segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

"Há pouco caso da sociedade com sistema carcerário"

Notíc prisão dos condenados na Ação Penal 470, o processo do mensalão, trouxe de volta o debate acerca das condições das presídios do país. Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, é preciso que todos os setores se envolvam na discussão desse problA prisão dos condenados na Ação Penal 470, o processo do mensalão, trouxe de volta o debate acerca das condições das presídios do país. Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, é preciso que todos os setores se envolvam na discussão desse problema.


A prisão dos condenados na Ação Penal 470, o processo do mensalão, trouxe de volta o debate acerca das condições das presídios do país. Para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, é preciso que todos os setores se envolvam na discussão desse problema.
Quando foi presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, em 2008, o ministro organizou mutirões carcerários e visitou presídios em todos os estados do país. Em entrevista à jornalista Monica Bergamo, da Folha de S.Paulo, Gilmar Mendes conta que identificou cerca de 22 mil presos havia pelo menos três anos sem inquérito concluído.
Para ele, a situação vai além de ser um problema de direitos humanos, mas de segurança pública. "A omissão do Estado é suprida por organizações criminosas. Os privilégios são dados não pelo sistema estatal, mas pelo sistema informal que se organiza no presídio", disse na entrevista.
Diante da deficiência da Defensoria Pública para atender a demanda e da falta de um modelo estruturado, o ministro propõe um serviço obrigatório para advogados recém-formados. "Poderíamos pensar num serviço civil obrigatório para todo jovem egresso das faculdades de direito das universidades públicas. Eles ficariam um ano fazendo estágio no sistema prisional", explica. Entretanto, o ministro reconhece que as questões corporativas são um entrave à ideia.
Leia abaixo a entrevista do ministro Gilmar Mendes à Folha de S.Paulo, publicada na edição deste domingo (8/12):
Folha de S.Paulo — O ex-deputado José Genoino, recém-operado do coração, bebeu água de torneira na Papuda, presídio que não tem sequer plantão médico. É um lugar destruidor e parece compreensível a preocupação da família dele.
Gilmar Mendes - É claro. É claro. Nós deveríamos discutir essa questão de uma maneira muito aberta e franca para superarmos realmente esse quadro caótico que é o das prisões. Não faz sentido que, num país como o Brasil, nós tenhamos presídios sem as mínimas condições para um tratamento digno das pessoas. Deveríamos chamar a atenção para a responsabilidade de todos os setores.

Folha de S.Paulo — Quais?
Gilmar Mendes — Do governo federal, via Ministério da Justiça, que tem um fundo significativo para a melhoria das condições penitenciárias. Das secretarias estaduais de Justiça. Do Ministério Público, que deveria fiscalizar os presídios. Do Judiciário. É uma cadeia de responsabilidades que não cumpre a sua função.

Folha de S.Paulo — Quando presidiu o STF (Supremo Tribunal Federal) e o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), em 2008, o senhor organizou mutirões carcerários e visitou presídios em todo o país. O que encontrou?
Gilmar Mendes — Um quadro de desmando completo, de abandono, de pessoas amontoadas. O preso está mal, com problema de saúde, ele é colocado fora da grade, mas deitado no chão. No presídio de Pedrinhas, no Maranhão, encontramos um sujeito com o ventre aberto. No Espírito Santo, presos estavam num contêiner. Os de cima faziam necessidades nos que estavam embaixo.

Folha de S.Paulo — E todos sabem que é assim.
Gilmar Mendes — A relação de pouco caso da sociedade com o sistema [carcerário] se traduz na relação do poder público com ele. Se faltam recursos, os primeiros cortes são nessa área. É um quadro de abandono.

Folha de S.Paulo — E a pressão social é zero.
Gilmar Mendes — Não há nenhuma crítica da sociedade. Não há nenhum partido que verbalize isso. Certa vez me perguntaram por que o STF só cuidava de réus ricos. Não. O tribunal cuida de réus ricos e de pobres. Mas a imprensa só se interessa pelos ricos.

Folha de S.Paulo — Parcela da população acha que criminosos não merecem qualquer consideração.
Gilmar Mendes — O preso só perdeu a liberdade, nada mais. A legislação não permite outras sanções. Por outro lado, essas más condições dos presídios representam uma ameaça à segurança pública. A omissão do Estado é suprida por organizações criminosas. Os privilégios são dados não pelo sistema estatal, mas pelo sistema informal que se organiza no presídio.

Folha de S.Paulo — O banqueiro Edemar Cid Ferreira, ao contar a sua experiência quando foi preso, disse que os detentos só pensam em uma coisa: que a mulher e a filha estão se prostituindo para se sustentar. No desespero, encontram amparo nas organizações criminosas.
Gilmar Mendes — Sem dúvida nenhuma. A falta de cuidados do Estado faz com que a atividade supletiva [aos presos] seja dada pelas organizações. Elas passam a prestar um serviço que deveria ser do Estado, das ONGs, dos segmentos da comunidade. Oferecem advogados, assistência à família do preso. E se fortalecem.

Folha de S.Paulo — O preso, no desamparo...
Gilmar Mendes — [interrompendo] Ele aceita qualquer oferta. Por isso é preciso realmente discutir esse tema com seriedade. Não é só um problema de direitos humanos. É uma questão séria de segurança pública.

Folha de S.Paulo — E ninguém se importa.
Gilmar Mendes — Aparentemente há um certo desleixo, uma certa desídia. Nós já nos acostumamos com essa situação. Esse é um quadro que nos envergonha.

Folha de S.Paulo — O que mais os mutirões carcerários revelaram?
Gilmar Mendes — Em cerca de um ano, detectamos algo como 22 mil presos há três, quatro, sete anos, sem inquérito concluído. No Ceará, encontramos uma pessoa presa há 14 anos sem julgamento. Há aqueles que já cumpriram a pena e estão esquecidos nos presídios.

Folha de S.Paulo — E que explicação o juiz dá?
Gilmar Mendes — Sempre se diz que é um problema de falta de infraestrutura. Terceiriza-se a responsabilidade. Mas hoje nós não podemos dizer que os juízes não têm responsabilidade sobre o caos do sistema prisional. No CNJ, verifiquei que nós tínhamos juízes da execução penal que nunca tinham visitado um presídio.

Folha de S.Paulo — Mas é a obrigação deles.
Gilmar Mendes — Talvez isso seja a concretização dessa pré-compreensão negativa que a própria sociedade tem em relação aos presídios. Isso talvez contamine a ideologia e a percepção do próprio juiz.

Folha de S.Paulo — Ou seja, "dane-se".
Gilmar Mendes — Pois é. E, por outro lado, as corregedorias não exigem [dos juízes], o Ministério Público não cumpre a sua função, que é a de fiscalizar as condições dos presídios. Por isso o CNJ editou várias resoluções determinando que se fizessem verificações sucessivas das prisões provisórias. No patamar tecnológico que nós atingimos, temos condições de saber tudo o que acontece no sistema prisional. O próprio CNJ teria condições de monitorar isso.

Folha de S.Paulo — E os advogados?
Gilmar Mendes — A OAB não tem nenhum interesse sobre isso. Aliás, os setores de direitos humanos em geral. Eles quase sempre focalizam o quê? É o preso político, é o caso [do italiano Cesare] Battisti. Mas eles não se interessam pelos presos comuns. Esse desprezo da sociedade para com a comunidade de presidiários contamina todos os segmentos.

Folha de S.Paulo — E os defensores públicos?
Gilmar Mendes — Não há defensores suficientes para a demanda.

Folha de S.Paulo — Fortalecer as defensorias não poderia ser uma solução?
Gilmar Mendes — Elas são órgãos estaduais. E hoje existe toda uma disputa corporativa. Os defensores querem equiparação [salarial com juízes e promotores]. Os governadores [que arcam com os custos] veem esse quadro com desconfiança. Isso [a obrigação de se criar defensorias] está na Constituição de 1988 de forma muito clara. Passados 25 anos, nós ainda não temos um modelo estruturado. Há Estados grandes que têm 20 defensores. Nós temos hoje 70 mil presos em delegacias, o que é ilegal. E não temos advogados para viabilizar esse debate.

Folha de S.Paulo — O país estaria precisando de um "Mais Advogados"?
Gilmar Mendes — Talvez você não precise contratar advogados. Há um campo interessante para um experimentalismo institucional. Poderíamos pensar num serviço civil obrigatório para todo jovem egresso das faculdades de direito das universidades públicas. Eles ficariam um ano fazendo estágio no sistema prisional. Conheceriam a realidade do Brasil! E prestariam um serviço relevante ao país. Veja, nós temos hoje um número enorme de bacharéis em direito. Se tivéssemos um advogado em cada presídio ou delegacia, é óbvio que teríamos um outro quadro em termos de direitos humanos. Certamente, nas delegacias, neste momento em que conversamos, estão ocorrendo torturas.

Folha de S.Paulo — E por que a ideia não vinga?
Gilmar Mendes — Porque nós temos um quadro corporativo no país. A OAB defende os advogados privados. A Defensoria Pública entende que não deve atuar com voluntários. Eu até já brinquei: não se preocupem, há pobres para todos.

Folha de S.Paulo — Há também a questão dos ex-detentos.
Gilmar Mendes — No Brasil se diz que nós temos um dos maiores índices de reincidência do mundo, de 70%. E por quê? Porque ninguém cuida. O único programa institucionalizado, e ainda assim hoje tocado sem muito entusiasmo, é o Começar de Novo, do CNJ. É preciso intensificar. Porque aqui está o controle da criminalidade. Se a pessoa consegue se ressocializar, obviamente você quebra o ciclo de envolvimento dela com o crime. De novo: não é só uma questão de direitos humanos. O problema é que segurança pública, hoje, virou apenas aparato policial.

Folha de S.Paulo — Lugar de bandido é na cadeia.
Gilmar Mendes — A mensagem, em geral, é a do endurecimento. Nada contra. Mas isso dá uma ilusão de ótica para a sociedade. Não é a resposta adequada a todas as mazelas. O sistema de segurança pública é mais complexo. Não basta colocar o sujeito no presídio. Ele pode ser solto no momento seguinte, porque o juiz não deliberou e houve excesso de prazo, por exemplo. E aí, na comunidade, a repercussão negativa é enorme. A justiça criminal envolve o Ministério Público, a Defensoria Pública, o sistema prisional, a polícia. É por isso que eu digo: nós temos que olhar as árvores e a floresta. O sistema é de uma disfuncionalidade completa. É preciso um freio de arrumação, uma "concertación", um grande mutirão institucional nessa área. Nós temos aqui também o retrato do Brasil: é o caos, graças à má gestão.

Folha de S.Paulo — O Estado é o caos na hora em que vai fazer Justiça.
Gilmar Mendes — Com certeza. A grande prioridade hoje em matéria de continuidade da reforma do Judiciário deveria ser a justiça criminal, como um tema de direitos humanos e de segurança pública. Quantos inquéritos ficam sem conclusão no país? Em Alagoas, encontramos 4.000 homicídios sem sequer inquérito aberto.

Folha de S.Paulo — A Justiça é injusta.
Gilmar Mendes — De todo lado nós temos injustiça aqui.

Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro de 2013

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