No ano de 1990, mais precisamente no dia 26 de julho, publicava-se no Diário Oficial da União o texto completo de uma nova lei, vinda como resposta aos anseios populares de diminuição da violência urbana que, já àquela época, beirava a insuportabilidade (tal como hoje, nada obstante os cinco anos de sua vigência).
Sancionada pelo presidente de República, Sr. Fernando Collor (de triste memória), tentava em seus 13 artigos (dois destes vetados) conter a pressão popular sobre os governantes, através da exasperação das penas de determinados crimes, impossibilitando-se, também, a concessão de benefícios aos sentenciados, tais como, a anistia, a graça e o indulto, além de proibir o gozo de direitos subjetivos individuais (mesmo estando presentes os requisitos específicos para sua fruição), como a fiança e liberdade provisória, tudo a atender "ao contagiante clima psicológico de pavor criado pelos meios de comunicação social e aos interesses imediatos de extratos sociais privilegiados", como acentuou Alberto Silva Franco, in Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, 5ª edição, 1995, p. 2.074); era, ao que parece, o início da chamada "política pálio-repressiva" instalada em nosso país, consubstanciada em uma série de iniqüidades legislativas e indicadores de um inútil controle rigoroso estatal (hard control).
Como não poderia deixar de ser, inúmeras vozes, quase em uníssono, levantaram-se contra a sua edição, taxando-a de inoportuna, atécnica e inconstitucional.
Estamos a falar de Lei n° 8.072/90 que dispõe "sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5°, XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências", cujos defeitos não iremos abordar, pois não é este o nosso escopo no momento.
Trataremos, tão-somente, de um instituto por ela criado: a delação como causa obrigatória de diminuição da pena em favor de auto, co-autor ou partícipe nos crimes de extorsão mediante seqüestro e quadrilha ou bando (este último quando a societas sceleris tiver sido formada com o intuito de praticar os crimes considerados hediondos e outros a eles assemelhados), fato que, aliás, não deixa de ser outro gravíssimo defeito, como explicitaremos adiante.
Mas não é só.
Em 03 de maio do ano de 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei n° 9.034/95, dispondo "sobre a utilização de mios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticas por organizações criminosas."
Tal como o anterior, este instrumento normativo, criado para definir e regular "meios de prova e procedimentos investigatórios que versarem sobre crime resultante de ações de quadrilha ou bando", também considera causa compulsória de diminuição da pena a delação de um dos participantes na organização criminosa.
Aliás, na Lei de Crimes Hediondos, o legislador foi mais explícito e utilizou o verbo denunciar como sinônimo da delação, enquanto que nesta Segunda norma, preferiu a expressão colaboração espontânea, como que para escamotear a vergonhosa presença da traição premiada em um diploma legal.
No dia 19 de julho de 1995 foi sancionada a Lei n° 9.080/95, prevendo, igualmente, a delação como prêmio ao co-autor ou partícipe de crime cometido contra o sistema financeiro nacional ou contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, quando cometidos em quadrilha ou co-autoria. Agora fala-se em confissão espontânea, o que resulta no mesmo.
Por fim, em 02 de abril de 1996, entrou em vigor a Lei n° 9.2369/96 que, modificando o § 4° do art. 159 do Código Penal, mais uma vez premia o delator, nos crimes de extorsão mediante seqüestro.
Apenas para ilustrar, diga-se que alguns doutrinadores costumam distinguir a delação como aberta ou fechada, aduzindo que naquela primeira o delator aparece e se identifica, inclusive favorecendo-se de alguma com o seu gesto, seja na redução da pena, seja no recebimento de recompensa pecuniária; nesta, ao contrário, o delator se assombra no manto do anonimato, "propiciando auxílio desinteressado e sem qualquer perigo", como assevera Paulo Lúcio Nogueira (Crimes Hediondos, Leud, 4ª ed., p. 126).
Afora questões de natureza prática, como, por exemplo, a inutilidade, no Brasil, desse instituto, por conta, principalmente, do fato de que o nosso Estado não tem condições de garantir a integridade física do delator criminis, nem a de sua família, o que serviria como elemento desencorajador (note-se que, conforme informou Damásio E. de Jesus quando do III Encontro Estadual do Ministério Público do Estado da Bahia, em Comandatuba, no período de 31 de agosto de 1995 a 03 de setembro de mesmo ano, até aquela data, apenas um caso de delação premiada tinha sido por ele visto, quando de um julgamento do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo), aspectos outros, estes de natureza ético-moral, informam a profunda e irremediável infelicidade cometida mais uma vez pelo legislador brasileiro, muito demagógico e pouco cuidadoso quando se trata dos aspectos jurídicos de seus respectivos projetos de lei, como sói acontecer.
Quanto a esse aspecto prático, assim anotou Lima Filho: "Olvidou o Legislador, apenas, dois elementos fáticos importantes: a inexistência do anumus delatório por parte dos membros de organizações criminosas, hoje poderosíssimo, altamente estruturadas e com rigoroso 'código de ética' a ser observado intra corporis; e- o mais difícil, ante a nossa realidade carcerária - a garantia de sobrevivência do 'concorrente denunciador' à posterior delação." (Altamiro de Araújo Lima Filho, Alterações ao Código Penal e Processual Penal, p. 55).
Recentemente, na cidade de São Paulo, quando da realização do II Seminário Internacional de Direito Penal e Direito Processual Penal, promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (dias 22 e 24 de agosto de 1996), o jurista argentino Enrique Garcia Vitor, o professor de Direito Penal da Universidade Nacional do Litoral - Santa Fé e seu diretor do Departamento de Direito Penal, discorrendo sobre o tema "A Problemática do Bem jurídico nos delitos relacionados com drogas proibidas", criticou veemente a previsão da delação premiada na legislação portenha (no que se refere aos delitos relacionados com drogas), informando que naquele país se premia o delator com a impunidade.
Para nós, é tremendamente perigoso que o direito positivo de um país permita, e mais do que isso, incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de obter um prêmio ou um favor jurídico.
Se considerarmos que norma jurídica de um Estado de Direito é o último refúgio do seu povo, no sentido de que as proposições enunciativas nela contidas representam um parâmetro de organização ou conduta das pessoas (a depender de qual norma nos refiramos, se, respectivamente, de segundo ou primeiros graus, no dizer de Bobbio), definindo os limites de suas atuações, é inaceitáveis que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada, em flagrante incitamento à transgressão de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.
Que não se corra o perigo, já advertido e vislumbrado pelo porta Dante Alighieri, lembrado por Miguel Reale, quando filosofa que o "Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem e, que, conservada, conserva a sociedade; corrompida, corrompe-a." (in Lições Preliminares de Direito, Saraiva, 19ª ed., 1991, p.60).
Diante dessa sombria constatação, como se pode exigir do governado um comportamento cotidiano decente, se a própria lei estabelecida pelos governantes permite e galardoa um procedimento indecoroso? Como fica o homem de pouca e nenhuma cultura, ou mesmo aquele desprovido de maiores princípios, diante dessa permissividade imoral ditada pela própria lei, esta mesma lei que, objetiva e obrigatoriamente, tem de ser respeita e cumprida, sob pena de sanção? Estamos ou não estamos diante de um paradoxo?
É certo que em outras legislações, inclusive de certo países desenvolvidos economicamente (embora possuidores de uma sociedade em desencanto, como, por exemplo, a italiana), a figura da delatio já existe há algum tempo (lá, diga-se de passagem, assegura-se inquestionavelmente a vida do denunciante), como ocorre nos Estados Unidos (bargain) e na Itália (pattegiamento), dentre outros países. São exemplos, contudo, que não deveriam ser seguidos, pois desprovidos de qualquer caráter moral ou ético, como já acentuamos.
Tão-somente para argumentar, pode-se dizer que o bem jurídico visado pela delação (a segurança pública), justificaria a sua utilização, ou, em outras palavras, o fim legitimaria o meio. Ocorre que tal princípio é de todo amoralista, aliás, próprio do sistema político defendido pelo escritor e estadista florentino Noccolò Machiavelli (1469-1527), sistema este dito de um realismo satânico, na definição de Frederico II em seu Antimaquavel, tornando-se sinônimo, inclusive, de procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro, etc., etc...
O próprio Rui Barbosa já afirmava não se dever combater um exagero (no caso a violência desenfreada) com um absurdo (a delação premiada).
Entendemos que o aparelho policial do Estado deve se revestir de toda uma estrutura e autonomia, a fim de poder realizar seu trabalho a contento, sem necessitar de expedientes escusos na elucidação dos delitos. O aparato policial tem a obrigação de, por si próprio, valer-se de meios legítimos para a consecução satisfatória de seus fins, não sendo necessário, portanto, que uma lei ordinária use do prêmio ao delator (crownwitness), como expediente facilitador da averiguação policial e da afetividade da punição.
Ademais, no próprio Código Penal já existe a figura da atenuante genérica do art. 65, III, b, onde a pena será sempre atenuada quando o agente tiver "procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência , logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou Ter, antes do julgamento, reparado o dano", que poderia muito apropriadamente compensar (por assim dizer) uma atitude do criminoso no auxílio à autoridade investigante ou judiciária.
Além da atenuante referida, há o instituto do arrependimento eficaz que, igualmente, beneficia o agente quando este impede voluntariamente que o resultado da execução do delito se produza, fazendo-o responder, apenas, pelos atos já praticados (art. 15).
Pode-se, ainda, referir-se ao preceito do art. 16, arrependimento posterior, bem verdade que este limitado àqueles crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas, da mesma forma, compensador de uma atitude favorável por parte do delinqüente, reduzindo-lhe a pena.
Vê-se, destarte, que o ordenamento jurídico existente e consubstanciado no Código Penal já permitia beneficiar o réu em determinadas circunstâncias, quando demonstrasse "menor endurecimento no querer criminoso, certa sensibilidade moral, um sentimento de humanidade e de justiça que o levam, passado o ímpeto do crime, a procurar detê-lo em seu processo agressivo ao bem jurídico, impedindo-lhe as conseqüências", com já acentuou o mestre Aníbal Bruno (Direito Penal, 4ª ed., t. III, p. 140, 1984). Não necessitava, portanto, o legislador brasileiro, em leis extravagantes, vir a prever a delação premiada, como causa de diminuição da pena.
Com efeito, a traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos. A lei, com já foi dito, deve sempre e sempre indicar condutas sérias, moralmente relevantes e aceitáveis, jamais ser arcabouço de estímulo a perfídias, deslealdades, aleivosias, ainda que para calar a multidão temerosa e indefesa (aliás, por culpa do próprio Estado) ou setores economicamente privilegiados da sociedade (no caso da repressão à extorsão mediante seqüestro).
Para João Ubaldo, escritor de raríssima sensibilidade, escrevendo sobre o assunto e lembrando-se dos duros tempo do golpe de 64, onde, segundo ele, o "dedurismo" campeou, "seria de esperar-se que algo tão universalmente rejeitado (a delação), epítome da deslealdade, do oportunismo e da falta de caráter, também se juntasse a um passado que ninguém, ou quase ninguém, quer reviver", para concluir que, ao contrário, este fato "permanece vivo e atuante, ameaçando impor traços cada vez mais policialescos à nossa sociedade" (O Globo, 17.12.95).
Em nome da segurança pública, falida devido à inoperância social do poder e não por falta de leis repressivas, edita-se um sem número de novos comandos legislativos sem o necessário cuidado com o que se vai prescrever, disseminando, por exemplo, o que se costumou chamar de "processo penal de emergência".
Incita-se, então, à traição, este mal que já matou os conjurados delatados pelo crápula Silvério dos Reis, que levou Jesus à cruz por conta da fraqueza de Judas e deu novo alento aos invasores holandeses graças à ajuda infame de Calabar.
Esses traidores históricos, e tantos outros poderiam ser citados, são símbolos do que há de pior na espécie humana; serão sempre lembrados como figuras desprezíveis. Advirta-se que não estamos a fazer comparações, pois, sequer são, neste caso, cabíveis. Apenas tencionamos mostrar a nossa indignação com a utilização da ordem jurídica como instrumento incentivador da traição, ainda que se traia um seqüestrador, um latrocida ou um estuprador.
Não podemos nos valer de meios esconsos, em nome de quem quer que seja ou de qualquer bem, sob pena, inclusive, de sucumbirmos à promiscuidade da ordem jurídica corrompida, pelo que procuramos, sucintamente, neste trabalho, condenar a delatio premiada introduzida em nosso direito positivo.
"Em verdade te digo que hoje, nesta noite, antes que duas vezes cante o galo, tu me negarás três vezes." (Marcos, 14, 30 - Palavras de Jesus a Pedro).
Rômulo de Andrade Moreira, Promotor de justiça do Estado da Bahia.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. A institucionalizaçäo da delaçäo no direito positivo brasileiro. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.49, p. 05-06, dez. 1996.
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