sexta-feira, 8 de maio de 2009

Artigo: Sequestro relâmpago deixou de ser crime hediondo: lei 11.923/2009 é mais favorável ao réu

Observação preliminar: as polêmicas jurídicas antes existentes sobre o sequestro relâmpago provavelmente não vão terminar. Participe dessa discussão, emitindo sua opinião. Faça seus comentários.

Lei 11.923/2209: por força da Lei 11.923/2009, que entrou em vigor no dia 17/4/09, o chamado sequestro relâmpago, no nosso ordenamento jurídico-penal, passou a ser tipificado no art. 158, § 3.º, do CP, nestes termos:

"Art. 1.º O art. 158 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte § 3.º:
"Art. 158.

§ 3.º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2.º e 3.º, respectivamente". (NR)

Art. 2.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 17 de abril de 2009; 188.º da Independência e 121.º da República".

Clareza do legislador: sempre foi tema muito confuso o correto enquadramento do delito de sequestro relâmpago. A nova lei tem a virtude de esclarecer a tipificação adequada. Já não existe nenhuma dúvida: agora o sequestro relâmpago está previsto expressamente no art. 158, § 3.º, do CP.

Duas situações diferentes: para clarificar bem a matéria, devemos fazer a seguinte distinção: uma coisa é a concretização exclusiva do sequestro relâmpago (obrigar a vítima, por exemplo, a fazer saques em caixas eletrônicos, privando-a da liberdade) e outra (bem diferente) consiste em o agente subtrair bens da vítima em primeiro lugar (o carro, a carteira, dinheiro etc.) e depois praticar o sequestro relâmpago.

Na primeira situação temos crime único (agora enquadrado no art. 158, § 3.º, do CP, sem sombra de dúvida). Na segunda temos dois delitos: roubo (art. 157) + art. 158, § 3.º (extorsão).

O sequestro relâmpago era enquadrado como extorsão mediante sequestro: no que diz respeito ao crime único de sequestro relâmpago (agora previsto expressamente no art. 158, § 3.º, do CP) cabe fazer as seguintes considerações: antes do advento da Lei 11.923/2009 ele era tipificado ora no art. 157, § 2.º, V, do CP, ora no art. 159 do CP (extorsão mediante sequestro).

Correta era a última posição porque no sequestro relâmpago é imprescindível a atuação da vítima para que o delito se consuma, ou seja, a atuação da vítima é condição necessária para a obtenção da vantagem econômica. Isso não se passa no roubo (onde o agente subtrai os bens da vítima, sem que ela seja condição necessária para a obtenção da lesão patrimonial).

A pena do delito foi reduzida: partindo-se da premissa posta, a pena do delito de sequestro relâmpago, antes, era de oito a quinze anos de reclusão (CP, art. 159). Agora (por força da nova lei) a pena é de seis a doze anos (crime simples). A nova lei diminuiu a pena do delito em destaque.

Sequestro relâmpago deixou de ser crime hediondo: antes o sequestro relâmpago (sendo enquadrado no art. 159) era crime hediondo. Agora deixou de ser crime hediondo (porque a extorsão do art. 158, § 3.º, não está catalogada, no Brasil, como crime hediondo ver art. 1.º da Lei 8.072/1990). Não sendo possível analogia contra o réu, não pode o juiz suprir esse vácuo legislativo (nem o doutrinador pode violar a garantia da lex stricta).

Lei nova é mais benéfica ao réu...: antes não se permitia para o sequestro relâmpago a anistia, graça, indulto etc. Agora todos esses institutos são cabíveis. Antes se exigia o cumprimento de dois quintos (se primário) ou três quintos (se reincidente) para a progressão de regime; agora basta o cumprimento de um sexto da pena para esse efeito (LEP, art. 112).

E retroativa: como se vê, a chamada lei "de repressão dura" contra o sequestro relâmpago, na verdade, se comparada com a classificação correta anterior (que o inseria no art. 159 do CP), é muito mais favorável ao réu. Nos pontos favoráveis, claro, a lei nova vai retroagir (para beneficar o réu), caso ele tenha sido condenado pelo art. 159.

Sequestro relâmpago com lesão grave ou morte: se resulta (do sequestro relâmpago) lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2.º e 3.º, respectivamente. Note-se: o crime não se converte em extorsão mediante sequestro, tão-somente são aplicadas as suas penas (só é extorsão mediante sequestro quo poenam).

Não sendo extorsão mediante sequestro, em regra não há que se falar em crime hediondo, salvo quando ocorre o resultado morte (extorsão com resultado morte é crime hediondo). No caso de lesão grave, não é crime hediondo (por falta de previsão legal).

Desproporcionalidade da pena: a pena nova do delito de sequestro relâmpago (embora menor que a anterior, contemplada no art. 159 do CP), comparada com o delito de homicídio simples, é totalmente desproporcional. Aliás, a pena é idêntica nas duas situações: de seis a doze anos de reclusão.

Praticar sequestro relâmpago ou matar uma pessoa no Brasil é a mesma coisa (no que diz respeito à pena). A desproporcionalidade é patente. Sendo o Brasil um país tradicionalmente patrimonialista, nota-se o quanto que o patrimônio "vale" (na consideração equivocada do legislador) mais que a vida.

Desproporcionalidade entre o roubo e o sequestro relâmpago: há desproporcionalidade também em relação ao roubo com privação da liberdade da vítima.

Nesse caso (roubo agravado) a pena mínima é de cinco anos e quatro meses de reclusão. No sequestro relâmpago a pena mínima é de seis anos de reclusão. Total desproporcionalidade.

Tanto no roubo como no sequestro relâmpago o objetivo do agente é o patrimônio. Bens jurídicos idênticos, modo de execução idêntico: não se justifica pena distinta. Cabe ao juiz julgar inconstitucional a pena do art. 158, § 3.º, do CP, aplicando a pena mínima do art. 157, § 2.º, V, do CP.

Roubo + sequestro relâmpago (concurso de crimes): se o agente rouba a vítima (rouba o carro, uma carteira, dinheiro, relógio etc.) e, em seguida, no mesmo contexto fático (sem nenhuma interrupção temporal), pratica também o sequestro relâmpago (saques em caixas eletrônicos), temos dois delitos: roubo + art. 158, § 3.º. O roubo pode ser simples ou agravado (pelo concurso de pessoas, por exemplo).

Concurso de crimes material ou formal?: a clássica jurisprudência do STF sempre enfocou o tema (roubo + extorsão) como concurso material de crimes (RE 104.063-SP, 2.ª Turma, rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ de 17/5/85).

No mesmo sentido: HC 74.528-SP, 2.ª Turma, rel. Min. MAURÍCIO CORREA, DJ de 13/12/96); HC 69.810-SC, 1.ª Turma, rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 18/6/93); RESP 684423-SP, 5.ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 14/2/2005). Esse é o clássico entendimento jurisprudencial (provavelmente, embora incorreto, é o que vai prevalecer doravante).

O tema é polêmico porque o contexto fático é único. Melhor seria dizer que se trata de conduta única, com dois resultados (com dupla ofensa ao bem jurídico patrimonial).

Isso configuraria concurso formal de crimes. Próprio ou impróprio? A mais conservadora doutrina diria impróprio, em razão dos desígnios autônomos. Ocorre que as razões de política criminal que estão por detrás do concurso formal (evitar o exagero de penas) nos conduz a sustentar o seguinte: o concurso formal impróprio somente deve ter pertinência quando se trata de bens jurídicos muito relevantes (vida, por exemplo).

Tratando-se do patrimônio, não haveria espaço para o concurso formal impróprio. Seria então sustentável a tese do concurso formal próprio no caso de roubo + sequestro relâmpago (tal como boa parte da jurisprudência faz com o roubo em ônibus, contra várias vítimas, v.g.).

Roubo agravado pela privação da liberdade da vítima + sequestro relâmpago: isso é possível. Vamos imaginar: o agente, durante o roubo em sua casa, priva a vítima da liberdade para a consumação do roubo (tranca a vítima no banheiro, v.g.).

Em seguida coloca a vítima no carro e vem a pratica o sequestro relâmpago. O que temos? Roubo agravado (art. 157, § 2.º, V) + sequestro relâmpago (art. 158, § 3.º). São duas privações da liberdade diferentes (para finalidades distintas). Daí a pertinência do roubo agravado pela privação da liberdade + sequestro relâmpago.

A privação da liberdade no roubo, no sequestro relâmpago e na extorsão mediante sequestro (diferenças): com a nova lei percebe-se que a privação da liberdade pode servir como meio para a prática de três crimes patrimoniais: roubo (art. 157, § 2.º, V), extorsão comum (art. 158, § 3.º) e extorsão mediante seqüestro (art. 159).

Distinções: haverá roubo quando o agente, apesar de prescindir (não necessitar) da colaboração da vítima para apoderar-se da coisa visada, restringe sua liberdade de locomoção para garantir o sucesso da empreitada (da subtração ou da fuga).

Ocorre extorsão comum (seqüestro relâmpago) quando o agente, dependendo da colaboração da vítima para alcançar a vantagem econômica visada, priva o ofendido da sua liberdade de locomoção pelo tempo necessário até que o locupletamento se concretize.

Por fim, teremos extorsão mediante sequestro quando o agente, privando a vítima do seu direito de deambulação, condiciona sua liberdade ao pagamento de resgate a ser efetivado por terceira pessoa (ligada, direta ou indiretamente, à vítima). Em resumo:


Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG. Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). www.blogdolfg.com.br

Rogério Cunha Sanches é professor da Escola Superior do MP-SP. Professor de Direito penal e Processo penal na Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes Rede LFG e promotor de Justiça em São Paulo.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 04/05/2009.

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