quinta-feira, 21 de maio de 2009

Artigo: Ectogênese e direito penal

A relação entre mãe e embrião/feto(1) como uma unidade natural intrínseca está cada vez mais frágil(2) diante das novas genetecnologias. Exemplo disso é a chamada ectogênese.

Dá-se o nome de ectogênese ao desenvolvimento completo de um ser humano fora do útero materno, ou seja, em laboratório. Ou mais detalhadamente, como prefere Leroy: “é o procedimento técnico por meio do qual a totalidade das etapas do desenvolvimento humano, desde a fecundação até ao nascimento, se realizaria em laboratório, sem recurso ao acolhimento num organismo materno”(3). A “reificação” da vida humana não nascida avança e o velho sonho de fabricar seres humanos artificiais em laboratório é uma viabilidade que ora se apresenta pela ectogênese(4).

Embora a etapa inicial deste processo de procriação humana artificial (fase embrionária) já tenha sido obtida com êxito pelas técnicas de reprodução assistida desde há muito tempo, o desenvolvimento completo de uma gestação artificial (ou gestação ex utero) é uma nova possibilidade científica que ainda não se concretizou na prática médica. Todavia, os cientistas vêm estudando formas artificiais alternativas que reproduzam as condições do ventre materno (humano). No entanto, as atuais tentativas científicas estão fracassando num prazo mais ou menos curto e desembocam frequentemente na produção de embriões anormais e/ou inviáveis(5). Quanto ao estágio final da gestação, a ideia de “produzir uma placenta artificial para obviar às consequências nefastas de um parto prematuro não tiveram praticamente qualquer efeito”(6). Por outro lado — como complementa Leroy“embora seja possível reproduzir em laboratório e fora do organismo materno certos segmentos limitados e relativamente precoces da gestação, os cientistas são incapazes, atualmente, de estabelecer ligações entre eles” (...) a reprodução in vitro de etapas mais avançadas de uma gravidez permanece um obstáculo intransponível, sobretudo devido à complexidade das múltiplas inter-relações existentes entre o concebido e o organismo materno(7), concluindo o autor que, no momento, a ectogênese não se revela exequível pela biociência.

Não obstante sejam referidos alguns aspectos positivos relacionados à ectogênese (p.ex., redução do número de abortos, eliminação do fardo/desconforto da gravidez, alternativa reprodutiva para mulheres inférteis ou com problemas de gestação, redução da exposição do nascituro a contaminações ambientais — gases, radiações, etc. —, e a substâncias tóxicas — álcool e droga etc.(8)), há, por outro lado, igualmente aspectos negativos que merecem atenção, pois a utilização da ectogênese também pode ser abusiva e contrária à dignidade humana, assim como ofender bens jurídico-penais. Mas antes disso, é importante mencionar que, na realidade, existem três espécies de ectogênese a saber: a) a ectogênese artificial; b) a ectogênese animal (ou xenogênese); e c) a ectogênese masculina. Enquanto a ectogênese artificial é aquela desenvolvida por meios mecânicos/artificiais, através de determinadas máquinas e aparelhos, a ectogênese animal ocorre quando o embrião/feto é gestado em animais; enfim, a gestação masculina é aquela realizada no homem. Por outro lado, e quanto à finalidade, a ectogênese procriativa visa à procriação, i.e., obter o nascimento de um ser (humano ou não humano); enquanto a ectogênese não procriativa pretende apenas explorar as potencialidades (benéficas ou maléficas) que a técnica pode trazer consigo.

Portanto, a ectogênese ainda é uma intervenção biomédica de natureza experimental, não terapêutica, com fins reprováveis ou não reprováveis. Frise-se que todas as aludidas modalidades são realizadas fora do organismo materno, só variando a natureza e a qualidade do gestante (máquina, animal ou homem). Visto isso, vamos passar agora às questões jurídico-penais relacionadas, sobretudo tendo em vista os bens jurídico-penais implicados.

Ectogênese (artificial) e tutela da vida

Como se sabe, a proteção penal da vidado embrião/feto que se desenvolve dentro do ventre materno (in utero), se dá pela figura do aborto (CP, art. 124 e ss.). Noutras palavras, a gravidez exigida no crime de aborto é inerente à mulher, sendo necessariamente uma gestação feminina. Todavia, no caso da ectogênese, o embrião/feto seria gestado fora do útero (ex utero), mais especificamente em máquinas e aparelhos, cabendo questionar qual a tipificação pertinente caso isso ocorra e/ou haja a eventual destruição da vida se tal intervenção não for bem sucedida. Nesta hipótese, o fato seria atípico, pois a figura do aborto não se enquadraria, já que a gravidez pressupõe que o nascituro esteja dentro do ventre materno sendo proibida qualquer analogia in malam partem. Noutras palavras, exige-se a destruição da vida intrauterina para que o tipo de aborto se realize. Ademais, o simples procedimento de gestar artificialmente um embrião/feto (com fins procriativos ou não procriativos) também é uma conduta atípica perante o nosso ordenamento jurídico-penal. Contudo, o Conselho da Europa reprova esta intervenção(9), e na Alemanha a ectogênese artificial é proibida penalmente(10).

Por outro lado, pode-se cogitar a hipótese de utilização da ectogênese sem fins procriativos (ectogênese não procriativa), que podem resultar na destruição da vida humana em desenvolvimento como, p.ex., na gestação de embriões/fetos como material biológico de reserva para servirem posteriormente em transplantes de órgãos e tecidos. Aqui, a vida humana em gestação seria instrumentalizada para tratar e curar enfermidades alheias, uma problemática extremamente complexa que remete ao tema da pesquisa ou experimentação em embriões e fetos humanos. Além da vida, isso ofenderia mais precisamente a dignidade reprodutiva humana, pois o próprio “estatuto da reprodução humana” pode vir a ser totalmente degradado pelo desrespeito em relação à destinação do seu produto, representado pelo embrião/feto(11). Nesse sentido, e a fim de evitar uma total “coisificação” dessas entidades biológicas humanas, tratando-as como meras “mercado­rias”, resta proibida a comercialização de embriões (§ 3º), nos termos da Lei 9.434/1997, que estabelece como crime, com pena de reclusão de 3 a 8 anos, a conduta de “comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano” (art. 15), incorrendo na mesma pena quem “promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação (parágrafo único). Aliás, a Constituição brasileira veda expressamente a comercialização de “substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento” (CF, art. 199, § 4º) De qualquer forma, recentemente, na Adin 3.510/DF, o STF julgou constitucional o art. 5º da Lei de Biossegurança que permite, para fins de pesquisa e tratamento, a utilização de células-tronco embrionárias, desde que observadas algumas condições.

Por fim, se a eventual ectogênese levada a cabo resultar no nascimento de um ser humano defeituoso ou com problemas psíquicos, poderia ainda se pensar na ofensa à integridade física ou à saúde (psíquica) do embrião/feto. Todavia, este fato seria atípico em nosso ordenamento, pois o tipo de lesões corporais (CP, art. 129) é referido apenas a pessoas nascidas.

Ectogênese (animal e masculina) e tutela da identidade genética

A ectogênese também pode ofender a identidade genética(12) da humanidade se for destinada à produção de seres híbridos, quimeras e clones. Na verdade, tais resultados (híbridos, quimeras e clones) podem ser obtidos, além da ectogênese, mediante técnicas de engenharia genética (germinal), reprodução assistida e clonagem. No Brasil, a Lei de Biossegurança proíbe a engenharia genética (germinal) e a clonagem (arts. 25 e 26 respectivamente). No entanto, a possibilidade de produção de seres híbridos e quimeras através da reprodução assistida ou da ectogênese são situações ainda atípicas em nosso país, ao contrário da legislação penal de alguns outros países.

Na verdade, a possibilidade futura de o nascituro ser gestado em animais (ou vice-versa: a gestação humana de um embrião animal) e no homem (gravidez masculina)(13) causam perplexidades que se traduzem em manifestações jurídicas no sentido da incriminação de algumas condutas pertinentes por ofenderem a dignidade humana(14). Visando conter estes abusos — que ofendem mais propriamente a identidade genética e a dignidade reprodutiva —, a legislação penal alemã e a inglesa tipifica­ram a hipótese relacionada à ectogênese animal e, vice-versa, referente à gestação humana de um animal(15). Por outro lado, na Itália, a ectogênese é punida, seja para fins reprodutivos, seja para fins de pesquisa, com aumento de pena em relação à reclusão de dois a seis anos e multa de 50.000 a 150.000 euros(16) prevista. Enfim, em Portugal, sem no entanto se referir expressamente à ectogênese (animal), há punição de 1 a 5 anos para “quem criar quimeras ou híbridos com fins de Procriação Medicamente Assistida”(17).

No Brasil, não há uma previsão legislativa para tais condutas, muito menos qualquer projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que verse especificamente sobre isso, o que, diga-se de passagem, seria muito bem-vindo. Pode-se no entanto cogitar a tipificação da ectogênese no art. 20 do Projeto de Lei 1.184/2003, in verbis: “Art. 20. Constituem crimes: I – intervir sobre gametas ou embriões in vitro com finalidade diferente das permitidas nesta lei. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.” Deve-se, porém, aprofundar a discussão sobre a matéria e sobre a própria legitimidade da intervenção do direito penal nesta questão tendo em vista os princípios político-criminais da dignidade penal, da necessidade penal, e da precaução.

Notas

(1) Embrião significa o estágio vital humano que se inicia no momento da fecundação do óvulo pelo espermatozoide e vai até aproximadamente três meses de desenvolvimento, quando a partir de então passará a ser designado mais propriamente de feto até que sobrevenha o nascimento.

(2) HILGENDORF, Ektogenese und Strafrecht, MedR 11 (1994), p.429. Segundo este autor (idem, ibidem), “com a ectogênese a técnica penetra nos domínios da identidade humana, pois a relação mãe-filho é uma das mais fortes ligações humanas que pode ser abalada pela substituição da mãe (natural) pela mãe-máquina (“Muttermaschine”).

(3) LEROY, “Ectogênese”, in: Hottois/Parizeau, Dicionário da bioética. Lisboa: Instituto Piaget, 1998, p. 181. Explica o autor que, enquanto nos ovíparos o desenvolvimento embrionário e a eclosão de um organismo materno podem se desenvolver fora do organismo materno, nos mamíferos a autonomia fisiológica só se realiza ao cabo de uma gestação prolongada no útero da mãe.

(4) HILGENDORF, op. cit., p.429.

(5) LEROY, op. cit., p.181

(6) Idem, ibidem, p. 182.

(7) Idem, ibidem. Apesar destas limitações científicas, a literatura de ficção científica e algumas publicações científicas mais otimistas apontam a ectogênese como uma técnica realizável num futuro próximo. Jeffrey Fisher acredita que até 2020 todos os requisitos técnicos para rotina médica da gestação in vitro já estarão disponíveis (FISHER, Die Medizin von Morgen, 1993, p. 40 apud HILGENDORF, op. cit., p. 429).

(8) V. HILGENDORF, op. cit., p. 430. De forma crítica à ectogênese (artificial), MANTOVANI (Problemas de la manipulación genética, Doctrina Penal, 1986, p. 27) relata que na Itália foram realizadas experiências sobre fetos de 18 a 24 semanas com o “alucinante objetivo, de duvidosa cientificidade, de demonstrar que a gravidez mecânica, sob o controle da ciência, seria melhor do que a gravidez natural desde distintos pontos de vista” (pela possibilidade de vigiar e guiar o nascimento do embrião e do feto, de evitar contágios pré-natais e riscos do parto etc.).

(9) CONSELHO DA EUROPA, Recomendação 1046(1986), n. 14, A, iv. Sobre as implicações jurídico-penais da ectogênese, vide ainda, HILGENDORF, op. cit, p. 428-432.

(10) Vide EschG, § 2, (2)

(11) SPORLEDER DE SOUZA, Direito Penal Genético: Comentários sobre Crimes Envolvendo Engenharia Genética, Clonagem, Reprodução Assistida, Análise Genômica e Outras Questões. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 21.

(12) Sobre as características deste bem jurídico, v. SPORLEDER DE SOUZA, Bem Jurídico-Penal e Engenharia Genética Humana: Contributo para a Compreensão dos Bens Jurídicos Supra-Individuais. São Paulo: RT, 2004, p. 265 e ss.

(13) Sabe-se — explica DE LA FUENTE — que, ocasionalmente, o embrião pode implantar-se primária ou secundariamente na cavidade peritoneal da mulher e desenvolver-se plenamente; este tipo de gestação denomina-se “gestação abdominal” e teoricamente existe a possibilidade de transferir um embrião dentro da cavidade abdominal do homem (DE LA FUENTE, in: Barbero Santos (Ed.), Ingeniería Genética y Reproducción Asistida. Madrid: Marino Barbero Santos, 1989, p. 101).

(14) Assim entende MANTOVANI, in: Romeo Casabona (Ed.), Biotecnología y Derecho. Perspectivas en Derecho Comparado. Bilbao/Granada: Fundación BBV/Comares, 1998, p. 261. Aliás, o projeto para o novo Código Penal italiano (Título IV, capítulo IV) prevê a incriminação destas condutas visando proteger justamente a dignidade humana. No entanto, a nosso sentir, os bens jurídicos protegidos em tais casos tratam-se da identidade genética e da dignidade reprodutiva.

(15) Vide EschG, § 7, (2), n.1 e n.2 ; Human Fertilisation and Embryology Act (1990), Section 3, n.2, a, b; Section 3, n.3, b. Neste sentido, se manifesta o CONSELHO DA EUROPA, Recomendação 1046 (1986), n.14, A, iv.

(16) Legge 40/2004, art.13, n.3, c.

(17) Lei 32/2006, art. 38.

Paulo Vinicius Sporleder de Souza
Professor de Direito Penal da PUCRS, doutor em Direito (Universidade de Coimbra) e advogado


SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Ectogênese e direito penal. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 17, n. 198, p. 14-15, maio 2009.

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