Enquanto o coro cantava “Anoiteceu, o sino gemeu / a gente ficou feliz a rezar...”, o Papai Noel e seus ajudantes foram multados em Santa Catarina, à véspera do natal, no momento em que entregavam presentes e doces para crianças carentes no centro da cidade de Brusque, mantendo uma tradição de mais de vinte anos. Dizem que, na ocasião, o bom velhinho tentou argumentar, mas os fiscais não lhe deram ouvidos. Lei é lei, dirão alguns, não fosse a necessidade de se pensar que a punição é exceção e, no caso de multas, os agentes deveriam ser melhor orientados.
Segundo noticiado por diversos veículos de comunicação, o Papai Noel e seus ajudantes se deslocavam na caçamba de um caminhão quando foram abordados pelos guardas de trânsito, que autuaram o motorista pela prática de infração gravíssima: “conduzir o veículo transportando passageiros em compartimento de carga, salvo por motivo de força maior, com permissão da autoridade competente e na forma estabelecida pelo Contran” (art. 230, II, CTB). A penalidade aplicada foi uma multa no valor de R$ 191,54, além da apreensão do veículo e da perda de sete pontos na carteira de habilitação.
Após o inusitado episódio repercutir nas redes sociais, o prefeito municipal pediu desculpas à comunidade através do Facebook, em cujo perfil lamentou pelo fato, “que não combina com o espírito natalino”, e informou haver determinado providências a seu secretário de trânsito e mobilidade.
Ainda bem que o Papai Noel possuía carteira internacional de habilitação, pois, do contrário, poderia responder por crime de trânsito e, inclusive, ser preso em flagrante. Imaginem só se ele tivesse vindo com seu trenó, puxado pelas célebres renas voadoras... Daí, a intervenção teria que ser realizada pela Anac. Para sorte das crianças carentes, o Papai Noel também tinha as notas fiscais de todos os presentes, caso os agentes da alfândega resolvessem executar uma força-tarefa surpresa. Para completar o “quadro normativo incidente à espécie”, é importante deixar claro que toda a equipe do Papai Noel era composta de ajudantes voluntários, não havendo, portanto, qualquer violação às normas que regulam as relações de trabalho. O mais grave de tudo foi o fato de, acostumado a presentear os ricos, o bom velhinho ter sido abordado na posse de presentes para pobres, todos de R$ 1,99. Assim, realmente, os agentes não podiam perdoar.
Pensemos por um instante o que seria do Natal se o bom velhinho não possuísse uma consultoria jurídica tão qualificada — dizem que reúne os melhores juristas da Lapônia, a maior parte deles especialista em Direito Internacional, é claro — que o informasse, todos os anos, acerca das armadilhas jurídicas com que o aguardam em terrae brasilis e, sobretudo, se ele não dispusesse de um departamento de logística capaz de socorrê-lo no caso de qualquer emergência. Já pensaram na hipótese, por exemplo, dele precisar de atendimento médico, uma cirurgia de emergência ou, então, um leito hospitalar aqui no Brasil? Ou, ainda, dele ser atingido por uma bala perdida — foram várias com vítimas fatais na última semana — ao entrar em alguma chaminé?
Coitado do Papai Noel... Dura lex, sed lex.
Curiosamente, na mesma semana, quando esteve no Rio Grande do Sul para a inauguração de uma rodovia, a presidente foi fotografada pela imprensa, carregando no colo seu neto, de três anos e idade, no banco traseiro do veículo que os levava até a casa do avô. Através de sua conta oficial no Twitter, se pronunciou: “A legislação de trânsito é clara: criança tem que andar na cadeirinha. Peço desculpas pelo erro”.
Muito embora a infração prevista no artigo 168 do CTB também seja considerada gravíssima e punida com multa e apreensão do veículo, a presidente — que não estava fazendo qualquer caridade na ocasião do fato, diga-se — não foi multada pela autoridade competente. E nem será. Nesse sentido, aliás, merece destaque especial a declaração do Diretor da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), órgão de fiscalização que atua na capital gaúcha: “A própria presidente reconheceu o erro. Em termos de autuação, só podemos multar se presenciarmos o fato. Por fotografia nenhum agente de fiscalização pode lavrar o auto”. É bom saber, senhor diretor. Este é um excelente argumento que deverá ser incorporado nos milhares de recursos de trânsito interpostos diariamente contra multas resultantes da operação de pardais em todo o território nacional.
De todo modo, fica a recomendação a presidente para que não inaugure nenhuma obra na cidade de Brusque. Caso fosse lá, além de autuada, provavelmente seu neto seria recolhido pelo Conselho Tutelar e abrigado para averiguação. Afinal, não se pode colocar crianças em risco. Brusque, aliás, está na mídia nacional porque estão promovendo perseguição aos nordestinos (leia aqui).
Talvez não seja arriscado demais lembrar de Robespierre. A partir da virtude e do terror foi que se impôs o Comitê de Salvação Pública — semelhante às funções da guarda municipal no Rio de Janeiro e, igualmente, ao higienismo social de seu prefeito — pelos quais os traidores deveriam temer. Em nome da limpeza, do clean, da obediência às regras, o fiscal que exerce seu pequeno poder é incapaz de compreender. Diz a psicanalista Elisabeth Bittencourt que, para se levar ao pé da letra, “será preciso uma renúncia às tentações de um imaginário que acabou nos pegando pelos alívios que pode proporcionar. A compreensão é um deles. A satisfação vinda daí traz o alívio da certeza, ou seja, é esférica, traz a ilusão do todo” (leia aqui). E o sujeito não sofre.
Vamos adiante, quem sabe, nos exemplos. Talvez esse modelo de compreender pudesse ser aplicado num fórum onde conste uma placa: “Proibida a entrada em trajes de banho”. Se o sujeito tentasse entrar de sunga seria barrado, mas nu não, afinal, para ele, a regra não proíbe o nudismo. Outro exemplo clássico, adaptado de Recaséns Siches, é a do mesmo sujeito que estaria numa praia onde é proibido ingressar com cães. Qualquer um com seu cachorro seria barrado, mas com um tigre não. Isso é o que ocorre com quem leva tudo ao pé da letra. Ao aprender Direito Processual, por sua vez, o problema seria para entender a expressão: “os prazos correm” (mesmo sem que tenham pernas para tanto).
Ora, a inter-mediação hermenêutica é incontornável, em tudo, não se podendo levar a interpretação ao pé da letra. Essa discussão é realizada no Direito há mais de um século, embora a maior parte dos atores jurídicos ainda não tenha compreendido o giro linguístico.
O maior dos riscos é quando colocamos o poder à disposição de agentes públicos que confundem sua função com a missão de salvar a cidade, conservando a ordem e os bons costumes a qualquer preço. E, quem interpreta a lei ao pé da letra, sempre em nome da virtude, apresenta sua pior faceta: o terror.
Em um de seus discursos, Robespierre afirmou que a força do governo é, ao mesmo tempo, virtude e terror: “a virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é impotente. O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele é, portanto, uma emanação da virtude. Mais do que um princípio particular, é uma consequência do princípio geral da democracia aplicado às mais prementes necessidades da pátria. Fui feito para combater o crime, não para governá-lo. Não chegou ainda o tempo em que os homens de bem possam servir impunemente à pátria; os defensores da liberdade serão proscritos enquanto a horda de malfeitores predominar”.
Com esse discurso, todos sabemos o que deu. Perdeu a cabeça, depois de ter guilhotinado a de vários. De certa forma, o mesmo ocorreu com o Papai Noel, de Brusque, e as crianças que o esperavam; todos foram guilhotinados por uma interpretação virtuosa e inflexível. Isto porque, na hermenêutica a la Robespierre, todos perdem a cabeça ao final.
E o coro termina, pelo menos em Brusque, entoando: “já faz tempo que pedi, mas o meu Papai Noel não vem...”
PS: Quem tiver o contato, por favor, faça a gentileza de avisar o coelhinho da páscoa para que tome cuidado ao passar por estas bandas.
André Karam Trindade é doutor em Teoria e Filosofia do Direito (Roma Tre/Itália), mestre em Direito Público (Unisinos) e professor universitário.
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 28 de dezembro de 2013
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