigosos, desvinculando- os dos seus contextos sócio-histórico- político-sociais, tornando-os não-humanos. A estes seria endereçado um constante monitoramento, vigilância e tutela.

A presença da disciplina Criminologia nos cursos de Psicologia, quando existe, ainda é marcada pela abordagem positivista que reduz o trabalho do psicólogo à participação nas Comissões Técnicas de Classificação e na aplicação do então chamado exame criminológico. A criminologia positivista procura entender as causas do fenômenos criminosos, através da inferência de relações de causalidade, matematizações e medições, apoiada nas abordagens antropométrica (Lombroso) e sociológica (Ferri). Deste modo, o exame criminológico surge como prática capaz de desvelar subjetividades e, a partir do diagnóstico de psicopatia, a Psicologia passa a interferir na execução da pena, sem no entanto, colocar em questão a suposta natureza e a construção da idéia de crime e de criminoso.

Que efeitos têm sido produzidos em nosso cotidiano? Que sujeitos, saberes e objetos – os quais não existem em si - estamos o tempo todo produzindo? É preciso colocar em análise nossas práticas, discutindo que psicólogos estamos produzindo e que saberes estamos perpetuando como professores.

Recuso, aqui, a perspectiva que incompatibiliza psicologia e política, um tipo hegemônico de racionalidade que impõe a oposição dicotômica entre teoria e prática, ciência e ideologia. Penso como Lobo (2002): "as teorias são nada mais que instrumentos de intervenção que se chocam contra ou meramente reforçam pontos de poder. Se se chocam, elas são na realidade o efeito localizado das lutas, funcionam como instrumentos de combate, de desmontagem das máquinas instituídas" (p.15)

Habitualmente, intervir como psicólogo pressupõe analisar um território individual, interiorizado ou, no máximo, circunscrito a relações interpessoais, transferindo as produções políticas, sociais e econômicas ao campo de estudos de um ‘outro especialista’ . ‘São exteriores à realidade psíquica’, talvez seja esse o argumento. Tentar percorrer outros caminhos e recusar esse destino, lançando mão de uma ‘caixa de ferramentas’ teórico-conceitual foi (é) o desafio. Recusar o lugar de ‘ortopedista social’ (Coimbra e Neves, 2002), com seus saberes prontos em planejamentos metodológicos assépticos, mesmo sabendo que inúmeras vezes fomos (somos) capturados pelo enfoque positivista.

É preciso, enfim, pôr em questão nossas implicações: que lugar eu ocupo como especialista? Não é negar o lugar de saber-poder, é assumi-lo, pondo-o o tempo todo em análise, pensando que práticas e lugares são esses que, como psicólogos, somos convidados a ocupar.

O que fazemos quando ocupamos o lugar de professores? O que significa atravessar a formação em psicologia com discussões sobre criminologia, direitos humanos e a emergência das ‘classes perigosas’? Que efeitos são produzidos quando colocamos em análise a idéia de crime, através de sua proveniência, saberes, diferentes confrontos e produções? O que significa apresentar a perspectiva positivista ao mesmo tempo em que se discute a genealogia foucaultiana com suas produções de saberes, poderes e as relações de força que constroem um determinado modo de fazer criminologia? Com que ética estamos articulados e quais subjetividades estamos produzindo? É preciso adquirir a clareza de que nosso trabalho profissional é também um trabalho político, nunca isento nem neutro. Nossa prática profissional envolve uma concepção de mundo, de sociedade, de homem, de humano, exigindo um posicionamento sobre a finalidade da intervenção que fazemos, a qual envolve a certeza de que nossas práticas têm sempre efeitos, exigindo que tomemos, portanto, posições.


Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, Professor adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da diretoria executiva do Conselho Regional de Psicologia – 5ª região.


http://www.psicolog ia.ufrj.br/ boletimip/ index.php? option=com_ content&task=view&id=25&Itemid=5

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