Brasília - O acesso à Justiça nem sempre é igual para todos, como também os resultados obtidos com os processos. Vários estudos demonstram que raça e nível social podem influenciar esses processos e, em muitos casos, implicar dificuldades para que práticas racistas sejam punidas pelo Judiciário.
O Relatório Anual das Desigualdades Raciais no Brasil 2007/2008, elaborado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, analisou o andamento de 85 casos de racismo e discriminação racial em 13 Tribunais de Justiça do país – Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Segundo o documento, entre janeiro de 2005 e dezembro de 2006, 40% dos processos de acusação por prática racista tiveram os méritos considerados improcedentes pelos juízes na primeira instância.
Segundo análise do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (Laeser), responsável pelo relatório, isso significa que as vítimas ganharam mais do que perderam quando os processos ainda eram de primeiro grau.
Mas, à medida que a tramitação do processo avança, a situação se inverte. A pesquisa mostrou que na segunda instância, durante a análise das decisões dos desembargadores, os réus das ações por crime de racismo passaram a levar vantagem, alterando as decisões de primeiro grau, até então vencidas na maioria das vezes pelas vítimas.
Ao todo, 57,7% dos réus acusados de racismo ganharam as ações na segunda instância e em 32,9% dos casos as vítimas foram vencedoras.
Por saberem que o desfecho dos processos geralmente ocorre na segunda instância, três pesquisadores do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) estudaram a aplicação da legislação nacional de combate ao racismo e à discriminação racial pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, entre 1998 e 2005.
O trabalho A Esfera Pública e as Proteções Legais Anti-Racismo no Brasil apontou que, durante o período, apenas quatro casos foram caracterizados definitivamente como injúria racial. O que mais chamou a atenção dos pesquisadores foi a inexistência de condenações por crime de racismo.
“Apesar da criminalização das práticas de racismo e da injúria racial, a quase totalidade dos estudos sobre o tema indica um número baixíssimo de condenações por parte do Judiciário nacional. Nossa pesquisa confirmou esses dados naquilo que se refere ao tribunal de São Paulo”, explica Felipe Silva, um dos autores do trabalho.
Estudos feitos pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) demonstram que não é de hoje que o Judiciário brasileiro trata de forma inadequada a questão do racismo. As pesquisas avaliaram processos ligados a situações de racismo entre 1951 e 1988 e entre 1988 e 1996.
“A primeira abrangeu o período da Lei Afonso Arinos, que foi até 1988. Nesse período muito poucas condenações foram capturadas. Ao todo, foram apenas quatro ao longo de quatro décadas, nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. A partir da Constituição de 1988, período analisado pela segunda pesquisa, o racismo ganhou status de crime imprescritível e inafiançável", explica o diretor executivo do Ceert, Hédio Silva.
De acordo com ele, a segunda pesquisa constatou um número ligeiramente maior que o da primeira, “mas ainda pequeno para as dimensões do país”. Foram cerca de 200 processos julgados em segunda instância pelos tribunais, “com número razoável de condenações”, explica Silva, doutor em Direito e ex-secretário de Justiça de São Paulo entre 2005 e 2006.
Hédio adiantou que o centro está finalizando uma terceira pesquisa,avaliando dados no âmbito dos tribunais brasileiros, que deverá ser concluída no primeiro trimestre de 2009. “Embora não tenhamos ainda condições de chegar a uma conclusão definitiva, é possível perceber que cresce significativamente o número de ações que não só visam ao encarceramento e à punição do discriminador, mas a indenização por dano moral e material, inclusive resultando em condenações vultosas em dinheiro”.
A pesquisadora do Núcleo de Estudo da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Jacqueline Sinhoretto, desenvolveu a pesquisa Racismo, Criminalidade Violenta e Justiça Penal: Réus Brancos e Negros em Perspectiva Comparativa, juntamente com o professor Sérgio Adorno. “A pesquisa compara crimes idênticos cometidos por negros e brancos em 1990, considerando o tratamento e os resultados”, explica.
“A diferença está principalmente no acesso à Justiça. A maioria dos brancos teve advogados pagos (60,5%), e a maior parte dos negros dependia da assistência jurídica proporcionada pelo Estado (62%), com advogados geralmente sobrecarregados e sem condições de se aprofundar no caso”, avalia Jacqueline.
Segundo a pesquisadora, o número maior de testemunhas apresentadas pelos brancos demonstra desempenho mais qualificado da defesa. “A coisa está ligada principalmente à classe social. Mas temos de lembrar que classe social e raça são categorias historicamente muito ligadas no Brasil”, argumenta.
Em outro estudo resultante de um parceria entre Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), a pesquisadora comparou o número de indiciados, de acusados, processados e dos que tiveram sentenças finais de prisão nos crimes de roubo, considerando o gênero e a raça no estado de São Paulo entre 1999 e 2000.
“Identificamos uma mudança de proporção à medida que as ações progrediam. Na fase inicial, o número de indiciados brancos (54,8%) era maior do que o de negros (43,9%). Essas linhas se aproximaram significativamente, alterando a proporção, quando os números analisados se referiam à execução penal masculina (51,8% para os brancos e 47,2% para os negros)” .
De acordo com Jaqueline, a diferença foi ainda maior entre o público feminino. Casos de indiciadas brancas, que inicialmente somavam 55,9% do total, baixaram para 46% na etapa de execução penal. Já o das negras subiu de 42,9% (indiciadas) para 51,3% (execução penal).
Agência Brasil.
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