quinta-feira, 14 de maio de 2009

Artigo: CONSIDERAÇÕES SOBRE O ANTEPROJETO DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Não é novidade entre os estudiosos das ciências criminais a necessidade de elaboração de um novo Código de Processo Penal. Se passarmos os olhos sobre os boletins e as revistas do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, encontraremos diversos artigos e editoriais criticando as divergências entre o atual Código e a Constituição Federal de 1988 e os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, em especial o Pacto de São José da Costa Rica. Além disso, as alterações sofridas pelo Código no decorrer de sua vigência, a exemplo do Código de Processo Civil, criaram uma verdadeira “colcha de retalhos”, com normas desconexas e confusas. Portanto, nada mais lógico e viável que revogar o atual diploma processual por completo e instituir um novo, pensado do início ao fim, sempre em consonância com os direitos e as garantias constitucionais.

O anteprojeto apresentado pela comissão de juristas, e disponível no portal IBCCRIM, procura eliminar determinados preceitos que, historicamente, fizeram do processo penal brasileiro um instrumento de repressão e, após 1988, contrário a diversos princípios constitucionais. Neste trabalho, gostaríamos de tecer alguns comentários sobre pontos específicos que estão no início do texto do anteprojeto: os princípios fundamentais, o juízo das garantias e o prazo do inquérito policial.

DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

Num primeiro momento, entendíamos serem desnecessários os primeiros artigos do anteprojeto. Como os princípios fundamentais já estão previstos, ou na Constituição Federal, ou nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, bastaria interpretar toda e qualquer lei com foco nas referidas normas. Mais ainda, seria suficiente colocar a dignidade humana como núcleo de toda interpretação para chegarmos àquilo que se pretende com o anteprojeto. No entanto, percebemos que, quanto mais disposições prevendo tais princípios, mais eficiente pode ser o sistema de garantias.

A experiência prática mostra que grande parte da jurisprudência aplica a lei federal sem considerar os princípios constitucionais. Vários dispositivos do Código de Processo Penal dependem de interpretação constitucional, uma vez que estão em sintonia apenas com o momento histórico em que o diploma foi editado – um período de ditadura e influências da legislação fascista. Várias são as prisões cautelares determinadas sem fundamentos fáticos sólidos, diversas decisões são proferidas sem um efetivo exercício da ampla defesa, muitos excessos são cometidos pelo Estado ao longo da investigação e da persecução. Enfim, quem atua na área criminal sabe que a Constituição Federal, por muitas vezes, é um mero detalhe na interpretação e na aplicação das normas processuais penais.

A previsão explícita dos princípios fundamentais no corpo do Código de Processo Penal pode ser uma forma de humanizar o processo e expandir a aplicação de preceitos há tempo previstos na Carta Magna e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário. Já deveria ser cultura da prática forense a interpretação das leis sempre com vistas à Constituição Federal, entretanto, ainda se peca muito pelo formalismo errôneo de se prender ao puro texto da lei.

DO JUÍZO DAS GARANTIAS

Diz o artigo 15 do anteprojeto que “o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”. Entendemos que a criação do juízo das garantias reforça o princípio da imparcialidade do juiz, uma vez que o primeiro magistrado a ter contato com o caso investigado não é o mesmo que vai conduzir a instrução criminal. O juízo das garantias tem competência para atuar até o momento da propositura da ação penal e atinge todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo.

Basicamente, todos os atos da investigação criminal que dependam da atuação judicial estariam submetidos ao juízo das garantias. Dentre suas atribuições, expressas no rol não taxativo do mesmo artigo 15, estão: “receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do art. 5º da Constituição da República”; “receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 543”; “zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença; ser informado da abertura de qualquer inquérito policial”; “decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar; prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las”; “decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa”; “prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no parágrafo único deste artigo”, dentre outras.

As grandes vantagens que vislumbramos nesta novidade legislativa são a maior eficácia das decisões cautelares e menor parcialidade do juiz da instrução. A maior eficácia seria a conseqüência de não existirem outros assuntos que não a garantia de um procedimento investigatório dentro da legalidade. O juízo das garantias não estaria emperrado por outras demandas judiciais, o que traria a rapidez exigida pelas decisões cautelares. A restrição de sua competência canalizaria a atenção do juízo a questões preliminares à ação penal e deixaria ao juízo de instrução a responsabilidade de conduzir o processo e sentenciar.

Além da maior eficácia, também seria possível reduzir a parcialidade do juiz sentenciante. Dizemos “reduzir a parcialidade” porque sabemos que a imparcialidade total é impossível, considerando que os juízes são seres humanos que carregam valores e sempre existirá alguma influência externa ao processo. Quando um juízo distinto profere as decisões cautelares, o juízo da instrução encontra-se menos influenciado no momento da decisão. No sistema atual, o mesmo juiz que determina uma prisão preventiva pode ser o mesmo que vai sentenciar em momento posterior. É claro que as chances de ser influenciado por suas próprias decisões anteriores são grandes no momento da sentença final. Assim, cremos na redução da parcialidade do juiz que tiver por atribuição apenas a condução da instrução criminal para, ao final, julgar de acordo com sua convicção.

A competência do juízo das garantias esgota-se com a proposição da ação penal. Importantes os artigos 16 e 17 do anteprojeto, que impõem duas regras fundamentais. Primeiramente, as decisões do juízo das garantias não impedem que o juízo do processo, após o oferecimento da denúncia, possa reexaminar a necessidade de medidas cautelares. Pode o juiz da instrução, por exemplo, decretar uma prisão preventiva no curso do processo, mesmo que o juiz das garantias tenha negado a prisão provisória durante a fase de investigação. Em segundo lugar, “o juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 15 ficará impedido de funcionar no processo”. Tal dispositivo reforça nossa idéia de que a criação do juízo das garantias tem como uma das finalidades reduzir a parcialidade no momento da sentença.

DO PRAZO DO INQUÉRITO POLICIAL

O artigo 32 do anteprojeto estabelece os prazos de conclusão do inquérito policial em 90 dias, para o acusado solto, ou 10 dias, quando estiver preso. Poderá haver prorrogação do prazo se atendidas as razões apresentadas pela autoridade policial. Quanto à prorrogação, algumas observações merecem destaque.

Nas hipóteses em que o acusado estiver solto, passados os 90 dias, e não concluído o inquérito, o anteprojeto determina que a autoridade policial remeta as razões da prorrogação ao Ministério Público. Parece-nos que a prorrogação do prazo para conclusão do inquérito pode ser concedida pelo membro do parquet, sem passar pelo controle do Poder Judiciário. O artigo 15, que traz as atribuições do juízo das garantias, apenas expõe como uma de suas funções “prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no parágrafo único deste artigo” (grifo nosso). Ou seja, não há referência à autorização judicial para a prorrogação no caso do acusado solto.

Se o acusado encontrar-se preso, o prazo para conclusão de 10 dias poderá ser renovado, mediante autorização do juízo das garantias, por igual período, apenas uma vez. Passados os 20 dias possíveis para a conclusão do inquérito policial, o acusado terá sua prisão revogada. Entendemos ser esta previsão de inteira justiça, pois, encontrando-se preso o indiciado, o Estado tem a obrigação de concluir o inquérito sem delongas. Basta lembrarmos que o Estado é soberano e possui todos os agentes públicos a seu dispor. Se não houver efetividade nas investigações, mesmo com toda sua soberania, a culpa não é do acusado que está preso e, portanto, este deverá ser colocado em liberdade.

Tanto na hipótese do acusado preso, quanto do acusado solto, a revogação do prazo para conclusão do inquérito poderá ser realizada apenas uma vez. Quando houver a prisão, o anteprojeto é expresso em seu artigo 15, parágrafo único: “Estando o investigado preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar a duração do inquérito por período único de 10 (dez) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será revogada”. Quando o indiciado estiver solto, extraímos a conclusão do artigo 32, § 2.°: “Decorrido o prazo previsto no caput deste artigo sem que a investigação tenha sido concluída, os autos do inquérito serão encaminhados ao Ministério Público, com proposta de renovação do prazo e as razões da autoridade policial”. O texto fala em proposta de renovação, no singular, e, como a lei penal deve ser interpretada restritivamente, entendemos que somente poderá existir uma proposta.

Os prazos estabelecidos de conclusão do inquérito policial, assim como a limitação à proposta de renovação, podem contribuir para obedecer-se ao princípio da duração razoável do processo, que deve ser aplicado nos âmbitos administrativo e judiciário, segundo o artigo 5.°, LXXVIII, da Constituição Federal. Reiteramos a opinião de que o Estado é ente soberano e dispõe de todo aparato para a efetiva resolução de um fato criminoso. Se o uso deste aparato não é devido, não pode o acusado pagar por isso com a demora na conclusão do inquérito e do processo, por pior que seja o crime cometido.

Enfim, estas são nossas primeiras observações sobre o anteprojeto do novo Código de Processo Penal. Esperamos uma saudável e produtiva discussão entre os estudiosos das ciências criminais. O IBCCRIM está com as portas abertas para o debate por meio de nosso portal na Internet.

JOÃO PAULO ORSINI MARTINELLI
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha). Pesquisador visitante nas Universidades de Munique (Alemanha) e California (EUA). Professor do UniAnchieta e da FACAMP. Membro da Comissão de Jovens Penalistas da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Coordenador-adjunto de internet do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

IBCCRIM.

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