Camila Nunes Dias, pesquisadora e autora de livro sobre a facção criminosa, analisa a relação que se estabelece entre o poder oficial e o paralelo no estado de São Paulo
No ano de 2006, o Primeiro Comando da Capital (PCC) ganhou as manchetes dos jornais ao ter sido responsabilizado por praticamente parar a cidade de São Paulo com uma série de ações violentas. Após o governo do estado sinalizar com a transferência de 700 presos ligados ao “partido”, como é chamado, para presídios de segurança máxima de Presidente Bernardes e Presidente Prudente, a facção teria sido responsável pela morte de 59 agentes do estado, entre eles bombeiros, agentes carcerários, policiais militares e civis. Na sequência, 493 pessoas foram mortas entre os dias 12 e 20 de maio nas periferias da Grande São Paulo, crimes, em sua maioria, ainda não solucionados.
Agora, em maio de 2012, após uma ação da Rota no bairro da Penha, que prendeu três supostos integrantes do PCC e teve seis suspeitos mortos, uma nova onda de violência se desencadeou nas periferias da cidade e na Grande São Paulo. Para saber mais a respeito das raízes dessa situação, Fórum conversou com Camila Nunes Dias, professora da Universidade Federal do ABC, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e autora do livro PCC – A hegemonia nas prisões e o monopólio da violência, que será lançado neste ano, pela Editora Saraiva. Em entrevista, Camila analisa a atuação do “partido” dentro e fora das prisões e ajuda a observar melhor a relação estabelecida entre o poder oficial e o poder paralelo na cidade e no estado.
Fórum – A que você atribui a onda de violência que tomou conta das periferias de São Paulo no segundo semestre de 2012?
Camila Nunes Dias – Para entender direito precisamos voltar um pouco no tempo, e isso passa pela mudança na Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), em 2009, quando [Antonio] Ferreira Pinto assume. A partir dali, ele faz algumas alterações nas atribuições das instituições, tanto na Polícia Militar como na Civil, e esse é o fator que vai desencadear essa violência. Ele afastou muitos policiais civis delegados que investigavam o PCC e eram acusados de corrupção; essas pessoas são afastadas da linha de frente e, então, essa linha de frente é assumida pela Polícia Militar, que passa a ser responsável pelas principais ações relacionadas com o PCC. Isso acabou ocasionando, em 2010, onze, doze, várias situações de confronto, envolvendo pessoas importantes do PCC que foram mortas. É o que detonou essa situação que estamos acompanhando.
Fórum – Essa situação se deu por conta de uma ruptura?
Camila Nunes Dias – É uma ruptura, e ela se deu por uma tentativa equivocada de se combater a facção. Na gestão anterior [Ferreira Pinto] escolheu-se uma estratégia equivocada, que não chegou a um enfrentamento de fato, mas de qualquer jeito, essa estratégia detonou as acomodações que garantiam a pacificação no espaço prisional e nas ruas. Colocar a Polícia Militar na frente de tudo, e sobretudo a Rota, acabou provocando o rompimento desse equilíbrio. Não é como o governo costuma dizer, que o PCC está reagindo ao enfrentamento do crime, uma reação ao poder público como ocorre no México, em que o poder público está prendendo, em que está havendo uma política de segurança pública, um enfrentamento, não é isso. A reação se deu em decorrência da violência da Polícia Militar, não da tentativa de combater o crime ou do enfrentamento, as ações da PM têm a violência como princípio norteador.
Fórum – Você entende que essa violência decorre de um confronto entre PCC e a PM?
Camila Nunes Dias – Foi desencadeado a partir desse confronto. Agora, essas mortes, essas chacinas que se seguiram durante meses, têm uma fonte variada de agentes, vítimas, motivações e de autores. Se havia como pano de fundo a crise detonada por esse confronto, no desenrolar desses acontecimentos e mortes teve gente que aproveitou o caos para promover acertos de contas, por exemplo. Nas periferias, como a gente sabe, o PCC não autoriza matar, então, nesse momento de caos, pode ser que tenha havido acertos de contas, porque ninguém sabe direito quem está matando e quem está morrendo.
Acho que o que ocorreu, embora não haja comprovação, já que não há nem investigação, traz uma suspeita de que grupos de extermínio agiram de forma mais contundente nesse período; a gente sempre soube que eles existem, andavam mais contidos nos últimos anos, mas agora foram mais explícitos e intensos.
Fórum – O que você pensa do modelo de segurança pública de São Paulo?
Camila Nunes Dias – O modelo de segurança pública gera um círculo vicioso do qual nunca conseguimos sair, até porque está ancorado em duas pontas: de um lado, o investimento na Polícia Militar, em contingente e armas. O contingente é enorme, isso produz uma sensação de segurança maior para as classes média e alta; mas, por outro lado, é um modelo de polícia que não trabalha com a ideia de prevenção, só de repressão, e isso está diretamente ligado à outra ponta do nosso modelo de segurança pública, que é o encarceramento massivo. Aí, existe em São Paulo um investimento absurdo na construção de unidades prisionais.
Esse modelo não tem porta de saída, porque há uma polícia militar que está crescendo sempre e, no outro lado, o sistema prisional que também está crescendo, em um ritmo muito mais veloz pelo aumento do encarceramento. Não é que se constroem mais unidades para promover uma condição melhor de cumprimento das penas, se constroem mais unidades para abarrotá-las e manter a mesma condição precária e indigna.
Fórum – O fator ideológico dificulta o desmantelamento do PCC?
Camila Nunes Dias – O fator ideológico, que dá sustentação para o domínio do PCC sobre o sistema carcerário e os bairros das periferias, é importante para entender a forma de atuação do grupo. O PCC encontra um terreno no qual há espaço e elementos para construir um discurso de atuação e, mais ainda, que justifica sua existência para as pessoas das comunidades e nas prisões. Esse discurso só encontra ressonância porque as pessoas vivem e enfrentam na pele aquilo que o PCC utiliza como instrumento para fortalecer sua presença nesses espaços.
Há a construção de um discurso que prega a união da população carcerária para combater um Estado que é visto como opressor e inimigo, e as pessoas aderem a essa ideologia porque o Estado é, de fato, violador dos direitos dessas pessoas, porque ele é, de fato, opressor, um inimigo que está ali para oprimir e cometer violência, também contra a população que mora nas periferias e é eternamente suspeita, criminalizada e que tem de provar sua honestidade. A periferia é o lugar onde o Estado só se faz presente com a polícia, e ainda assim das formas arbitrárias que a gente está acostumada a ver. Então, para essas pessoas, o discurso do PCC faz sentido.
O PCC usa isso tudo como discurso retórico e ideológico para garantir o seu domínio, mas não acho que o PCC oferece uma alternativa mais justa. O que está por trás de toda forma de atuação é a inserção do comércio ilícito, seu fim maior é o lucro.
Fórum – O que você considera um modelo de polícia ideal para São Paulo? É a favor, por exemplo, da desmilitarização da PM?
Camila Nunes Dias – Primeiro: acho um horror ficar tentando copiar modelos de outros lugares do mundo, até porque cada país tem suas particularidades históricas, sociais e culturais. Tem outra coisa: adoram propagar que o modelo americano funciona, mas lá eles usam o modelo de encarceramento também, um país que tem 2 milhões de pessoas encarceradas não é um modelo, e São Paulo já segue essa ideia.
Pela própria história do surgimento das polícias no Brasil, vemos que elas sempre estiveram ligadas às classes dominantes, sempre defenderam os interesses delas, e continuam tendo esse papel, de ser uma polícia de classe, de proteger uma classe de outra. Isso é uma questão histórica e estrutural da sociedade brasileira, mas duvido muito que o papel da polícia mude se não mudarmos a estrutura de classes e social brasileira.
Agora, tem questões mais pontuais, que poderiam corrigir os equívocos das medidas de segurança, como a unificação das polícias, e essa unificação passa pela desmilitarização. Uma polícia que seja capaz de conduzir o inquérito, produzir provas e de executar o policiamento preventivo. É importante um investimento em recursos técnicos para produção de provas, para que diminua a dependência que a polícia tem da confissão, e essa dependência explica as torturas e práticas de violência que visam a alcançar uma confissão do suspeito, e nós sabemos que nos porões das delegacias brasileiras as torturas continuam existindo, sim.
Fórum – O que você pensa sobre a Rota?
Camila Nunes Dias – Ela é um termômetro das orientações políticas dos governos. Quando se tem um governo que respeita os direitos humanos, tem uma gestão da Rota que procura inibir a atuação do grupo e deixá-los reservados para momentos extremos. Os governos que estão alinhados com políticas duras e repressivas se apoiam e liberam mais a Rota para atuar em situações que não pedem a intervenção deles. Quando assumiu, o Ferreira Pinto deu uma declaração dizendo que iria soltar a Rota para agir na periferia, então, a Rota está na linha de frente desse governo atual, que a colocou para combater o PCC, e a Rota se expressa a quem serve a polícia, aos ricos. Temos o Gate e o Goe, para situações-limite, quando o fato pode terminar em morte, mas a Rota, invariavelmente, conduz suas ações para a morte.
Fórum – O que você pensa sobre a atuação do governador Geraldo Alckmin nesses meses de violência?
Camila Nunes Dias – Ele foi extremamente incompetente – como sempre foi, durante todos os seus governos –, não sei se por ingenuidade, de alguém que não conhece nada da área de Segurança, ou por uma orientação política, talvez um pouco dos dois. Mascarar a existência do PCC é uma forma de não expor que o PCC é a prova viva da incompetência administrativa dele e de seus antecessores, Cláudio Lembo e José Serra. É a pedra no sapato deles. O Alckmin é a prova viva de uma política de segurança pública falida e fracassada.
Fórum – Se o PCC é tão forte, a Polícia Militar se mostra, a cada dia, mais violenta, e o governador é “incompetente”, como se justifica a queda de homicídios em São Paulo, nos últimos dez anos?
Camila Nunes Dias – Essa é uma questão que gera debates raivosos. Para mim, está ligada a uma questão bem simples: a monopolização do mercado de drogas, em São Paulo, pelo PCC. Existem outros fatores, que convergem para esse efeito de queda de homicídios, mas são menores.
Em 2002, o PCC começa a ter influência nos bairros das periferias e no mercado de drogas. Durante a década de 1990, esse mercado era pulverizado, e isso produzia um alto número de mortes, por conta da disputa por varejos, credores e devedores, então, ocorre uma explosão de homicídios. Com a chegada e a monopolização do PCC sobre o mercado, os homicídios começam a cair, esse é o grande fator.
Se há um mercado que é monopolizado por um grupo, e esse grupo tem interesse de reduzir os índices de violência e de mortes até para assegurar uma estabilidade maior da economia e do crime, é óbvio que isso tem um impacto considerável. Dentro das prisões, isso é muito claro, e nas periferias é muito evidente a ordem dada pelo PCC de que “ninguém pode matar ninguém, sem passar pela mediação do PCC”. Então, os conflitos estão sendo mediados.
Fórum – Com esse discurso e a ausência do Estado, corremos o risco de as comunidades em que o PCC está estabelecido comprarem o discurso e o defenderem como protetores?
Camila Nunes Dias – Não sei até que ponto as pessoas que moram na periferia aceitam ou apoiam o PCC. Acho que a “sensação de segurança” pode trazer esse apoio, até porque, pelo que conheço, as pessoas reconhecem no PCC não apenas uma instância de mediação e de justiça. Geralmente, as punições são decididas por meio de debate que envolve acusado, acusador e outras instâncias do PCC, somente depois é definida a punição. Isso pode produzir uma sensação de que há uma instância de mediação mais justa do que o Estado, do que a Justiça, até porque eles estão muito distantes dessas pessoas.
Nas periferias, não tenho dados concretos sobre isso, mas as pessoas encaram o PCC como menos pior. Dentro das prisões, e aí é algo que posso falar, pois estudei, mesmo os presos mais velhos, que se recusaram a participar do PCC, reconhecem que ele fez uma grande coisa nas prisões, reconhecem que o grupo é responsável pela queda da violência, de mortes, e praticamente a extinção dos estupros. Aí tem o outro lado: presos excluídos, ameaçados de morte, que estão sendo perseguidos e que têm um verdadeiro horror ao PCC, que tem um poder hegemônico nos presídios.
Fórum – E qual a sua opinião em relação ao Projeto de Lei 4.471, que determina a investigação dos autos de resistência?
Camila Nunes Dias – É importante, mas não suficiente, porque se mata e ninguém investiga. Se continuarem não investigando, eles (policiais) vão encontrar outros canais para justificar essas mortes. A violência policial tem duas faces: os autos de resistência, que é a face fardada, e a face perversa, que é a face oculta, dos grupos de extermínio; a gente nem sabe quantos morreram pelas mãos deles porque não há investigação.
Por Igor Carvalho
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