A mais importante novidade apresentada pelo Código Penal francês, em vigor desde primeiro de março de 1994 – resultante de proposta da Comissão de Revisão do Código Penal, criada em 1974 pelo Ministério da Justiça –, foi o agasalho do princípio da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em momentos anterior, o projeto Paul Matter e o anteprojeto de Código Penal de 1978 já o consagravam. É de notar que pela vez primeira tal orientação é adotada por um país latino pertencente de modo integral à família romano-germânica de direito e cuja influência foi decisiva para a formação do direito escrito moderno (v.g., os códigos napolêonicos e o mov. Codificador).
Todavia, esse tipo de responsabilidade penal não era completamente estranha ao antigo direito penal francês. Segundo uma Ordenação de Colbert (1670), as comunidades de cidades, praças fortes, vilarejos, os grupos e companhias que praticassem rebelião, violência ou outro crime poderiam ser processados. As penas eram de multa, de perda de privilégios ou "alguma outra punição que assinalasse publicamente a pena cominada ao crime". Mas com o advento do Código Penal de 1810, firmou-se como regra geral o postulado do societas delinquere non potest.
O legislador de 1992 disciplina a matéria de forma expressa e ampla. Institui-se, salvo exceção, diretriz genérica no que tange à pessoa jurídica e especial relativamente às infrações. Assim, o artigo 121-2 do Código Penal define o campo de abrangência e as condições dessa espécie de responsabilidade penal… Ipsis verbis: "As pessoas morais, com exceção do Estado, são penalmente responsáveis (…) nos casos previstos em lei ou règlement pela infrações praticadas por sua conta, pelos seus órgãos ou representantes. Entretanto, as coletividades territoriais e suas entidades só são responsáveis pelas infrações praticadas no exercício de atividades suscetíveis de ser objeto de convenções de delegação de serviço público". Também, normas de processo penal específicas – de notório antropoformismo – são indicadas nos artigos 706-41 a 706-46 do Código de Processo Penal.
Dessa maneira, em obediência ao princípio constitucional da igualdade, todo ente moral pode ser criminalmente responsabilizado, inclusive sindicatos, fundações, associações e partidos políticos. A ressalva atinge tão-só o Estado – detentor do jus puniendi – e as coletividades territoriais, sendo que estas respondem penalmente em caso de concessão de serviço público. Nesta hipótese, tanto o município quanto a empresa concessionária do serviço – por exemplo, tratamento e distribuição de água – podem ser objeto de processo criminal.
Faz-se imprescindível a previsão legal explícita da responsabilidade criminal da pessoa jurídica. Neste sentido, o código penal e leis especiais elencam uma série de infrações, utilizando a técnica legislativa que se segue: o crime contra a humanidade vem insculpido no artigo 212-1 e o artigo 213-3 do Código Penal reza que "as pessoas morais podem ser declaradas responsáveis penalmente por crimes contra a humanidade". De sorte que vem ela referida por um grande número de delitos e de contravenções, tais como: homicídio culposo (art. 221-7, CP); lesão corporal culposa (art. 222-21, CP); tráfico de entorpecentes (art. 222-42, CP); racismo (art. 225-4, CP); lenocínio e tráfico de mulheres (art. 225-12, CP); furto (art. 311-16, CP); extorsão (art. 312-15, CP); estelionato (art. 313-9, CP); apropriação indébita (art. 314-12, CP); receptação (art. 321-12, CP); atentado aos sistemas de tratamento automatizado de dados (art. 323-6, CP); traição, espionagem, terrorismo (arts. 414-7, 422-5, CP); corrupção ativa, tráfico de influência, usurpação de funções (art. 433-25); crimes de falsidade (arts. 441-12, 442-14, 443-8, CP); crimes contra a administração da justiça (art. 434-47); violação de disposições relativas à venda e à troca (arts. R 633-1, a R 633-3); abandono de lixo e rejeitos (arts. R 632-1, R 635-8); infrações ao Código de Mineração (art. 143, CM); direito autoral (art. 335-8, Código da Propriedade Intelectual); infrações econômicas em matéria de concorrência e de preço (art. 52-2, Ordenação 86-1243); infrações em matéria de tratamento de dejetos (art.24-1 da Lei 75-633); poluições hídrica (art. 28-1 da Lei 92-3) e atmosférica (art. 7-1 da Lei 61-842); infrações em matéria de pesquisa médica (art. L 209-19-1 do Código da Saúde Pública); trabalho clandestino (art. L 364-6 do Código do Trabalho) e emprego ilegal de mão-de-obra estrangeira (art. L 364-10 do Código do Trabalho).
Os condicionantes legais indispensáveis à existência dessa responsabilidade são: a) a infração criminal deve ser praticada por um órgão ou representante legal da pessoa jurídica e b) a infração de ser praticada por conta da pessoa jurídica (art. 121-2, al. 1, CP). No primeiro caso, tem-se o chamado substractum humano – órgão (v.g., diretoria, assembléia geral) ou representante (v.g., presidente, diretor, gerente, prefeito) – da responsabilidade penal do ente coletivo. No segundo, há uma atuação no interesse ou em proveito exclusivo dessa última. Em sendo de outro modo, pode ser incriminada também a pessoa física, em razão do princípio da não exclusividade da responsabilidade criminal da pessoa jurídica: "A responsabilidade penal das pessoas morais não exclui a das pessoas físicas autores ou partícipes dos mesmos fatos" (art.121-2, al. 3, CP). Em princípio, "a responsabilidade penal de uma pessoa jurídica, como autor ou partícipe, supõe que seja estabelecida a responsabilidade penal, como autor ou partícipe, de uma ou de várias pessoas físicas representando a pessoa moral. Entretanto, em determinados casos e muito particularmente quando se trata de infrações de omissão, culposas ou materiais, que são formadas na falta seja de intenção delituosa, seja de um ato material de comissão, a responsabilidade penal de uma pessoa jurídica poderá ser deduzida mesmo que não tenha sido estabelecida a responsabilidade penal de uma pessoa física: (…)" (Exp. De Motivos - Circ. De 14 maio de 1993).
Como não poderia deixar de ser, o Código Penal gaulês estatui expressamente um rol de sanções criminais aplicáveis à pessoa jurídica (art.131-37 e segs., CP). Entre elas podem ser mencionadas as seguintes: a multa (cujo máximo é o quíntuplo do previsto para a pessoa física); a interdição definitiva ou temporária de exercer uma ou várias atividades profissionais ou sociais; o controle judiciário por 5 anos ou mais; o fechamento definitivo ou temporário do estabelecimento utilizado para prática do delito; a exclusão definitiva ou temporária dos mercados públicos; a interdição por 5 anos ou mais de emitir cheques; a confiscação do objeto do crime; a publicação da decisão judicial e a dissolução. Esta última é reservada para as infrações mais graves (ex.: crime contra a humanidade, tráfico de drogas, estelionato, extorsão, terrorismo, moeda falsa).
O juiz ou o tribunal podem declarar culpada a pessoa jurídica e postergar a aplicação da pena em determinados casos (132-60, CP). É vedada a aplicação das penas de dissolução e de controle judiciário às pessoas jurídicas de direito público, aos partidos políticos e aos sindicatos profissionais.
A pena aplicada a uma pessoa jurídica pode ser objeto de sursis, quando haja previsão legal (art.132-4, CP). Uma nova condenação no prazo de 5 anos (crime) ou de 2 anos (contravenção) implica a revogação automática do benefício.
A lei de adaptação (16.12.92) criou o registro nacional de antecedentes criminais para as pessoas morais (arts. 768-1, CPP). E o artigo 133-14 do Código Penal estabelece um regime bastante liberal para a reabilitação, possibilitando-a em 5 anos a partir do pagamento da multa ou da execução de qualquer outra pena.
Finalmente, convém salientar que apesar de a responsabilidade penal da pessoa jurídica ser uma realidade de direito positivo, a doutrina ainda permanece em grande parte reticente quanto ao seu fundamento jurídico – sobretudo num sistema que se diz lastreado no princípio da culpabilidade (nullum crimen sine culpa) –, aplicabilidade e eficácia. Para estes últimos aspectos, só o futuro poderá dar a verdadeira resposta.
Luiz Regis Prado, Membro do Ministério Público do Paraná (pós-doutorando em Direito na Universidade Robert Schuman de Estrasburgo, França) e professor titular de Direito Penal da Universidade Estadual de Maringá.
PRADO, Luiz Regis. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: o modelo francês. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.46, p. 03, set. 1996.
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