Em 29 de novembro de 2013, o STJ rejeitou o novo patamar de R$ 20 mil como critério objetivo de insignificância no crime de descaminho. Embora o acórdão ainda não tenha sido publicado[1], a notícia[2] dá a entender que a recusa se deu, ao fim e ao cabo, em virtude do instrumento regulatório escolhido: uma portaria, que não tem o condão de alterar lei federal que estabelece o patamar de R$ 10 mil na esfera federal.
A matéria traz manifestações que revelam indignação não só com tal patamar, mas, em geral, com toda a penetração que a política fiscal relativa à punição dos crimes tributários, especialmente em virtude da previsão legislativa reiterada — sem interrupção, ao menos desde 1995 — acerca dos efeitos do pagamento e do parcelamento na pretensão punitiva.
No final de novembro deste ano de 2013, o Núcleo de Estudos Fiscais da Direito GV realizou V Colóquio Internacional do Núcleo de Estudos Fiscais. Temas de destaque na fala de especialistas nacionais e estrangeiros foram a particular complexidade do sistema tributário brasileiro e o impressionante tempo que tais questões têm de aguardar para um pronunciamento final por parte do Poder Judiciário. As injustiças daí decorrentes — seja para o Fisco, seja para o contribuinte — acabam por estar (também) na raiz da “resposta” por excelência que tem sido dada pela Administração Tributária a tal complexidade: os sucessivos planos de parcelamento tributário.
Não é de surpreender que esta resposta tenha repercussão penal. Como todos os ramos do Direito Penal Econômico, a realidade sobre a qual as normas penais tributárias se debruçam é a realidade normativa tributária, qualificada como de extrema complexidade e peculiar insegurança. Se levarmos em conta, de um lado, que a maioria dos tributos é apurada pela via do “autolançamento”, por meio do qual se transfere ao contribuinte o ônus de desvendar — ou tentar desvendar — a complexidade da legislação tributária, e, de outro, que a maioria dos crimes tributários se refere, justamente, a omissões e inexatidões no “autolançamento”, é compreensível que a “resposta” tributária à complexidade venha a ter efeitos penais. E assim tem sido, initerruptamente, desde 1995, com as inúmeras normas atribuindo efeitos penais ao pagamento e ao parcelamento dos tributos.
Esse quadro permite afirmar — sem que necessariamente se concorde com isso em termos político-criminais — que a razão fiscal tem superado a razão penal no estabelecimento da política criminal no setor dos crimes tributários. Se sob um olhar estritamente penal isto pode parecer uma anomalia[3], sob um olhar mais abrangente pode, talvez, ser visto como uma forma de compensação ao cidadão por uma complexidade cuja solução é política, intrincada e, ao que tudo indica, no presente momento, improvável de ser alcançada. E se isto é de se lamentar — e é —, temos nós, penalistas, uma boa razão para nos juntarmos aos tributaristas na cobrança de um sistema tributário mais simples e previsível. De qualquer forma, este modo de ver as coisas pode ajudar a compreender que a disciplina dos efeitos penais benéficos do pagamento e do parcelamento na punibilidade dos crimes tributários sob uma ótica menos maniqueísta e mais bem colocada dentro da complexidade da realidade sobre a qual se deitam as normas penais tributárias. Esses benefícios podem, assim, também ser vistos como a compensação penal pela complexidade e pela injustiça do sistema tributário nacional.
A questão dos patamares de insignificância também se coloca dentro do quadro da relação de dependência entre normas penais tributárias e normas tributárias. Em termos penais, se o direito penal deve ser a “ultima ratio” do sistema sancionador, não se pode sacar a pena criminal contra qualquer lesão a bem ou valor jurídico. A pena criminal só realizará o postulado de proporcionalidade onde a ofensa que ela implica aos direitos fundamentais do condenado (privação da liberdade, restrições de trabalho e convivência familiar etc.) for proporcional à ofensa causada por sua conduta. Essa ideia se reflete no, assim chamado, “princípio da insignificância”. Insignificância, todavia, não é sinônimo de licitude. A ofensa causada por uma conduta pode não ser de monta a merecer uma sanção penal, mas pode o ser a ponto de merecer uma sanção administrativa. O que é importante nessa relação é que o patamar de lesividade penal seja superior ao patamar de lesividade extrapenal (administrativa) para que a relação de proporcionalidade seja respeitada.
Nessa linha, o desinteresse fiscal em executar créditos abaixo de um certo limite quantitativo pode ser indicador de uma “insignificância” extrapenal, um patamar de lesividade que sequer compensa movimentar o Judiciário no processo executivo. Ora, esse limite está muito abaixo daquele que seria o de lesividade exigível para a imposição de sanção penal, que deveria exigir (muito) mais que isso — ou seja e concretamente, bem mais do que R$ 10 mil ou R$ 20 mil — para respeitar a proporcionalidade que deve existir entre a gravidade da sanção penal e a gravidade do crime.
Dois exemplos tomados da legislação estrangeira podem ajudar nessa reflexão. O delito de defraudação tributária do CP espanhol (artigo 305, n. 1) prevê um patamar mínimo de 120 mil euros (por ano, a depender da frequência de apuração) para que a conduta seja punível criminalmente. Abaixo desse patamar, o ilícito merecerá apenas sanção administrativa. O mesmo se aplica ao crime do artigo 103 da RGIT portuguesa, na qual o patamar é de 15 mil euros por período do declaração. Perto disso, o patamar de R$ 10 mil ou R$ 20 mil, debatido no Recurso Especial mencionado no início do texto, chega a causar estranheza não por seus efeitos penais, mas pelo fato de que o que é insignificante em termos de crédito tributário não poderia ser significante para fins de apuração do dano causado merecedor de sanção penal. A desproporção entre as sanções e as lesões parece evidente.
Estes dois pontos de contato entre política fiscal e política criminal evidenciam que as questões que permeiam o direito penal econômico não podem prescindir da referência ao ramo do direito que pretende proteger com a mais grave sanção do sistema, a sanção penal.
[1] STJ, REsp 1334500.
[2] http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=112451&utm_source=agencia&utm_medium=email&utm_campaign=pushsco(acesso em 02.12.2013).
[3] Nesse sentido, conferir as ADIs 4723 e 4974 propostas contra normas que preveem os efeitos penais do parcelamento e do pagamento de tributos.
Heloisa Estellita é advogada, doutora em Direito Penal pela USP e professora da Direito GV.
Revista Consultor Jurídico, 16 de dezembro de 2013
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