“É o fundo do poço, é o fim do caminho”, cantou Tom Jobim, em “Águas de Março”. Para quem acompanha o Direito Penal brasileiro, a descrição parece sob encomenda. Na segunda quinzena do mês de março, propostas vindas de representantes dos três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, apontam que o país segue pelo caminho do punitivismo, da apologia da prisão e do aumento de penas como solução para a criminalidade (veja o gráfico — clique nas setas para avançar ou voltar).
Entre os exemplos da escalada do Direito Penal Simbólico — aquele que busca no aumento de penas transmitir uma falsa ideia de aumento de segurança — estão os “pacotes anticorrupção”, apresentados pelo governo federal e pelo Ministério Público Federal nos dias 16 e 18 de março, respectivamente. As propostas do MPF incluem não anular processos nos quais foram usadas provas ilícitas; transformar em crime hediondo a corrupção envolvendo altos valores; e permitir prisão preventiva para evitar a dissipação de dinheiro desviado. Já o pacote apresentado pela presidente Dilma Rousseff prevê a tipificação do crime de “caixa 2 eleitoral”; a alienação antecipada de bens apreendidos; e uma espécie de “Lei da Ficha Limpa” para todos os ocupantes de cargos comissionados na administração pública federal.
Dias depois, o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, Antônio Cesar Bochenek, e o juiz federal Sergio Moro, que conduz a operação “lava jato”, apresentaram, em artigo na grande imprensa, a proposta da execução imediata da pena para condenados por determinados tipos de crimes que eles consideram mais graves, como o desvio de dinheiro público. Se couber recurso, que o condenado aguarde sua tramitação na cadeia. Ainda antes de o mês acabar, a Câmara dos Deputados instalou uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.
O criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que já presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo e foi secretário de segurança pública do estado, é direto ao analisar as propostas: “Trata-se de um simbolismo ilusório e enganador. Uma verdadeira cortina de fumaça para ludibriar a sociedade. Continua-se a tratar o crime pelos seus efeitos, com leis mais rigorosas; polícia na ruas; prisão; ameaça de pena de morte; menores na cadeia, com absoluto desprezo pelas causas do crime”.
Vale tudo
A corrupção é vista agora como “a inimiga publica número um”, explicaAugusto de Arruda Botelho, presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Assim, para acabar com ela, vale tudo. “É como se todas as mazelas de nosso país tivessem origem exclusivamente nesse fator. A partir daí, para acabar com a corrupção endêmica, para prender os corruptos e corruptores, e, finalmente, salvar o país, vale prender, torturar e utilizar prova ilícita”, critica.
A reação por parte da população, de aplaudir quaisquer iniciativas que pareçam ir contra os vilões da vez se justifica. Os índices de violência só aumentam e a Justiça criminal segue lenta, com poucos juízes e promotores para atuarem nos milhões de casos que nela tramitam. “Para a população e parte da mídia é mais fácil eleger um outro culpado para a morosidade: a grande quantidade de recursos e as ‘chicanas’ dos advogados”, diz Botelho.
A luta contra os recursos marca mais um dos acontecimentos que tornaram março de 2015 “um mês sem precedentes na história do Direito Penal brasileiro”, nas palavras do criminalista André Callegari. No dia 28, o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil, Antônio Cesar Bochenek, e o juiz federal Sergio Moro, responsável pelos processos decorrentes da operação “lava jato”, publicam um artigo no qual afirmam que a melhor solução para o problema da corrupção é “de atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos”.
A proposta foi duramente criticada por juristas. O ministro Celso de Mello, decano do Supremo, considera a medida “inaceitável, insuportável, um retrocesso inimaginável”. Seu colega de corte, ministro Marco Aurélio, diz que não é possível ter no campo penal “uma execução que não seja definitiva, já que ninguém devolve ao absolvido a liberdade que se tenha perdido”.
Até mesmo o ex-presidentes da Ajufe Fernando da Costa Tourinho Neto e Gabriel Wedy foram contra a medida proposta pelo atual mandatário da entidade. Para Callegari, o que mais surpreende é a falta de discussão prévia sobre as mudanças. “Estamos propondo alternativas penais para dar uma resposta rápida à sociedade. Como se o Direito Penal tivesse um efeito mágico sobre todos os problemas que estão ocorrendo. O problema é que a sociedade pensa que isso resolverá todos os fatos que estamos presenciando e nós sabemos que isso não é verdade.”
“Já estamos no Direito Penal do Inimigo”, alerta o juiz de direito de Santa Catarina, Alexandre Morais da Rosa. A prática tem o condão de dividir a sociedade em duas partes: Uma delas possuidora de uma tendência inata para o crime; a outra parte constituiria o lado são, como explica Mariz de Oliveira. “Para a primeira, o rigor da lei é exigido aos brados pelo lado ‘não doente’. Esquecem-se, no entanto, que o crime é um fenômeno humano, portanto social, que pode sujeitar qualquer um à sua prática”, continua o criminalista.
Morais da Rosa vaticina: a imensa maioria da magistratura e do Ministério Público trabalha com a noção amigo/inimigo, mesmo que como pano de fundo. O Judiciário, que deveria servir de limite, para a sanha punitiva, serve, segundo o juiz, muitas vezes, como aliado da Segurança Pública. No entanto, “Judiciário aliado da Segurança Pública não é Judiciário. É juiz-policial”, pontua.
A figura do juiz que acusa é severamente criticada pelo advogado Miguel Pereira Neto. “O juiz que age como inquisidor e ajuda na investigação já está permeado por uma parcialidade”, aponta. Ele critica a atuação de Sergio Moro na operação “lava jato” — na qual Pereira Neto defende o empresário Adir Assad. “Há o uso indevido da prisão para manter o acusado preso até que ele faça uma confissão ou concorde em fazer uma delação premiada. Isso está modificando o nosso processo penal.”
A “lava jato” explica os exageros do “pacote anticorrupção” do governo, afirma André Callegari. “O Executivo se viu envolvido num esquema de corrupção jamais visto antes no país envolvendo uma empresa símbolo e orgulho de todos nós. Diante da pressão diária para explicar o que ocorreu à população e como resolverá esse problema o governo propõe um ‘pacote anticorrupção’ com várias medidas penais que são de duvidosa aplicação”. Para ficar bem visto, finge ignorar que esse pacote não se aplicará no caso da Petrobras, por exemplo, uma vez que o Direito Penal não retroage para prejudicar o réu.
A prática de fabricar leis quando a sociedade está tomada de forte emoção é recorrente. Nos anos 1990, no rastro da comoção criada pelo assassinato de uma atriz global Daniella Perez, filha da autora de novelas Glória Perez, iniciou-se a campanha que resultou no endurecimento da lei de crimes hediondos. Não se tem notícia de que a a criminalidade tenha retrocedido desde então, em consequência da nova lei.
Contribuintes sob suspeita
Não é apenas a “lava jato” no entanto, que tem gerado críticas dos advogados. No dia 26 de março foi deflagrada a operação zelotes, com buscas e apreensões em escritórios de advocacia acusados de fraudar decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). O receio de advogados é que a operação seja usada para desmoralizar o órgão ou para dizer que todas as decisões a favor do contribuinte são resultado de influências “pouco republicanas”. Nem se levou em conta o fato de que em mais de 90 por cento das decisões do Conselho, os contribuintes sucumbem diante das razões do Estado todo poderoso.
Marcelo Knopfelmacher, presidente do Movimento de Defesa da Advocacia, aponta que o Carf passou a ser tratado de forma pejorativa por setores da imprensa, “sem que as apurações e investigações sequer tivessem se iniciado ou estivessem ainda em uma fase embrionária”. Assim, continua, seguiu-se uma caça às bruxas generalizada, ignorando que “o rigor da lei deve ser sim aplicado, mas apenas depois da rigorosa e detida apuração, assegurado o contraditório e o basilar direito de defesa”.
A existência das operações e a apresentação de “pacotes” de combate ao crime, por si só, não podem ser vistos como algo ruim, afirma o criminalista e ex-secretário da Reforma do Judiciário Pierpaolo Cruz Bottini. Eles são uma reação natural à divulgação de escândalos de corrupção e à constatação do aumento de crimes.
O problema, no entanto, é quando a mudança legislativa como o aumento de penas é apontada como solução imediata e casuística para um problema constatado ou divulgado. Esse parece ser o caso de movimentações da Câmara dos Deputados no último dia do mês de março. No dia 31, o Plenário da Câmara aprovou proposta que aumenta a pena pelo uso de explosivos no furto qualificado, com a justificativa de que isso coibiria o uso de dinamites no assalto a caixas eletrônicos. Na mesma data, a Casa instalou uma comissão especial para analisar a Proposta de Emenda à Constituição que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos.
Para impedir a escalada do Direito Penal Simbólico, Mariz de Oliveira sugere “pregar o respeito pelas liberdades individuais, pelo garantismo penal e pelo humanismo que deve reger toda conduta em face do crime, que repito, é um fenômeno humano e social, e como tal deve ser encarado”. Já Alexandre Morais da Rosa prefere apostar que as pessoas buscarão esclarecimentos e não embarcarão “na espuma de dias melhores banhados por sangue e Direito Penal”.
Marcos de Vasconcellos é chefe de redação da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 10 de abril de 2015.
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