A audiência de apresentação ao juízo logo após a prisão em flagrante é medida política, absorvida no sistema jurídico interamericano, que reduz o encarceramento, previne contra a tortura e colabora na efetivação dos direitos das pessoas presas, sobretudo na valorização da dignidade humana.
O sistema jurídico-penal compõe a superestrutura estatal, como forma de manter as relações estruturais da sociedade dividida em classes. O Estado detém o monopólio do uso da força legitima que, na prática, exerce a retribuição a condutas selecionadas e em desfavor de sujeitos igualmente selecionados, de forma que este seletivo sistema pune com institucionalizada restrição de direitos fundamentais, sendo o mais evidente a liberdade.
Não hesitamos em dizer que o exercício do poder punitivo se concentra em desfavor dos vulneráveis, pois a população carcerária brasileira é formada, notadamente, por um grupo de historicamente “excluídos”: jovens, negros, de baixa escolaridade e residentes da periferia.
Nesse contexto, a Defensoria Pública serve como força contra-hegemônica realizando um contrafluxo ao poder punitivo. O privilégio de ser defensor público é poder exercer, entre outras, a função de reduzir a “punição legítima do Estado” contra os vulneráveis.
Elegemos um lado e nos posicionamos coerentemente com a escolha: a defesa dos direitos daqueles a quem o Estado somente se mostra presente no momento da repressão.
Em suma, a adoção de medidas que reduzem o encarceramento e fortalecem as garantias constitucionais convergem com os nossos fins institucionais. Assim, a audiência de custódia não deve ser polêmica em nossa instituição.
O Brasil adota ostensiva política de aprisionamento: tem a 4ª maior população carcerária do mundo, com 574 mil presos, apenas atrás de EUA, China e Rússia. Considerado o número de pessoas sob alguma forma de controle, ainda que não estritamente intramuros, que, se não encarcerados, são facilmente encarceráveis (ex: regime aberto e prisão domiciliar) ultrapassamos a Rússia e chegamos ao desonroso 3º lugar. Ainda, nas últimas duas décadas, tivemos o 2ª maior aumento da população carcerária, perdendo apenas do Camboja.
No Paraná, estado com a 4ª população carcerária do Brasil, no fim de fevereiro deste ano, havia 9606 presos em Delegacias de Polícia, destes, 7339 detidos em flagrante. Havia, ainda, 4075 em Casas de Custódia, unidades para presos provisórios. De um total de 28550 presos, o Paraná apresentava 47% de não sentenciados. Outros estados têm percentual ainda maior de presos provisórios, confirmando-nos que, como diz Zaffaroni, no Brasil “pune-se pela dúvida” [ Zaffaroni, E. R. Prólogo ao livro Execução Penal: teoria crítica de Rodrigo Duque Estrada Roig. P. 12].
Isso significa que mais de 40% das prisões do Brasil poderiam ser analisadas em audiências de custódia: reverter-se-ia a prisão do selecionado em favor da liberdade em sua situação de presunção de inocência.
Com a atual sistemática, em que medidas cautelares diversas da prisão são previstas, sendo a prisão a última medida, a audiência de custódia trará grande impacto no encarceramento, permitindo a redução de prisões indevidas.
Ainda, trata-se de medida que coibi a violência policial, por razões óbvias. Isto, por si só, é suficiente para a apoiarmos, pois representa grande avanço na persecução aos Direitos Humanos, um dos fins institucionais da Defensoria Pública.
O Pacto de São José da Costa Rica, que prevê referido ato, é de 1969 e foi ratificado pelo Brasil em 1992. Seria incoerente cobrarmos a supressão do atraso na implantação de uma Defensoria Pública autônoma e estruturada, apta a prestar assistência jurídica gratuita, integral e universal, e, por outro lado, relevarmos o atraso na realização da audiência de custódia, prevista em documento ratificado há mais de 20 anos pelo Brasil.
Como defensores públicos, não nos curvamos a argumentos conjunturais de falta de pessoal ou remuneração, em desfavor da defesa de uma pauta que trará avanços estruturais e racionalização do poder punitivo com a redução do encarceramento e maior tutela dos direitos dos nossos usuários.
Por fim, ressaltamos que, a despeito de toda a política de superencarceramento, as taxas de violência na sociedade não diminuíram, e o fenômeno do crime organizado (incontrolável nas atuais circunstâncias materiais do cárcere), por outro lado, cresce como bolo fermentado justamente pela política de segurança adotada, o que nos faz questionar se o suposto remédio para o crime, não se faz, em verdade, veneno. Pelo que, também como argumento racional e racionalizante do exercício do poder punitivo e de nossa política de segurança, não há como sermos contrários à implementação de tal ato.
Assim, somos favoráveis à audiência de custódia e entendemos que devemos empreender os esforços da nossa classe para sua realização no Brasil.
Por Henrique Cardoso, Eduardo Abraão, Alexandre Kassama e Monia Regina Serafim, defensores públicos do estado do Paraná
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