sexta-feira, 24 de abril de 2015

Para convidados de audiência, discurso de 'medo e ódio' estimula apoio à redução da maioridade penal


O apoio que a população vem expressando à redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos, em grande medida é estimulado por discursos de “ódio e medo” e ainda por dados que amplificam falsamente a participação de menores em crimes no país. O alerta partiu de participantes da audiência pública que debateu o tema, nesta quinta-feira (23), na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH).
Os convidados lembraram estatísticas da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SNSP), do Ministério da Justiça, que indicam serem os jovens entre 16 a 18 responsáveis por apenas 0,9% da criminalidade no país, taxa que cai para somente 0,5% quando se examina a participação específica em homicídios ou tentativa de homicídios.
Os jovens seriam, pelo contrário, os maiores alvos de graves violências, como destacaram dirigentes de entidades civis e de órgãos públicos que atuam na defesa de direitos de crianças e adolescentes. Dos crimes de morte, eles representaram em 2012 nada menos que 53,7% das vítimas, em sua maioria jovens negros, pobres e moradores das periferias das grandes cidades.

Tempo de repensar

Apesar desses dados, pesquisas mostram o apoio de mais de 70% da população à redução da maioridade penal. A defensora pública Bruna Rigo Leopoldi Ribeiro Nunes, de São Paulo, apelou aos brasileiros para que “repensem tudo” o que vêm ouvindo sobre o tema. Para a convidada, que representou a Associação Nacional dos Defensores Públicos, até o momento o tom dos discursos não vem contribuindo para uma decisão informada e racional, traduzindo mais um "sentimento de vingança”.
— São discursos inflamados de ódio, inflamados de medo. É toda uma discussão inflamada pela violência e por dados inverídicos — criticou Bruna.
Depois de lembrar que o sistema carcerário do país já abriga mais de 500 mil condenados, Felipe da Silva Freitas, secretário de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), no estado do Paraná, observou que o “discurso do medo” não é útil para debater a questão da redução da maioridade, pois “paralisa e interdita a capacidade de reflexão”.
Na abertura da audiência pública foi apresentado um vídeo com recente edição do programa Profissão Repórter, da TV Globo, que abordou amplamente o tema da redução da maioridade penal. Entre deputados federais defensores da tese que foram ouvidos, alguns chegaram a citar supostas estatísticas que atribuem aos menores de 18 anos não menos que 50% dos crimes no país – alguns chegam a falar em 70%.

PECs em debate

No momento a Câmara dos Deputados analisa uma proposta de emenda constitucional (PEC 171) que reduz a maioridade penal para 16 anos. No Senado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) rejeitou, em 2014, a PEC 33/2012, que prevê algumas possibilidades para que maiores de 16 anos sejam julgados como adultos. No entanto, a PEC ainda pode ser analisada, já que o autor, senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), e outros senadores apresentaram recurso para a sua votação em Plenário.
O senador Telmário Mota (PDT-RR), que coordenou a audiência, em substituição ao colega Paulo Paim (PT-RS) - que preside a CDH e está em licença para tratar da saúde -salientou que o país vive uma crise política e moral, e nesse quadro os brasileiros têm pressa e querem mudanças. Por isso, muitas vezes abraçam causas movidos por crença injustificada de que assim seus problemas serão resolvidos, como acredita que seja o caso da ideia de que a redução da maioridade trará resposta para a questão da violência.
— A mídia faz uma projeção muito grande, principalmente os programas sensacionalistas, policialescos. O que dá audiência é ver um corpo no chão ou um jovem sendo apreendido, mostrar uma coisa ruim, sem se preocupar com estatística, que não dá audiência — comentou.

Estelionato

Para Luciana Loureiro Oliveira, procuradora-regional dos Direitos do Cidadão no Distrito Federal, a redução da maioridade penal de nenhum modo representa solução para a criminalidade juvenil. Assim, considerou a PEC 171, a da Câmara, mais comentada no momento, uma tentativa de enganar a população, um “estelionato contra a sociedade”, como sugerido pelo próprio número, coincidente com um dos mais conhecidos tipos do Código Penal. Segundo ela, além das medidas socioeducativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já oferece respostas adequadas, bastando ser aplicado em toda sua extensão.
— Aquele jovem que já está marginalizado em todos os sentidos, pela completa ausência do Estado, não merece ser jogado na vala comum do sistema penitenciário — disse.
Além de Luciana, outros participantes alertaram para um eventual agravamento da criminalidade se a redução da maioridade penal prevalecer, aplicando-se política geral de encarceramento de menores de 16 anos. André Augusto Salvador Bezerra, presidente da Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), lembrou que as estatísticas mostram que chega a 70% a taxa de reincidência no sistema prisional no país. Portanto, concluiu, a grande maioria dos que passam pelos “calabouços mediáveis a eles voltam”.
O juiz citou ainda estudo realizado no Canadá, pela Universidade de Montreal, sobre os efeitos adversos da atuação da Justiça juvenil, como resultado de medidas de encarceramento de jovens. Segundo ele, os dados mostraram que esses jovens têm probabilidade 37 vezes maior de se envolverem em detenção na idade adulta, na comparação com outros que igualmente cometeram crimes, mas cumpriram outras medidas em vez do encarceramento.
— Vamos colocar essa situação no Brasil, que tem porta muito maior para a criminalidade, e imaginar o que a sociedade colherá se essa medida for aprovada — provocou.

Clausula pétrea

Quase todos os participantes sustentaram ainda o argumento de que a maioridade aos 18 anos é cláusula pétrea da Constituição e, portanto, imodificável. Pedro Paulo Guerra de Medeiros, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), salientou que a entidade vem há muito tempo reiterando essa posição. Assim, está disposta a acionar o Supremo Tribunal Federal para questionar a redução, caso a proposta seja aprovada pelo Congresso, inclusive se sobrepondo a tratados internacionais assinados pelos país. A seu ver, os defensores da medida estão praticando uma espécie de “populismo penal”.
Ariel de Castro Alves, representante da ONG Aldeias Infantis SOS, alertou para o risco de desmanche do sistema de garantias legais que o país adotou nas últimas décadas em favor das crianças e adolescentes. Segundo eles, podem passar a ser questionados, caso a vítima seja maior de 16 anos, alguns tipos de crimes que hoje são reprimidos – exploração de trabalho de menores, exploração sexual de jovens, indução de menor a crime. Segundo eles, os acusados poderão se valer do argumento de que os jovens já seriam responsáveis por seus atos.

Mitos

Contra o argumento de que atualmente os menores ficam impunes, visto como um “mito” a ser enfrentado, Angélica Moura Goulart, presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), ressaltou que entre as medidas corretivas do ECA se incluem restrição de liberdade. Muitas vezes, observou, adolescentes e jovens são proporcionalmente mais punidos que os adultos quando cometem o mesmo tipo de infração.
Para Ângela Guimarães, secretária Nacional de Juventude e também presidente do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve), há de fato muitos mitos em torno do debate. A seu ver, há uma “grita desproporcional” pela redução da maioridade, diante de números ínfimos de crimes hediondos e crime contra a vida envolvendo adolescentes.
Esther Lemos, vice-presidente do Conselho Federal de Serviços Sociais, classificou a redução como retrocesso. Ela lembrou que a Constituição e também o ECA representaram uma mudança de paradigma, que tirou o adolescente da perspectiva de situação irregular para uma de proteção integral.
Mariza Monteiro Borges, presidente do Conselho Federal de Psicologia, observou que mortes de jovens pobres, sempre as maiores vítimas da violência, não causam a mesma comoção social em comparação às vítimas de outros extratos sociais. Para ela, o país neste momento irá escolher se pretende continuar acreditando em sua juventude e em seu próprio futuro.

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