sábado, 8 de novembro de 2008

Artigo: A manipulação da violência

A crise na área da segurança pública, desencadeia pela explosão de violência dos últimos dias, tem trazido à tona manifestações açodadas, que não abortam os pontos relevantes deste polêmico debate.

Há que se observar, inicialmente, que o fenômeno da violência é a conseqüência visível de um complexo processo que abrange a miséria, o desemprego, a má distribuição de renda, enfim, a total ausência de políticas governamentais públicas e sociais, estas sim as verdadeiras causas.

É inegável, porém, que o Estado tem a sua parcela de responsabilidade no aumento da violência. Até o momento, não há um plano institucional claramente definido para solucionar esta grave questão. E a política recessiva implementada pelos governos federal e estadual só pioram o problema, na medida em que contribuem para aumentar, ainda mais, a já alta taxa de desemprego. Além disso, a decisão do governador Covas de retirar o policiamento das escolas tem se mostrado desastrosa, a ponto de gerar um clima de absoluta insegurança no seio da comunidade escolar.

Outra face do mesmo problema é a ausência de um programa de valorização de função policial. O salário pago aos profissionais da segurança pública, além de aviltante, é incompatível com a sua relevância social. A conseqüência é sentida na pele por toda a população, obrigada a conviver com quadros policiais de baixo nível, além de inexistir interesse por parte de quem poderia bem desempenhar este papel.

Finalmente, há que se lembrar da lentidão da máquina judicial que, aliada à impunidade, completam o dantesco quadro da segurança pública na cidade de São Paulo.

Desde que assumiu a Secretaria de Segurança Pública, o professor José Afonso da Silva vem enfrentando uma forte resistência por parte dos setores conservadores, que o acusam de acovarda a polícia e de preocupar-se em demasia com os "direitos humanos dos bandidos". A polêmica ficou ainda mais acirrada com a criação da Ouvidoria da Polícia que recebe e encaminha denúncias que envolvam policiais civis e militares, e do Programa de Acompanhamento a Policiais Militares envolvidos em Ocorrências de Alto Risco (PROAR), com o objetivo de assistir os policiais militares que, em razão da função, tenham matado alguém, afastando-os do policiamento nas ruas, período em que recebem assistência psicológica e passam por uma reciclagem técnico-profissional que objetiva torná-los aptos a empregar, durante o patrulhamento, a nova filosofia do comando, qual seja, a de uma polícia que cumpra a sua função sem ser necessariamente violenta, ou, nas palavras do professor José Afonso da Silva, "polícia é para prender e não para matar, e isso pode ser feito desde que o policial não esteja estimulado para a morte" (Folha de S. Paulo, 28.03.96, p. A3). Só o cumprimento da lei garante a segurança.

É necessário lembrar que a violência em São Paulo está fora de controle há muito tempo. Faz anos que todos os finais de semanas dezenas de jovens, em sua maioria pobre e negros, são chacinados nos subúrbios da cidade. E essa situação existia antes, quando os ocupantes da Secretaria de Segurança Pública adotavam, por assim dizer, uma postura linha-dura em relação à atuação da polícia. Basta lembrar o massacre do Carandiru…

Mas há que se perscrutar o que existe por trás dessas críticas, ou melhor, quais são os interesses envolvidos. Nota-se um crescimento vertiginoso, diria mesmo um verdadeiro "boom" das empresas privadas prestadoras de serviços de segurança, beneficiárias diretas do alarmismo trombeteado a cada tragédia. Além disso, a indústria do armamento também se fortalece com a ditadura da "síndrome do medo", que acaba por estimular a população a armar-se. Nesse passo, em breve estaremos todos de cartucheira e coldre, retrocederemos à da fase da justiça privada e viveremos sob a égide de uma única lei: a lei do mais forte (ou do mais rápido no gatilho, se preferirem). E não há dúvida de que a "política do bang-bang" só traz mais insegurança e violência.

No entanto, o aspecto mais importante disso tudo está no fato de que os manipuladores do medo, em nome da segurança pública, fazem a apologia da violência, a mesma violência que lhes serve para obtenção de dividendos políticos e prestígio social, tudo à custa de um sensacionalismo desumano. Em síntese, pregam a barbárie em nome da manutenção da ordem.

Discordamos daqueles que pregam mais violência como solução. Sem a criação e o implemento de políticas públicas e sociais, o quadro permanecerá o mesmo.

A expressão "direitos humanos dos bandidos", além de falaciosa, é pleonástica. Todo homem é titular de direitos que lhes são inerentes. Todo ser humano tem direitos igualmente humanos. E a Lei de Execução Penal garante a inviolabilidade dos direitos não atingidos pela condenação. A pena de morte é vedada pela Constituição do República, salvo no caso de guerra declarada, e mesmo nos países que a admitem, há a garantia do devido processo legal. A função constitucional da polícia é prender aqueles que infrigem a lei, a fim de que o Poder Judiciário os julgue e os condene, se for o caso. No Estado de Direito não há espaço para que a polícia pratique a violência de forma arbitrária.

O professor José Afonso da Silva, notável jurista que é, vem trabalhando no sentido de que a lei seja cumprida. E os resultados são altamente positivos: seis meses após a implantação do PROAR, houve significativa redução do número de mortos em confronto com PMs. Antes do PROAR, a média mensal era de 33,5 mortes (período de setembro de 94 a março de 95). Depois do PROAR, caiu para 17,83 (período de setembro de 95 a março de 96). O número de PMs feridos ou mortos durante o patrulhamento diminuiu. Além disso, ficou demonstrado que, depois da implantação do PROAR, aumentou a eficiência da PM no atendimento das ocorrências.

Segundo o coronel PM Elio Proni, comandante do Policiamento Metropolitano, "é notório na literatura especializada do Mundo Civilizado que o envolvimento em ocorrências com morte causa no policial impacto emocional, que interfere diretamente na forma de pensar e agir, variando a intensidade da reação, com a maturidade e as características individuais. Portanto, é imprescindível que ele receba adequada assistência, para recobrar o equilíbrio e a serenidade, qualidades essenciais à atuação de polícia ostensiva. (…) Estamos, gradativamente, mudando a forma de atuar dos policiais militares, sob nosso comando, devolvendo-lhes a humanidade e a dignidade, subtraída pelos falsos líderes, e os conduzindo ao verdadeiro exercício da cidadania, onde, integrados à comunidade, atuam com a responsabilidade de modelos sociais que têm a consciência de ser, fazendo uso de sua arma com sabedoria e técnica, sempre que se faz necessário à defesa da vida" (Revista "O Tira", nº 122, julho/96).

O problema da segurança pública não será resolvido com mais violência, senão agravado. A solução passa pelo equacionamento de um quadro mais amplo, que envolve a distribuição de renda, uma remuneração compatível com a função policial, o fortalecimento de uma cultura de direitos humanos, uma política social que permita a ressocialização dos menores de rua, a criminalização do porte de arma, entre outras medidas.

Os arautos do caos são, em verdades, os prosélitos da violência.


Cristiano Avila Maronna, Advogado e assessor parlamentar

MARONNA, Cristiano Avila. A manipulaçäo da violência. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.46, p. 05, set. 1996.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog