Vivemos este ano que passou ainda capazes de nos surpreender. A prática do Direito Penal entre nós foi tão instigante, que ficou aquela sensação de que um mundo está em vias de terminar, enquanto o novo ainda não reuniu forças para nascer.
Atravessamos aquele espaço de tempo entre um e outro, refletindo, no campo do Direito, transformações gerais na sociedade[1]. O universo que se abre à exploração dos advogados criminalistas não necessariamente mudou para melhor ou pior. É apenas desconhecido e, nesse aspecto, absolutamente desafiador.
Que certezas nos reserva, por exemplo, a dissolução da fronteira entre o público e o privado, graças ao desenvolvimento da tecnologia? Sabemos, ao menos, que a confusão já produz efeitos na esfera criminal e movimenta consultas nos escritórios de advocacia. Como usar a violência do Estado de forma legítima e equilibrada, diante da explosão de manifestações democráticas — e de outras nem tanto? A assimilação das regras punitivas internacionais coloca em questão aspectos da soberania nacional? Os brasileiros se tornaram menos livres, com a interpretação mais restritiva que se deu a direitos tradicionalmente reconhecidos, no processo penal?
Em dezembro do ano passado, arriscamos alguns prognósticos para 2013, neste mesmo espaço de reflexão. Registramos, entre outras coisas, que a nova jurisprudência do STF sobre o Habeas Corpus substitutivo não desafogaria os tribunais superiores, pois o número de ilegalidades que a ação constitucional eficazmente corrigia não tenderia a diminuir. O grande número de ordens concedidas de ofício mostra que, de fato, ele não diminuiu.
O aumento do número de recursos ordinários interpostos em conjunto com medidas cautelares e a insistência na impetração de habeas corpus substitutivos revelam que o objetivo de “limpar as prateleiras” dos tribunais também não foi, nem de longe, atingido.
Como advertimos, a Lei de Lavagem de Dinheiro continua a demandar a edição de um manual atualizado de boas práticas profissionais.
A orientação é necessária para evitar inseguranças relativas ao dever de comunicar operações suspeitas, que definitivamente não têm os advogados que desempenham funções típicas e privativas da advocacia. Também é preciso informar sobre as formas de recebimento lícito de honorários, sobretudo quando o profissional exercita o dever constitucional de representar o seu cliente na defesa criminal ou administrativa.
O trabalho consultivo, que já vinha ganhando espaço cada vez maior na área penal, firmou-se como um novo setor e vem delineando o perfil do criminalista moderno. Palestras sobre compliance, auxílio na elaboração de códigos e políticas internas de conduta em empresas e instituições financeiras e pareceres preventivos agora fazem parte do dia-a-dia da advocacia criminal.
Como fatos novos, em 2013, vimos que o Estado brasileiro ainda tem dificuldade para lidar com a irrupção da vontade popular, oscilando entre o excesso e a omissão. No começo dos protestos de meados do ano, a força foi abusivamente empregada para reprimir o exercício legítimo do direito fundamental de manifestação pacífica dos cidadãos.
As conhecidas “prisões para averiguação”, instrumento muito utilizado nos tempos da ditadura, voltaram a ocorrer como se legítimas fossem. Novos “crimes” surgiram no universo policial, tais como, portar vinagre, usar máscaras e segurar bandeiras.
Quando, de fato, as manifestações se tornaram violentas, e, portanto, inconstitucionais, demorou-se a reprimir os excessos dos inimigos da ordem democrática, que passaram a agredir pessoas, bens e a própria liberdade de manifestação política.
Outro sinal dos tempos atuais é a tensão cada vez mais aguda entre as esferas pública e privada, no admirável mundo novo da internet e das redes sociais. Não se sabe bem quais são os limites à proteção à intimidade na rede, tampouco como reparar juridicamente a dor da vítima de um crime contra a honra praticado em ambiente no qual, algumas vezes, o voyeurismo de uns se retroalimenta do exibicionismo de outros.
Novos Facebooks, Instagrams e Lulus surgem a cada dia. O mau uso das redes sociais pode acabar ameaçando o sagrado direito à privacidade. Cabe então perguntar se o Código Penal oferece a melhor resposta para tratar de crimes virtuais e se é mesmo a norma penal quem deve servir de instrumento regulatório ou repressivo para essa temida — e, por que não (?), desejada — invasão cibernética.
Na ordem do dia, também está o acirramento do conflito entre o direito à informação e o sigilo constitucionalmente justificado por razões de interesse público. Assistimos, por exemplo, à exumação da velha Lei de Segurança Nacional, desta vez não para ser abusivamente dirigida a cidadãos brasileiros, como outrora, mas para proteger segredos de Estado expostos à inconveniência da espionagem estrangeira, em desrespeito à soberania nacional.
De novo, constatamos que o Direito brasileiro não está preparado para lidar com os desafios tecnológicos impostos pela nova configuração das relações internacionais, neste espantoso início de século.
Outro tema pulsante no presente ano, ainda que tratado discretamente e em círculos restritos, é a PEC dos Recursos, recém-aprovada no Senado. O importante, aqui, é refletir sobre a conveniência de atribuir eficácia plena às decisões de órgãos colegiados, considerando seu alto grau de reforma pelos tribunais superiores.
No âmbito penal, é um assunto de extrema relevância, pois pode trazer nova — e estranha (!) — interpretação ao intocável princípio da presunção de inocência. De certo modo, acabaria transformando em regra a prisão provisória, que é por princípio excepcional. Certamente, esse é um assunto que deve ser amplamente discutido em 2014.
Outro fenômeno que merece ser observado é a repercussão interna do recrudescimento das normas penais internacionais.
O cumprimento do Foreign Corrupt Practices Acts (FCPA) — lei americana contra a corrupção no exterior — e do Bribery Act — similar inglesa da mesma lei — é uma preocupação que está sempre no horizonte, sobretudo em consultas de empresas estrangeiras.
A nova “Lei Anticorrupção” — Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013 — também resulta da adesão do país a padrões internacionais, num ambiente de constante importação de institutos e dispositivos legais estrangeiros.
Uma terceira manifestação da influência da legislação externa sobre o direito brasileiro foi a aprovação da Lei das Organizações Criminosas — Lei 12.850, também de agosto 2013. Antes dela, não havia um conceito legal definindo o crime organizado, apenas aquele trazido pela Convenção de Palermo. Agora o temos, com contornos que aumentam o número de integrantes, abrangem a prática de infrações penais e não apenas crimes e, ainda, acentuam o caráter transnacional do combate à criminalidade organizada.
Essa intensa influência de outros países em nosso sistema jurídico não só provocou movimentos internos para a criação de novas leis como aumentou a cooperação jurídica entre as autoridades brasileiras e estrangeiras, em procedimentos criminais em andamento. Em 2013, o Brasil foi palco de grandes investigações que apuraram a suposta prática de delitos de cartel, corrupção e branqueamento de capitais por grupos criminosos que estenderam seus tentáculos em diversos outros países.
O processo penal mais noticiado da história do país, por sua vez, surpreendeu a comunidade jurídica com muitas novidades. De um lado, a condenação dos réus na Ação Penal 470, manifestou uma tendência à restrição e à relativização de direitos tradicionalmente reconhecidos pelo próprio Supremo Tribunal Federal.
Houve uma nítida inflexão na jurisprudência e na prática da mais alta instância jurisdicional do país em temas como: (a) a execução parcial e antecipada da sentença penal condenatória; (b) o espetáculo das prisões e a sua efetivação sem o cumprimento de determinadas condições legais; (c) a tolerância à divergência nas deliberações colegiadas; e (d) a relativização do princípio do juiz natural.
De outro lado, assistimos à reafirmação de alguns postulados elementares do Estado Democrático de Direito, contra tentativas de interferência externa, seja do clamor popular, seja da opinião publicada, na independência do Poder Judiciário.
A cultura jurídica sobreviveu por um fio, graças à consciência ética de uma maioria de magistrados dignos, formada pelos Ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello, que resistiu à publicidade opressiva à qual foi exposta.
Merece destaque a atuação do decano da Suprema Corte, ministro Celso de Mello. Ao decidir a questão do cabimento dos embargos infringentes em um voto realmente de Minerva, num processo julgado em única e última instância, resgatou a quintessência de uma sabedoria jurídica multissecular, sem a qual o Direito retrocede à barbárie da vingança.
“O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode se demitir, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.”
A sua advertência serve de mote, em 2014, para orientar toda uma geração de jovens advogados criminalistas, conscientes do papel fundamental que a Justiça lhes reserva. Eles sabem que não são burocratas servis, mas defensores dos valores mais altos da nossa Constituição.
[1] Essa crise de transição já foi descrita por Boaventura de Souza Santos e se aplica perfeitamente à compreensão das transformações que, na prática, observamos no mundo do Direito Penal.
Márcio Thomaz Bastos é advogado e foi ministro da Justiça (2003-2007).
Revista Consultor Jurídico, 23 de dezembro de 2013
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