sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Entrevista - Gary Barker




'Olho por olho só deixa todo mundo cego'

Ao longo de dez anos, trabalhando com governos e ONGs, o psicólogo Gary Barker conheceu jovens de comunidades urbanas de baixa renda no Brasil, Caribe, partes da África subsaariana e nos Estados Unidos. Em todos as localidades, apesar dos contextos completamente diferentes, percebeu a mesma constante: para se adequarem ao padrão de “homem de verdade”, jovens arriscam suas vidas e muitas vezes as perdem.



Nesses lugares, as taxas de mortalidade de homens jovens são muito maiores do que as de mulheres e homens mais velhos, superando até as estatísticas de países em guerras civis declaradas. As principais causas dessas mortes são violência, acidentes de trânsito e Aids.



Mas não são histórias de violência e desespero que Gary Barker conta em seu livro Homens na linha de fogo, recém-lançado pela editora 7 Letras. Ao contrário, ele revela histórias de rapazes que conheceu no Brasil, na Jamaica, na Nigéria, na África do Sul e nos Estados Unidos que driblaram modelos de masculinidade violenta e traçaram caminhos de não-violência, conquistando um papel na sociedade e o respeito em suas comunidades.



Doutor em psicologia do desenvolvimento infanto-juvenil pela Loyola University (Chicago, EUA), Barker agrega o componente de gênero à discussão sobre violência, delinqüência, exclusão social e saúde dos jovens.



Nesta entrevista ao Comunidade Segura, assim como no livro, ele conta histórias de paz e esperança. “São histórias de um otimismo fundamentado”, diz o autor, que é diretor-executivo do Instituto Promundo, ONG no Rio de Janeiro que promove a eqüidade de gênero e a prevenção da violência contra crianças, jovens e mulheres.



Em Homens na linha de fogo, você alerta que em sociedades dominadas pela violência jovens arriscam suas vidas para serem reconhecidos como “homens de verdade”. Que padrões de masculinidade são esses?

Esse modelo de masculinidade vem da sociedade de uma forma geral, não é só das periferias e das favelas. Está nos filmes, nos esportes, nas brigas, na escola e em casa, onde quem traz dinheiro domina o outro. Esse modelo se vê mais exagerado em algumas favelas e periferias porque faltam outras identidades.



Um homem de classe média tem outras opções - pode ser trabalhador, bom aluno, bom em esportes. Há outros espaços para ser reconhecido como homem. Na periferia, a falta de emprego nega esse reconhecimento de ser provedor, que é uma coisa básica para ser reconhecido como homem quase no mundo inteiro. Então aumenta a possibilidade de o jovem querer ser do “comando”, pegar em arma, usar a força física e o medo que consegue gerar sobre o outro.



Como esse modelo é construído?



Ele existe desde a infância, pelo que se vê em casa, nos filmes, na televisão, nas disputas fora de casa, onde os meninos ficam para passar o tempo. Já as meninas, que ficam em casa, com a mãe, cuidando dos irmãos, são mais dóceis. Os meninos já saem de casa com oito, nove anos. Têm pouco espaço dentro de casa então buscam fora. Na escola também não há espaço. Esperam que o menino fique sentado, tranqüilo. A energia, digamos, mais masculina, mais física, não é aceita na escola. Além disso, há as imagens das mídias e os livros infantis, que retratam a dominação do masculino.



No livro você se refere a rapazes de comunidades urbanas de baixa renda que encontram maneiras de se manter afastados da violência. Quais as principais alternativas?



Muitos relatos enfocam os jovens na violência. Eu busquei justamente as histórias daqueles que seguem caminhos de não-violência. Um bom músico ou um crente tem seu espaço respeitado pelos comandos armados. A igreja é um espaço respeitado por traficantes e portadores de armas não só aqui, mas nas periferias de Chicago, nos EUA, e em cidades na Nigéria.



Outras alternativas são ser bom em esportes, música ou dança, ser bom aluno ou conseguir um emprego - melhor ainda se for estável e usar uniforme. São símbolos respeitados pela sociedade e pelas gangues e identidades que ele até veste: a camisa do time, o uniforme do trabalho, o terno do crente, a roupa do músico. “Eu sou alguém”. Ele ocupa outro espaço e não é visto como possível inimigo de outra facção.



O que muda nos relacionamentos e no comportamento dos jovens na não-violência?



Na África do Sul, onde de 25 a 30% dos adultos têm o HIV e as taxas de violência contra mulheres são as mais altas do mundo, existe uma cultura muito forte de que os homens não fazem testagem porque não podem ser fracos. Mas há histórias de homens jovens que se testam, assumem publicamente que são soropositivos, buscam tratamento, participam da vida familiar e ainda se tornam promotores das idéias nas suas comunidades. Defendem que os homens não usem violência contra a mulher e que busquem os serviços de saúde.



Quais os gatilhos para seguirem outros rumos?



Em um certo ponto eles dizem “basta, o que posso fazer de diferente?” E não é só a iluminação de um indivíduo, mas de um indivíduo que um dia encontrou um espaço na clínica onde conheceu homens na mesma situação e dispostos a serem promotores. Essa sensação de ser parte de um grupo e de solidariedade também ocorre em gangues ou comandos.



Encontrar um espaço para elaborar outra visão, seja um grupo de amigos ou um grupo organizado, uma ONG, é quase sempre a chave para acharem outro modelo de masculinidade, em combinação a uma reflexão individual pela qual percebem que a violência pode servir a curto prazo para resolver alguns conflitos, mas a longo prazo traz danos que já vividos. Então decidem que não querem seguir esse caminho.



Pode dar outros exemplos?



Na Nigéria, encontrei um grupo de mediação liderado por um sacerdote muçulmano e um pastor da igreja evangélica. Ambos tinham participado de embates entre grupos cristãos e muçulmanos a partir do ano 2000 e viram muita violência. Muitos jovens desse grupo tinham participado de violências.



O que os trazia para o caminho da não-violência era a vontade de não decepcionar a família ou alguém na família. Muitos tinham visto vítimas na sua família ou de alguém próximo. Eles têm algum tipo de remorso, medo ou tristeza por terem testemunhado essa violência e percebem que a idéia do olho por olho só vai deixar todo mundo cego.



O que é preciso para que mais homens possam construir histórias de não-violência?



É preciso que tenham contato com o mundo fora dos contextos violentos em que vivem, para que tenham a chance de chegar a uma identidade, uma competência. Precisam ter acesso a instituições, o que muitas vezes é negado, encontrar um espaço na escola.



Sabemos que depois dos 14 anos, a exclusão escolar é enorme, mais para os homens do que para as mulheres jovens. Isso é uma constante nas áreas urbanas da Jamaica, do Brasil, da África do Sul e dos Estados Unidos. É preciso que alguma instituição respeitada pela sociedade tenha espaço para eles.



Nas favelas daqui, as igrejas ocupam esse espaço porque recebem bem os jovens com a roupa que estiverem. Elas têm redes de contatos e conseguem empregos para eles, emprestam ternos ou calças sociais para irem às entrevistas. Na igreja tem música, evento, jantar. Há espaço para eles.



E as ONGs?



A questão dos projetos sociais é que entram muito na cultura da bolsa. Cursinhos de três ou quatro messes que ajudam, mas não são uma constante. Há recursos para um ou dois anos, mas há uma dificuldade de manter atividades constantes nas comunidades por causa dos ciclos de financiamentos.



Você encontrou muitas semelhanças na violência em diversos países. E quais as principais diferenças?



Há países com muito menos desigualdade social que o Brasil e que vivem em constante guerra. Aqui há muitos caminhos de sociabilização. A situação nas favelas é terrível, mas encontram-se laços de afeto em espaços culturais de música, futebol, samba e até na maior liberdade sexual, que ajudam a suportar a desigualdade de uma forma diferente, por exemplo, das favelas na África do Sul.



A raiva racial que se sente em Johanesburgo ou Chicago é muito diferente da raiva que se sente conversando com um grupo de homens jovens no Brasil. Na África do Sul, o regime racista do Apartheid durou até 1994. E em Chicago, os rapazes tinham raiva do tal sonho americano que lhes foi vendido, segundo o qual qualquer um com um pouco de esforço teria direito a um carro, uma casa, dois filhos e uma vida confortável. Eles têm raiva de você por ser branco, você é parte da exclusão social dele.



A partir da sua pesquisa, o que se mostra necessário em termos de políticas públicas?



Algumas são óbvias. A questão é implementá-las com qualidade e consistência. Escola pública decente, que entenda a dificuldade de rapazes e moças no contexto de violência, a cultura local – a microcultura - e como a questão de gênero passa por isso; acesso a empregos; serviços de saúde que entendam que homens jovens também precisam não só de serviços preventivos, como também de saúde mental, e que entendam o impacto do contexto da violência em que vivem e levem em conta as questões de gênero e masculinidade. E além das políticas públicas, a sociedade e os meios de comunicação devem promover uma cultura masculina com ética de cuidado, e não uma ética competitiva em que o mais forte domina.



Qual o objetivo do livro e a quem se destina?



Espero que contribua para mudar os discursos de masculinidade e gênero. Tentei escrever num tom acessível, e não denso e acadêmico, para que fosse agradável de ler. Contei histórias pessoais e reflexões que vão além do conceitual. Ele se destina a quem trabalha na linha de frente, em trabalho social, seja com o Estado, seja com as ONGs, e para um público em geral que queira escutar algumas histórias de paz e esperança, quando tantas histórias são de violência e desespero. As histórias não são açucaradas, mas são de um otimismo fundamentado, assim espero.


Comunidade Segura.

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