Mesmo antes da publicação do nosso livro Indenização do Erro Judiciário (1995, Ed. Leud, São Paulo), já tínhamos a intenção de escrever sobre a prisão indevida, assunto que, a par de sua atualidade e importância, se constitui em mais um nó envolvendo a responsabilidade pública, que se procura desatar, não só a nível doutrinário, mas com o amparo da jurisprudência, que, ainda esparsa, reúne já, em respeitáveis acórdãos, decisões que sedimentam, definitivamente, a pertinência da indenização pela prisão injusta, sem base em sentença definitiva. Bem se sabe que a indenização, nessas circunstâncias, é direito fundamental do homem brasileiro, por força de sua introdução na Constituição Federal de 1988, art. 5º, LXXV. Mas o assunto exige devida análise para se estabelecer a sua aplicação e os seus limites.
Numa primeira abordagem da prisão indevida, observa-se não decorrer, propriamente, de erro do aplicador da lei, mas da estrutura sistêmica do direito processual, que admite a prisão cautelar, inclusive sem decisão judicial, por força da situação de flagrante delito. Daí a importância de se conhecer a natureza do instituto da prisão indevida. A amplitude do conteúdo do inciso LXXV do art. 5º da CF/88, no que concerne à prisão indevida, comporta, além da atividade jurisdicional ativa, consistente no decreto da prisão ditado pelo juiz, no exercício da função jurisdicional, como conseqüência de vero erro de julgamento, também a omissão de qualquer agente público na liberação do preso, depois de cumprida pena imposta, e qualquer natureza de prisão (por flagrante delito, provisória, preventiva, por pronúncia e para o recurso, quando não se permite recorrer em liberdade) a que não corresponda, em definitivo, uma condenação com imposição de pena privativa de liberdade a ser cumprida no regime fechado. E, pois, submetido o indivíduo a prisão indevida, fará jus à indenização às custas do Estado, não importando eventual licitude do motivo (erro na apreciação dsa condições de sua decretação) ou o caráter de sua ilicitude (ação ou omissão dolosa ou culposa de agente público ou de quem impõe sua vontade de modo a obrigar o Estado, como no caso da prisão em flagrante feita por qualquer pessoa, até o momento de ser mantida pela autoridade estatal).
Uma vez, portanto, submetido o réu à prisão indevida, não importa o motivo, fará jus a indenização às custas do Estado. O caso é de responsabilidade ex vi legis, atribuindo o legislador obrigação ao poder público. Tanto no Brasil, no regime constitucional vigente, como na França, no regime da lei de 17 de julho de 1970, a indenização do prejuízo causado por prisão antecipada quando o processo termina com a absolvição do réu, denota, como assevera Jean Rivero para o exemplo francês, "um caso de responsabilidade sem culpa, por aplicação do princípio da igualdade perante os encargos públicos". Porém, no caso brasileiro, tem-se que a imperatividade da norma constitucional faz pensar em obrigação atribuída pela lei, afastando o questionamento acerca de elemento estranho à norma. Certo é que sua positivação teve por fundamento o respeito à liberdade individual. O encargo que assume o cofre público com a indenização por indevida supressão desta é que faz presumir a igualdade de todos, pois a recomposição patrimonial do lesado é obtida com dinheiro de impostos, indistintamente arrecadado. Mas a responsabilidade pública, essa, decorre da lei.
A imperatividade da norma constitucional gera conseqüências para o intérprete e o aplicador do Direito. A mais importante, pode-se dizer que é a impossibilidade de ser restringido o direito que dimana da norma pelo legislador ordinário. Deve ele abster-se de interferir na garantia outorgada ao cidadão, de modo a não obstar o exercício de direitos. Outra conseqüência importante é a que implica maior facilidade na invocação da responsabilidade pública, quer porque a norma pressupõe considerações exclusivamente objetivas, na sua aplicação, quer porque o seu sentido exige o pronto restabelecimento do direito violado. Não ficou fora da previsão de indenização nenhuma forma de prisão. Basta que não tenha correspondência com a sentença — definitiva, tem de ser — para que ocorra a hipótese antevista pelo legislador e resumida, na norma, como além do tempo fixado na sentença.
Ao entender necessário, para a boa convivência entre o poder do Estado e o respeito ao direito do cidadão, a menção explícita da possibilidade de indenização por prisão indevida, o legislador buscou um equilíbrio indispensável à vida social por intermédio da boa aplicação do Direito. O intuito principal, numa projeção ainda da dignidade da pessoa humana, proclamada como fundamento do Estado Democrático de Direito que se instalou oficialmente no Brasil com a CF/88, pode ser visto como soerguimento da pessoa humana à estatura de único e verdadeiro destinatário das ações estatais. Desse modo, da atuação do Estado não poderá advir à coletividade senão benefícios. E a prisão de alguém, sem correspondência com a condenação legítima emanada do órgão estatal com poderes para tanto, fere não o direito abstratamente considerado, mas também, concretamente, a esfera de direitos do cidadão protegidos constitucionalmente, como se dá com a liberdade.
A jurisprudência, a que se referiu, foi catalogada no livro Indenização da Prisão Indevida, mencionando-se abaixo, a título de exemplos, o acórdão que determinou que "a Fazenda do Estado responde pelos danos sofridos por quem ficou preso mais de um ano, em virtude de denúncia criminal para a qual não havia fundamento, uma vez que o fato atribuído ao réu não configurava infração penal" (Apelação Cível nº 196.901, 4ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo).
E mais: "Prisão injusta - Autor mantido em cadeia pública apesar de absolvido e sujeito a medida de segurança detentiva em estabelecimento adequado - Falta de vagas, como motivo alegado - Falha no funcionamento do aparelho estatal que não é causa elidente de responsabilidade" (Apelação Cível nº 202.933-1, 2ª Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo).
Luiz Antonio Soares Hentz, Juiz de Direito da 9ª Vara Cível de Ribeirão Preto e autor dos livros Indenização do Erro Judiciário e Indenização da Prisão Indevida, o último recentemente publicado.
HENTZ, Luiz Antonio Soares. Indenizaçäo da prisão indevida. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.44, p. 07, ago. 1996.
Nenhum comentário:
Postar um comentário