segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Complexo de MacGyver e os modelos de juiz (episódio 3)

Explicar o que se passa por metáfora. Assim é que se fixou o Complexo de MacGyver (clique aqui para ler). Na coluna anterior da saga foram apresentadas 10 perguntas sobre Processo Penal. Ainda há tempo para responder e verificar sua pontuação. Eis o teste. Responda às questões abaixo e no final confirme seu gabarito.
1 – Nos casos de prisão em flagrante por crimes patrimoniais, inverte-se o ônus da prova?
2 – A nulidade relativa, para sua comprovação, depende da demonstração de prejuízo?
3 – As declarações das testemunhas e informantes prestadas no Inquérito Policial podem ser utilizadas para condenação, independentemente de se renovarem em Juízo?
4 – No processo penal há possibilidade de se aplicar in dubio pro societate?
5 – As interceptações telefônicas podem ser renovadas indefinidamente?
6 – A prisão cautelar pode ser decretada de ofício, sem requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público?
7 – O acusado se defende somente dos fatos, não importando a capitulação da denúncia/queixa?
8 – A prisão temporária é constitucional?
9 – O juiz pode condenar mesmo quando o Ministério Público requer a absolvição?
10 – O juiz pode perguntar primeiro na instrução criminal, inexistindo nulidade?

Gabarito
Na coluna passada expliquei a pergunta 1 (clique aqui para ler). Perfeita foi a resposta da professora Emmanuella Denora nos comentários ao artigo. Vale conferir. Hoje respondo aos demais tópicos e adianto: todos estão errados. No meu livro Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos (Lumen Juris, 2013. Em breve 2014) explico melhor. Aqui vai o resumo.

Resposta das perguntas 2 e 10
A legitimidade do provimento judicial dependerá do desenrolar correto dos atos e posições subjetivas previstos em lei, do fair play. E a perfeita observância dos atos e posições subjetivas dos atos antecedentes (subjogos) é condição de possibilidade à validade dos subsequentes. Logo, a mácula procedimental ocorrida no início do processo (partida) contamina os demais, os quais para sua validade precisam guardar referência com os anteriores. O ato praticado em desconformidade com a estrutura do procedimento é inservível à finalidade a que se destina. A decisão final, preparada pelo procedimento, também se constitui como parte desse, ou melhor, sua parte final, o corolário. A doutrina diferencia a mera irregularidade (sem violação do conteúdo do ato) da inexistência (por ausência de requisito de sua validade — alegações finais por não advogado ou sentença por não juiz), nulidade relativa e nulidade absoluta.

Em relação a essa distinção, também com Lopes Jr., pode-se afirmar a insuficiência das categorias e, a partir do processo como procedimento em contraditório, bem assim da reserva de jurisdição, só há nulidade por decisão judicial. Entretanto, o regime de nulidades do CPP (artigos 563-573) além de ultrapassado, é confuso. Adota a compreensão da verdade substancial (CPP, artigo 566), possui dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP (artigo 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível com o devido processo legal substancial, da ausência de prejuízo — pas nullité sans grief (CPP, artigo 563). Assim é que, superada a distinção arbitrária e sem sentido, todas as hipóteses de violação ao devido processo legal substancial serão declaradas nulas, como bem afirma Leonardo Costa de Paula.
Para fim exemplificativo, ainda que o artigo 212 do CPP exclua o juiz da gestão da prova, ou seja, descabe o papel de jogador, parte significativa dos julgadores permanece atrelada ao modelo presidencialista e inquisidor. A atual redação não deixa dúvida acerca do papel do juiz no desenrolar da colheita da prova testemunhal, colocando-o no papel de mero espectador, sendo atribuída aos jogadores a formulação direta das perguntas à testemunha (nos moldes do cross-examination norte-americano ou do esame incrociato italiano). Tal mudança, pois, é decorrente da busca de adequação da norma processual penal à Constituição da República, eis que, ao abandonar o modelo presidencialista de condução da colheita da prova testemunhal, situa o magistrado no lugar de garantidor da forma da informação oral.
Na estratégia processual, a tática das perguntas é dos jogadores, inclusive quando se pretende inserir a dúvida. Daí que não há sentido sequer na alegada produção da prova em favor da defesa, uma vez que o esclarecimento só acontece no caso de dúvida e, por evidente, a dúvida absolve (CPP, artigo 386, VII). De sorte que, evidenciada a mácula ao devido processo legal substancial, é de se reconhecer a nulidade pretendida pela defesa. Até mesmo porque a Teoria do Prejuízo (pas nullitè sans grief e encampada pelo CPP, artigo 563), como hoje posta, encontra-se ultrapassada (neste sentido também Lopes Jr., Tovo Loureiro, Jacinto Coutinho, Lenio Streck, Elmir Duclerc, Paulo Busato, dentre outros), e a desconsideração do lugar de julgador é a manifestação inequívoca de dano à parte, porquanto a condução do processo por juiz imparcial e equidistante restou atingida.
Resposta 3
Em relação à validade dos elementos colhidos no inquérito policial, diante de suas peculiaridades (sem garantia da jurisdição, do contraditório, da ampla defesa, da motivação dos atos), cabe distinção: a) em relação às provas periciais o contraditório será diferido, a saber, no decorrer da instrução processual as partes poderão impugnar os laudos, pareceres, perícias, inclusive requerendo esclarecimentos e sua renovação; b) no tocante aos depoimentos testemunhais a renovação é obrigatória. Cuida-se de mero ato de investigação, sem que o indiciado tenha participado da produção das informações, nem mesmo controlada pelo Estado Juiz.

A validade, portanto, é somente para análise da justa causa e cautelares pré-jogo, como explica Lopes Jr: “O inquérito policial somente pode gerar o que anteriormente classificamos como atos de investigação e essa limitação de eficácia está justificada pela forma mediante a qual são praticados, em uma estrutura tipicamente inquisitiva, representada pelo segredo, a forma escrita e a ausência ou excessiva limitação do contraditório. Destarte, por não observar os incisos LIII, LIV, LV e LVI do art. 5oe o inciso IX do art. 93, da Constituição, bem como o art. 8o da CADH, o inquérito policial jamais poderá gerar elementos de convicção valoráveis na sentença para justificar uma condenação.” Anote-se, por fim, que a não realização de provas periciais por deficiência do aparato de investigação não é culpa do indiciado. Nos crimes que deixam vestígios (CPP, artigo 158), é indispensável. Ausente, não pode ser suprida por prova indireta. Simples assim. Usar o artigo 156 do CPP contra os princípios do processo mostra quem você é!
Resposta 4
Procurei na Constituição e no Código de Processo Penal e não encontrei fundamento para o in dubio pro societate. Reconheço que já fui viciado nessa espécie de conforto hermenêutico que os jogadores processuais usam para evitar justificar as decisões. Jogam o significante aberto (in dubio pro societate) e aparentemente são desonerados de justificar, dentre outros momentos, o recebimento da denúncia e a decisão de pronúncia no júri (clique aqui para ler). Para conferir: “Inaplicabilidade do princípio in dubio pro societate, nesta ou em qualquer fase de qualquer procedimento.” (TJ-RJ – clique aqui para ler).

Resposta 5
Embora a renovação das interceptações telefônicas seja alvo de repercussão geral (STF — cliqueaqui para ler), nos termos da Lei 9.296/1996, o prazo é de 15 dias prorrogáveis pelo mesmo período. Se era para não se fixar prazo, com renovações indefinidas, não se fixaria prazo final. A interpretação que não entende que exceção não é regra pretende forçar prazo indefinido (clique aqui para ler). Pegue a calculadora. Digite 15 + 15 = 30. Alguma dúvida?

Resposta 6
Nos termos dos artigos 306, 310 e 311, primeira parte, todos do Código de Processo Penal, descabe a prisão preventiva decretada de ofício. A análise da conversão da prisão em preventiva pressupõe a justificativa do Ministério Público, de maneira motivada. O artigo 310 do Código de Processo Penal menciona que o juiz, ao receber o auto de prisão em flagrante, deverá adotar uma das três hipóteses mencionadas nos três incisos: a) relaxar a prisão ilegal; b) convertê-la em preventiva (se presentes os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal e se revelarem insuficientes ou inadequadas as medidas cautelares diversas da prisão); c) conceder liberdade provisória com ou sem fiança. Ocorre que, ao mencionar o inciso II a hipótese de conversão da prisão em preventiva, a leitura prossegue, necessariamente, ao artigo 311, o qual deve ser considerado, pois trata exatamente dos momentos e formas de cabimento do decreto preventivo: “Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal,ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

Portanto, mencionado dispositivo legal dispõe que a prisão preventiva poderá ser decretada de ofício pelo juiz ("se no curso da ação penal"), caso contrário, se em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, "a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial". Assim é que, a toda evidência, a própria interpretação legalista conduz à conclusão de que a prisão preventiva não pode ser decretada de ofício pelo juiz, caso não se tenha, ainda, ação penal. Tal análise se faz apenas para ressaltar que o próprio sistema legal não permite a conversão da prisão em preventiva por decreto autônomo no procedimento investigatório.
É necessário lembrar, porém, que mesmo no curso da Ação Penal entende-se que não cabe a iniciativa do juiz, pois a concepção acusatória do processo penal é o único modelo que permite a imparcialidade do julgador, afastando-o de quaisquer cargas probatórias ou interesse subjetivo no resultado do processo. Aury Lopes Jr. aponta:
“Com relação à separação das atividades de acusar e julgar, trata-se realmente de uma nota importante na formação do sistema. Contudo, não basta termos uma separaçãoinicial, com o Ministério Público formulando a acusação e depois, ao longo do procedimento, permitir que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora, como, por exemplo, permitir que o juiz de ofício converta a prisão em flagrante em preventiva (art. 310), pois isso equivale a "prisão decretada de ofício"; ou mesmo decrete a prisão preventiva de ofício no curso do processo (o problema não está na fase, mas, sim, no atuar de ofício) [..]". (grifei e sublinhei).
Ademais, não se trata de novidade, uma vez que o Ministério Público já recebeu cópia da comunicação da prisão em flagrante, conforme determina o caput do artigo 306 do Código de Processo Penal. Também o Manual Prático de Rotinas, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça de acordo com o Plano de Gestão para o Funcionamento de Varas Criminais, prescreve que cópia integral das peças do flagrante remetidas ao Judiciário deverão ser também remetidas ao Ministério Público, durante o plantão judicial (alínea "a" do item 1.2.1.4, página 14).
O Manual Prático de Rotinas Criminais dispõe, ainda, que o juiz do plantão aguardará, por tempo razoável, a manifestação do Ministério Público, caso contrário, "silente o órgão, promoverá contato para saber sobre a sua manifestação" (item 1.2.1.4, alínea "b", página 14). Dessa forma, verifica-se a operacionalização do artigo 306, caput, do Código de Processo Penal. A menção a "tempo razoável" recomenda, agora, vindo o auto/comunicação sem a respectiva manifestação do Ministério Público durante o plantão, que se estipule prazo concreto para tanto.
A fim de que não haja excesso na prisão imposta, fixo o prazo de 24 horas para que o Ministério Público se manifeste sobre a prisão, em analogia ao prazo disposto no § 1º do artigo 306 do Código de Processo Penal, com fundamento no artigo 3º do mesmo diploma legal. Ante o exposto, da leitura conjunta dos artigos 306, 310 e 311 do Código de Processo Penal, antes da análise a que se refere o art. 310, deve-se facultar a manifestação do Ministério Público, salvo se a autoridade policial já tiver representado. O flagrante (meu Deus!) não prende por si. Não apresentada justificativa, prevalecerá o estado de inocência. Difícil?
Resposta 7
A capitulação da imputação fixa a competência, estabelece limites probatórios, enfim, faz com que o processo se desenvolva a partir do fair play. A justificativa de que o acusado se defende dos fatos e não da capitulação pressupõe que o acusador não sabe o que faz; ou faz muito mal, cabendo ao juiz ser o curador e agir supletivamente. O Estado acusador faz imputação, eventualmente errada, mas o juiz MacGyver conserta depois.

Os limites da acusação são fixados pela narrativa e a capitulação, naquilo que se chama de correlação entre acusação e sentença, bem aponta Diogo Malan. Caso contrário o magistrado, suprindo incompetência ou erro do acusador, dá um jeitinho para condenar o acusado. Entretanto, não é sua função. Talvez a teoria dos conjuntos e o Paradoxo do Barbeiro possam explicar, ou seja, no conjunto do acusado não está o julgador (clique aqui para ver). Trata-se do jeitinho no processo penal.
Resposta 8
A prisão temporária, convertida que foi da Medida Provisória 111/1989, regulada pela Lei 7.960/1989 é manifestamente inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal analisando (ou melhor, tergiversando) a questão, entendeu (Medida Cautelar 162, j. 14/12/1989) que a prisão não era obrigatória, devendo, de qualquer sorte, ser fundamentada. Entende-se diversamente dado que nem no período do Regime Militar tamanha petulância ocorreu, uma vez que o Decreto Lei não podia suplantar a competência legislativa originária.

Não há lavagem-da-legalidade depois por ter sido validada pelo processo legislativo, pois há vício de origem. Dito de outra forma: nem se diga que pela catarse da conversão em lei estaria legitimando a Medida Provisória. O processo legislativo está viciado por sua origem. Por isso remanesce a irresignação. Fauzi Hassan Choukr afirma com razão:
"No julgamento anunciado, a Corte Suprema tangenciou os temas fundamentais da matéria, e corroborou uma vez mais a inequívoca vocação legislativa do Poder Executivo, desta vez acobertando-a com o manto da não obrigatoriedade da aplicação da medida pelo magistrado no caso concreto, que apenas tomaria a medida com a devida fundamentação. Verdadeiramente não é este o ponto central do descumprimento da cláusula constitucional que determina ser a medida provisória empregada apenas em casos de extrema urgência e relevância."
Aury Lopes Jr indica que:
"Nasce logo após a promulgação da Constituição de 1988, atendendo a imensa pressão da polícia judiciária brasileira, que teria ficado 'enfraquecida' no novo contexto constitucional diante da perda de alguns importantes poderes, entre eles o de prender para 'averiguações' ou 'identificação' dos supeitos. Há que se considerar que a cultura policial vigente naquele momento, onde prisões policiais e até a busca e apreensão eram feitas sem a intervenção jurisdicional, não concebia uma investigação policial sem que o suspeito estivesse complemente à disposição da polícia. (...) Então não se pode perder de vista que se trata de uma prisão cautelar para satisfazer o interesse da polícia, pois, sob o manto da 'imprescindibilidade para as investigações do inquérito', o que se faz é permitir que a polícia disponha, como bem entender, do imputado. (...) A prisão temporária cria todas as condições necessárias para se transformar em uma prisão para tortura psicológica, pois o preso fica à disposição do inquisidor. A prisão temporária é um importantíssimo instrumento na cultura inquisitória que ainda norteia a atividade policial, em que a confissão e a 'colaboração' são incessantemente buscadas. Não se pode esquecer que a 'verdade' esconde-se na alma do herege, sendo ele o principal 'objeto' da investigação."
Nesse contexto, até porque se assume postura eminentemente garantista, deve ser declarada inconstitucional a Lei (sic) 7.960/1989, deixando bem claro que se elementos para preventiva se fizerem presentes, que se a requeira. Temporária não se decreta, embora sirva como aplicação prática do “dilema do prisioneiro”. Isso porque a mentalidade inquisitória da prisão para averiguações, para esclarecimentos, não se compadece com o processo democrático. Foi-se o tempo em que as pessoas eram presas para se investigar, embora, reconheça-se, seja a mentalidade de muita gente que opera no direito penal, em regra, porque formados (ou seduzidos) pelos discursos fáceis da lei-e-da-ordem, para os quais a tolerância deve ser zero!
Resposta 9
Se o acusador reconhece que perdeu o jogo processual, não possui prova, por exemplo, e diz “quero absolver!”, descabe ao juiz se arvorar em condenar. Isso somente acontece porque o jeitinho autoritário do artigo 385 do CPP, flagrantemente não recepcionado pela Constituição (clique aquipara ler), prevalece com o magistrado vestindo a roupa do Ministério Público (talvez o concurso que deveria ter feito) e condena. Ao final apresenta seu sorriso macgyveriano!

Um feliz ano novo sem MacGyver!
Ao final, seguindo os pedidos de Papai Noel apresentados por Lenio Streck (clique aqui para ler) cabe dizer que se deve abandonar o complexo de MacGyver. Prometo que não falarei (muito) mais dele em 2014. Talvez seja o caso de buscarmos novas coordenadas para entender o Direito e o Processo Penal, formando uma dissidência do contágio pela hermenêutica do conforto da imensa maioria dos tribunais, “mcdonaldizados” (Ritzer). O contágio dessa forma de pensar (eficiente, controlada, quantificável e previsível) faz com que os sujeitos sejam apagados. Assim é que os que pensam diferente são os dissidentes. E dentre os dissidentes não há consenso também. Há gente, todavia, que discute e se importa com as vidas que se escondem por detrás dos processos e rejeitam a noção platônica de que tudo é perfeito. Luta-se pelo processo penal democrático, embora não se tenha, muitas vezes, certeza, já que a incerteza é premissa dessa maneira de pensar. É uma aposta no futuro. Que tenhamos sorte. Um grande 2014 para todos nós!


Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 21 de dezembro de 2013

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