quinta-feira, 28 de maio de 2009

Artigo: Álcool, trânsito, silêncio e impunidade

O trágico acidente ocorrido na madrugada do dia 7 de maio de 2009, nas esquinas das ruas Monsenhor Ivo Zanlorenzi com Paulo Gorski, na cidade de Curitiba, envolvendo o deputado Estadual Fernando Ribas Carli Filho, traz sérias questões sobre a responsabilização criminal que merecem ser refletidas.

O artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), em sua redação original, afirmava simplesmente ser crime a condução de veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool. Assim, poderia se imaginar que, para a caracterização do delito, não era necessária a comprovação do estado de embriaguez, bastando a condução do veículo sob a influência do álcool. A Lei 11.705/2008 alterou o artigo 306 do CTB para considerar crime apenas a condução, em via pública, em estado de embriaguez profunda. Passou a se exigir concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas. Menos que isto, a conduta somente pode ser enquadrada na sanção administrativa do artigo 165 do CTB, sujeita a multa e suspensão do direito de dirigir.

Antes da alteração legislativa, a jurisprudência admitia que o estado de embriaguez fosse comprovado não apenas por exame de dosagem alcoólica, mas também pela observância comum, isto é, pelo depoimento dos agentes de trânsito ou de qualquer outra testemunha, bem como por exames clínicos que evidenciassem notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.

Hoje, grande parte das denúncias, oferecidas pelo Ministério Público, sem o teste de alcoolemia, são liminarmente rejeitadas por falta de justa causa (elementos probatórios mínimos para o exercício da pretensão punitiva). O Judiciário tem exigido o exame de dosagem alcoólica, sem o que considera a conduta atípica, não sendo possível a punição do criminoso (v. TJ/PR 2.ª Câm. Crim. Ac. n. 24.492 rel. Des. João Lopytowski j. 30/4/2009 pub. DJ 138).

A grande dificuldade é que, na maior parte das comarcas do Estado do Paraná, não há equipamentos para aferir a dosagem alcoólica. E, nos locais em que eles existem, não são suficientes para dar conta de toda a fiscalização.
Pior que isto é a situação de haver o equipamento, mas o suspeito de crime de trânsito se negar a fazer o exame. O artigo 277 do CTB afirma que o condutor suspeito de dirigir embriagado será submetido a testes de alcoolemia. No entanto, não afirma, peremptoriamente, que tem o dever de fazer o exame.

O artigo 277 do CTB soa como uma mera recomendação, diante da extensiva interpretação do Supremo Tribunal Federal ao artigo 5.º, inc. LXIII, da Constituição Federal ("o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado"). O STF erigiu o privilégio contra auto-incriminação (nemo tenetur se detegere) como um direito fundamental e, não sendo o acusado advertido de seu direito ao silêncio, a prova produzida será considerada ilícita (v. HC 80.949/RJ 1.ª T. rel. Min. Sepúlveda da Pertence j. 30/10/2001).

Porém, o direito ao silêncio, previsto no artigo 5.º, inc. LXIII, da CF, não pode se transformar em um direito genérico de não produzir prova contra si mesmo. Caso contrário, será impossível desincumbir-se do ônus da prova, especialmente quando o caso envolve a necessidade de provas científicas, como a colheita de sangue, outras partes do corpo ou de material genético.

À guisa de comparação, no Direito norte-americano, a Quinta Emenda da Constituição estabelece que "ninguém pode ser compelido em casos criminais de ser uma testemunha contra si mesmo". No entanto, a Suprema Corte norte-americana não torna o direito ao silêncio um privilégio, amplo e irrestrito, de não auto-incriminação. Tal direito não abrange (Cfr. João Gualberto Garcez Ramos. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006. Pág. 139): i) o fornecimento de sangue para um teste (Schmerber v. Califórnia, 1966); ii) ou de amostras caligráficas (Gilbert v. Califórnia, 1967); iii) ou, ainda, de amostras fonéticas (United States v. Wade, 1967); iv) o reconhecimento do acusado por uma testemunha ou pela vítima (United States v. Wade, 1967); v) a tomada da estatura, peso etc. do acusado (United States v. Wade, 1967); vi) o fornecimento de impressões digitais (United States v. Wade, 1967); vii) a obrigatoriedade de suspeito de ter causado de acidente de automóvel ser obrigado a fornecer à autoridade policial seu nome e a mostrar-lhe seus documentos (California v. Byers, 1971). Ainda, a gravação, por parte dos agentes policiais, de conversa com suspeito de dirigir embriagado, que foi advertido que a conversa seria gravada e que havia consentido com ela, a fim de se comprovar o estado de embriaguez, foi permitida em Pennsylvania v. Muniz (1990). Neste caso, a Suprema Corte decidiu que as respostas relativas ao nome, endereço, altura, peso, cor dos olhos, data de nascimento e idade, que foram respondidas de formas estapafúrdias, poderiam ser consideradas para fins de demonstrar o estado de embriaguez, não para fins de confissão do ato ilícito.

Portanto, deve-se concluir que o que a Constituição, no artigo 5.º, inc. LXIII, veda é que o acusado seja compelido a falar algo contra a sua vontade, já que ninguém pode ser submetido a tortura (art. 5.º, inc. III, CF). Todavia, o direito ao silêncio não contempla o privilégio genérico de não ter o dever de submeter-se à investigação criminal, especialmente nos casos em que a prova do crime depende de material genético que somente pode ser fornecido pelo acusado.

Não obstante seja imprescindível discutir a correta exegese do artigo 5.º, inc. LXIII, da CF, persiste a questão de como impor o dever de colaboração com a justiça. O sangue, por exemplo, pode ser tirado à força? O consentimento do acusado é indispensável? E, se no momento da prisão em flagrante, o acusado não está em condições de consentir, outra pessoa (cônjuge, parente etc) pode suprir o seu consentimento?

Verifica-se, pois, que o direito à liberdade pessoal se choca com o direito difuso à segurança. Os limites entre o agir do Estado e a preservação da autonomia da vontade estão em jogo.

Na hipótese em que o desforço físico é impossível ou vicie a própria prova (p. ex., não fornecimento de amostras caligráficas ou fonéticas), nos Estados Unidos, o imputado poderá ser processado por crime de desobediência (contempt of court).

Todavia, melhor que isto, parece ser a aplicação da técnica da inversão do ônus da prova. Desse modo, o acusado não é compelido a produzir prova contra si mesmo, assumindo o risco de, ao não realizar o exame de dosagem alcoólica, ser condenado, com base nas demais provas (documentais e testemunhais) existentes nos autos. Para tanto, contudo, ter-se-ia que subverter, para as situações de recusa injustificada do imputado em fornecer o material da perícia, a lógica do in dubio pro reo, imposta nos artigos 386, inc. IV e VII, do Código de Processo Penal, passando a adotar o princípio do in dúbio pro societate.

O caso Fernando Ribas Carli Filho testa inúmeros institutos jurídicos, colocando sob suspeita de ineficácia dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro e do Código de Processo Penal. O formalismo deve ser colocado de lado, a fim de que se possa extrair do sistema jurídico a máxima efetividade dos direitos fundamentais em colisão. É certo que tolerância demais com os delinqüentes do volante (não suspensão de carteiras de motorista, ausência de bafômetros na maior parte das Comarcas, impossibilidade de ajuizamento de ações penais ou de condenações sem o exame de dosagem alcoólica e extensão desmedida do direito ao silêncio) conduzem à impunidade dos crimes de trânsito e elevam, ainda mais, a triste estatística que coloca o Brasil entre os países com maior número de vítimas fatais provocadas pela associação entre álcool e direção. A opinião pública pede justiça. O resto que se lixe!

Eduardo Cambi é promotor de Justiça do MP-PR.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 25/05/2009.

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