Existem muitas formas de encarar a proposta de reduzir de 18 para 16 anos a maioridade penal no Brasil –e nenhuma delas oferece perspectivas positivas.
Mesmo numa abordagem bastante complacente, em que seria vista pelos efeitos que possa ter na segurança pública, a medida não se justifica. Estima-se, por exemplo, que menos de 1% dos homicídios no país sejam cometidos por adolescentes de 16 e 17 anos –cerca de 500 num universo que supera os 55 mil assassinatos anuais.
Ou seja, ainda que a nova diretriz reduzisse a zero as taxas de delinquência juvenil, os ganhos seriam mínimos. Mas a lei, nunca é demais insistir, não faz mágicas, ao contrário do que parece pensar o deputado Marcos Rogério (PDT-RO).
Autor do voto que, sendo aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, permitiu o avanço da proposta de redução da maioridade penal, o deputado defende a iniciativa dizendo que seu objetivo é "evitar que jovens cometam crimes na certeza da impunidade".
Se houvesse fundamento na argumentação, os brasileiros não conviveriam com índices de criminalidade tão elevados. Ao país não faltam normas prescrevendo punições severas para adultos.
O raciocínio de Rogério falha também num outro aspecto: o conjunto de regras para jovens infratores passa longe da impunidade. Podendo tutelar o cidadão a partir dos 12 anos, o sistema brasileiro está entre os mais duros do mundo.
Há, no entanto, uma mudança legislativa desejável. Como esta Folha sustenta há muito tempo, não faz sentido limitar a três anos o período máximo de internação dos jovens mais violentos.
Esse prazo de afastamento do convívio social deveria ser ampliado, mas só para crimes dolosos contra a vida, observando-se critérios estritos e sempre mantendo os jovens separados dos adultos, inclusive após os 18 anos. Do contrário, seriam presa fácil nas penitenciárias superlotadas e controladas por organizações criminosas.
Pelo menos um projeto com essas características tramita no Congresso, mas o atual Legislativo não parece propenso a debater o tema de maneira racional.
Diante de um Executivo fragilizado e confrontados com protestos nas ruas, legisladores recorrem a diversos expedientes para dar respostas às bases eleitorais. Isso inclui, infelizmente para um Estado democrático de Direito, o populismo penal –e a redução da maioridade é sua ponta mais visível.
Açulada pela Frente Parlamentar da Segurança Pública, a pauta de apelo popular inclui proposições como a que transforma em hediondo o homicídio e a lesão corporal gravíssima praticados contra policiais, bombeiros, militares e integrantes do sistema carcerário, desde que o crime decorra do exercício do cargo ou função.
A mesma regra, que foi aprovada na Câmara e segue para o Senado, vale para cônjuges e parentes desses agentes de segurança.
Na versão original, o projeto aumentava igualmente a pena para o policial que provocasse morte ou lesão corporal de modo criminoso, mas tal dispositivo foi derrubado.
Formada por 21 deputados, a chamada bancada da bala também conseguiu dar um passo importante no sentido de tornar mais rígido o cumprimento da pena pela prática de crimes hediondos.
A esse rol de iniciativas acrescentam-se projetos com vistas a agravar sanções para roubo de armas e explosão de caixas eletrônicos –e, como tal frente parlamentar não se preocupa com paradoxos, há ainda a tentativa de enfraquecer o Estatuto do Desarmamento.
Diferentes no conteúdo, as propostas que tiveram a tramitação acelerada nos últimos dias se igualam no princípio que as anima: a ideia de que os problemas da sociedade podem ser resolvidos por meio de novas leis ou de alterações nas normas existentes.
Essa noção não é apenas falsa; no direito penal, é também nociva.
A possibilidade de interferência mais grave do Estado na vida do cidadão se dá na seara criminal. As balizas para tal interação vêm do ordenamento jurídico, que deve impedir o arbítrio e hierarquizar os valores que o país deseja proteger.
A aprovação de leis ao sabor de clamores populares e circunstâncias políticas tende a quebrar a arquitetura normativa. Mais que isso, diminui as garantias do indivíduo perante os poderes constituídos.
Numa sociedade ainda muito desigual, a experiência passada sugere o quanto, na prática, o endurecimento penal há de ser aplicado de forma seletiva no futuro.
Há um modo de evitar esse desdobramento: basta, no presente, ser seletivo diante de propostas de endurecimento penal. Se isso parece fora dos planos do Congresso, cabe ao governo federal, comandado por um partido em tese de esquerda, oferecer alternativas políticas para a segurança pública.
Editorial do jornal Folha de S.Paulo publicado neste domingo (5/4).
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