Empresas já dividem com o poder público a execução de serviços em 22 presídios de sete estados
Com índice de encarceramento entre os mais altos do mundo e deficiências que justificam o conceito de depósito humano, o sistema carcerário brasileiro está, aos poucos, se transformando no novo nicho das privatizações.
Empresas já dividem com o poder público a execução de serviços em 22 presídios de sete estados (SC, ES, BA, MG, TO, AL e AM), cobram caro e não há qualquer indicador apontando que a vida melhorou nas prisões.
“O preso já é uma commoditie. Em Joinville (SC), ouvi o administrador afirmar que o preso está rendendo bem mais do que custa ao estado”, diz o advogado José de Jesus Filho, da Comissão Pastoral Carcerária Nacional. Ele tem viajado pelo país levantando dados para uma análise sobre o resultado das gestões privatizadas ou que estão sendo desenvolvidas de forma compartilhada com os estados.
A experiência vem sendo feita há cerca de uma década e movimenta, discretamente, várias empresas que têm um pé na segurança privada e, seguindo tendência de países como Estados Unidos e França, estão de olho naquilo que consideram um promissor mercado: uma massa carcerária de 560 mil pessoas e a prestação de serviços que, no geral, torna o custo de cada preso mais que o dobro do que os governos gastam hoje para mantê-los encarcerados.
Custo médio
Jesus Filho diz que nos locais em que a gestão é privada, o custo médio de um detento (alimentação, vestuário, higiene, assistência médica e psicológica, segurança interna e assessoria jurídica) alcança R$ 3 mil e é bancado pelos mesmos governos que antes gastavam R$ 1.200. Se tivesse que pagar pela gestão privada de todas as prisões do país, o poder público desembolsaria por ano cerca de R$ 20 bilhões, o equivalente ao gasto do programa Bolsa Família no mesmo período.
As análises preliminares mostram que, em geral, nos locais em que a gestão foi totalmente privatizada ou compartilhada com o poder público, nada mudou no cenário caótico nem se mexeu na questão principal dos presídios, que é a ressocialização do detento para o retorno ao ambiente externo.
Os índices de reincidência continuam acima dos 70%, fugas e rebeliões pipocam com a mesma frequência de outros presídios e, em alguns casos extremos, como o de Pedrinha, no Maranhão, a vigilância exercida por uma empresa privada não impediu que conflitos descambassem para mortes em série, com requintes de barbárie, como as 13 decapitações já registradas este ano entre mais de 50 homicídios.
“A gestão privada não mudou nada. As empresas não estão preocupadas com isso. A natureza delas é o lucro, ganhar dinheiro”, diz o advogado. Segundo ele em Santa Catarina e Alagoas, os detentos realizam trabalhos encomendados pelas empresas para atender o mercado - a maior parte na costura e confecção de vestuário, produção de bolas e produtos plásticos - e acabam lucrando em duas pontas: exploram a mão de obra carcerária e ganham do estado pelos serviços prestados ao detento.
Não há ainda um estudo sistematizado sobre o impacto da gestão privada. Cada estado adota sua política, faz experiências e mantém ou desiste, como foi o caso do Paraná em relação ao complexo penitenciário de Guarapuava. Lá, a gestão particular, depois do fracasso, foi dissolvida e os serviços, devolvidos ao governo.
Os pontos em comum entre todos os governos são o endurecimento da legislação penal, o recrudescimento da política de encarceramento e a abertura de mais vagas no sistema.
O governo federal vem dando uma mãozinha aos estados no processo de abertura de novas vagas. O plano de apoio lançado pela presidente Dilma Rousseff em 2011, com gastos estimados em R$ 1,1 bilhão, se destina a criação de 42 mil novas vagas até 2014. Ainda assim, o balanço do ministério da Justiça demonstra que essa meta dificilmente será cumprida, uma vez que até junho deste ano foram entregues apenas 7.321 vagas.
“A abertura de vagas segue a política de encarceramento em massa”, diz o jurista Luiz Flávio Gomez, para quem o insucesso das experiências desenvolvidas até agora deve inibir ou manter estagnado o processo de privatização. “O custo é alto. A população não vai aceitar pagar mais do que o estado vem pagando e os políticos não vão querer perder votos”, afirma o jurista.
Modelo seletivo
A socióloga Camila Dias, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, diz que há um movimento articulado entre empresas e poder público para privatizar a massa carcerária. Ela lembra que em São Paulo, por exemplo, alguns serviços - como o monitoramento das tornozeleiras e a alimentação nos cadeiões que abrigam detentos provisórios - foram integralmente terceirizados. O fornecimento de “quentinhas” é feito por empresas privadas em vários estados.
“O modelo brasileiro não oferece outra alternativa que não seja construir prisões e encarcerar cada vez mais, seguindo o modelo de seletividade (crimes contra o patrimônio e tráfico de drogas) e aumento da repressão. A sociedade, que achava caro o custo de cada preso bancado pelo estado, apoia equivocadamente essa política porque, na ânsia de punir, não sabe que privatizar custa mais”, diz Camila. “A privatização é apresentada como solução, mas no fundo o objetivo é segregar e ganhar dinheiro com os presos, a imensa maioria formada por pobres”, observa Camila.
As estatísticas do Ministério da Justiça confirmam o surpreendente avanço, ano a ano, do encarceramento. Em 2000, por exemplo, a população carcerária era de 232.755 e não parou de crescer. Dez anos depois, em 2010, esse número saltou para 496.251 e continuou em curva ascendente, com 514.582 em 2011, 548.003 em 2012 e, este anoa, 560 mil - e ainda contando.
Massa carcerária
O espetacular aumento da massa carcerária, aliado à incompetência do estado para geri-la e a proliferação de mazelas que assustam a sociedade, segundo especialistas, são as justificativas da iniciativa privada, que escolhe os presídios onde pretende entrar. “As empresas selecionam os presos de bom comportamento”, observa o deputado federal Domingos Dutra (SDD-MA), que foi relator da CPI do Sistema Carceário.
Autor da lei que prevê o desconto de dois dias a cada três da pena ao preso que estuda e trabalha, o deputado já enviou ao Palácio do Planalto duas sugestões de alternativa à privatização: a utilização dos presos como força de trabalho nas obras do PAC e na produção agrícola de subsistência em terras férteis nas cercanias das penitenciárias.
“Só na Papuda (complexo penitenciário de Brasília, famosa por abrigar os condenados do mensalão) existem 600 hectares de terras férteis. Em volta de todas as outras penitenciárias também existem terras agricultáveis. O problema é que o estado é incompetente e não liga porque 99% dos presos são pobres”, afirma o deputado.
Mandados de prisão
“Seríamos ingênuos se não percebêssemos que por trás da falência da política carcerária há uma lógica de mercado. As empresas querem lucrar com o preso”, afirma o padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da Pastoral Carcerária. As empresas, segundo ele, apostam na continuidade da política de encarceramento com base nos mandados de prisão em aberto, atualmente estimados em cerca de 500 mil no país.
Em janeiro a entidade deve divulgar o primeiro levantamento nacional sobre o funcionamento dos presídios privatizados. Padre Valdir antecipa, no entanto, que nesses locais nada mudou a favor do preso ou da sociedade, mesmo nas prisões de Santa Catarina e Minas Gerais, onde os governos anunciaram a parceria como modelo a ser seguido.
As únicas mudanças positivas, segundo a pastoral, ocorreram em presídios administrados pela Associação de Proteção e Assistência ao Condenado (APAC) cuja atuação, sem fins lucrativos e focada na gestão e apoio social e religioso, derrubou a reincidência ao crime entre os egressos do sistema para 10%, uma queda e tanto se comparado com a média de 70% no sistema.
“A política carcerária brasileira deveria contemplar a vítima também. O ideal é a justiça restaurativa. O delinqüente trabalharia para ressarcir os prejuízos sem que os casos precisassem chegar aos presídios”, sugere o padre Valdir.
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