O acidente envolvendo o deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho (PSB) reacendeu o debate sobre a punição para quem causa mortes no trânsito. De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, o motorista que comete homicídio culposo (sem a intenção de matar) pode ficar detido por um período que varia de dois a quatro anos. Embora o Tribunal de Justiça não tenha dados sobre o total de condenações por morte em acidentes no Paraná, juristas e especialistas em trânsito constatam: raramente o réu cumpre a pena na cadeia.
O promotor de Justiça Cássio Honorato, especialista em trânsito, defende penas mais elevadas para motoristas responsáveis por acidentes. Ele argumenta que hoje há muitas formas de evitar a cadeia e, por esse motivo, dificilmente um condutor é preso. “Como é uma detenção e não uma reclusão, há possibilidade de fiança, regime aberto e semiaberto. Sem antecedentes, é ainda mais difícil que haja detenção ou punição”, diz.
De acordo com Honorato, nos casos mais graves a punição deveria ser interpretada de uma maneira diferente da habitual. “A pessoa que dirige sem habilitação (caso do deputado, que estava com a licença cassada) sabe que está impossibilitada de dirigir, sabe que expirou o prazo de uso. Quem ingere bebida alcoólica sabe que está bêbado, quem se omite no socorro sabe que deveria ter feito alguma coisa. É diferente de quem viola uma norma de cuidado e causa um acidente no trânsito.”
Intenção de matar
Outro ponto criticado é a dificuldade de enquadrar determinados condutores na categoria de homicídio doloso, com a intenção de matar. Quando um motorista ingere álcool, dirige com excesso de velocidade e pratica rachas, por exemplo, está ciente de que pode matar alguém. Mas Honorato conta nos dedos os casos em que os condutores vão a Júri Popular. “Trabalho há 11 anos no Ministério Público e me lembro de meia dúzia de júris. Em um deles, inclusive, o motorista estava alcoolizado, atropelou três pessoas que estavam na calçada e deixou seu carro em pé em cima de um muro. Foi absolvido pelo júri, que entendeu não haver intenção.”
A dificuldade está justamente em comprovar o chamado dolo eventual. Para alguns juristas, um carro dirigido por um motorista imprudente se transforma em uma arma. No caso de dirigir embriagado, assume-se o risco de ocasionar um acidente.
Presidente da Comissão de Trânsito da OAB-SP e um dos autores do Código de Trânsito Brasileiro, Cyro Vidal afirma que o problema se encontra justamente na aplicação da lei, porque o homicídio doloso pode gerar pena de 30 anos de reclusão. “Esse maluco desse deputado – andando a 190 por hora, com hálito etílico, tendo 130 pontos na carteira, várias infrações por excesso de velocidade – não sabe que esse comportamento oferece risco a outras pessoas? Onde está a consciência e responsabilidade desse parlamentar?”, questiona.
O presidente da Associação Brasileira de Educação de Trânsito (Abetran), George Marques, também acha que a impunidade fortalece a imprudência. Como os motoristas sabem que dificilmente serão punidos, não respeitam as regras. A Lei Seca é um exemplo claro. “Nós a chamamos de lei da vida, mas sabemos que não é respeitada. No início, muitos motoristas foram pegos em flagrante, mas quantos são presos hoje?”, questiona.
O Ministério Público de Santa Catarina recomendou, no ano passado, que os promotores catarinenses peçam a mesma punição para quem comete um assassinato e quem dirige embriagado. De acordo com o MP, é uma tentativa de coibir mortes no trânsito. Todos os casos desse tipo serão encaminhados ao Júri Popular como homicídio doloso. A ideia partiu do Centro de Apoio Operacional Criminal do órgão, com o objetivo de mostrar que não há diferença entre cometer assassinato com arma de fogo ou com veículo.
Punições mais severas poderiam servir de lição e contribuir para a redução do número de acidentes. Sociólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUCPR), Lindomar Wessler Boneti aponta a falta de noção de coletividade como causa desses acidentes. “Uma punição mais severa pode servir de exemplo”, diz. Quando esses casos envolvem pessoas de peso na sociedade – como jogadores de futebol, artistas ou políticos –, Boneti entende ser o momento de coibir essas atitudes. “Na sociedade, esses cidadãos representam a figura do ídolo, do herói, que é muito significativa. Como, em geral, a punição varia dependendo da classe ou posição, trata-se da hora exata para mostrar o que é correto”, afirma.
Para juristas, imprudência não é dolo
Considerando as duas teses dominantes no meio jurídico, entre os juristas há certa predominância daqueles que defendem a inexistência de dolo em acidentes de trânsito. De acordo com eles, o condutor causador de óbitos no trânsito – mesmo em alta velocidade e embriagado – não tem a intenção de matar. Assim, a situação do motorista que causa um acidente com morte seria diferente daqueles casos de crime com arma de fogo, por exemplo. Advogado e professor de Direito Penal da PUCPR, Joe Velo afirma que seria necessário o interesse em cometer suicídio para existir dolo. “Na maior parte dos casos, parece-me que, no íntimo, essas pessoas não são indiferentes. Quando se entra na subjetividade, é complicado provar”, diz.
O promotor de Justiça Inacio de Carvalho Neto é um dos seguidores dessa teoria, defendendo que esses casos costumam envolver culpa consciente – quando a pessoa age com imprudência. “Não se pode assumir que o motorista usou o carro como arma em um acidente. Caso se diga isso, é o mesmo que afirmar que um médico usou o bisturi como arma letal em caso de erro médico. É exagerado”, argumenta. Por entender o trânsito como um ambiente perigoso que exige responsabilidades, Carvalho Neto explica que o Código de Trânsito prevê pena dobrada. “No Código Penal, a pena prevista varia de um a três anos. No trânsito, de dois a quatro anos. A pena mínima é dobrada”, diz.
O professor de Direito Penal da Universidade Positivo Alessandro Silverio raciocina de forma semelhante à do promotor. Ele ressalta, ainda, que, conforme previsto na Constituição Federal, deve-se aplicar o princípio da presunção da inocência. “Independentemente de quem seja o causador do acidente, é mais coerente optar pela pena menos radical”, afirma. Silverio considera que, em alguns casos, pode se entender o tempo de prisão como brando, mas a margem de manobra para ampliar o tempo de encarceramento é pequena. “Temos de trabalhar em um sistema jurídico proporcional. A pena máxima de um homicídio culposo não pode ser igual à mínima de um doloso e, por isso, não poderia ultrapassar os cinco anos”, diz.
Fonte: Paola Carriel e Vinícius Boreki - Gazeta do Povo
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