segunda-feira, 16 de junho de 2008

Entrevista com Eugênio Pacelli sobre a reforma do CPP

MINIRREFORMA DO CPP

Claudia Zardo – Jornalista e acadêmica em Direito


O Presidente da República sancionou no dia 9 de junho três projetos de lei (4.203/01, 4.205/01, 4.207/01) que alteram alguns pontos do Decreto-Lei 3.689/41, ou seja, o Código de Processo Penal. As novas leis devem entrar em vigor a partir da publicação no Diário Oficial da União. Objetivam maior celeridade nos trâmites processuais, além de simplificação das decisões judiciais, e as mudanças estão relacionadas ao tribunal do júri, à produção de provas e às audiências.

Para dar continuidade ao tema, de acordo com o Ato nº. 11/08, o Senado Federal criou Comissão Externa de Juristas que, a contar de 1º de agosto, terá 180 dias para apresentar um anteprojeto de reforma do CPP. A Comissão é formada pelos juristas Antônio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacelli de Oliveira, Fabiano Augusto Martins Silveira, Félix Valois Coelho Júnior, Hamilton Carvalhido, Jacinto Nélson de Miranda Coutinho e Sandro Torres Avelar, que trabalharão sem qualquer remuneração e na forma de serviço público prestado ao Senado Federal.

À nossa reportagem, um dos integrantes da Comissão, o Mestre e Doutor pela UFMG; Procurador da República em Minas Gerais; autor de diversos livros e Professor universitário Eugênio Pacelli de Oliveira respondeu a alguns questionamentos pertinentes ao interesse popular daquilo que o Governo chamou de “reforma” do CPP, bem com aos questionamentos técnicos feitos pelo Mestre em direito público pela UNIFRAN, Especialista em processo civil pela UFU, Professor de Direito Penal na ESAMC e Promotor de Justiça, André Luis Alves de Melo. Confira a seguir.


ENTREVISTA

INTERESSE PÚBLICO

O Código de Processo Penal passou por pequenas alterações aqui e acolá. Outras, além da que estamos questionando nesta entrevista, estão a caminho. Por outro lado, é fato que partes do CPP não mais se encaixam na realidade contemporânea, tendo inclusive alguns textos que fazem uso de expressões e orientações de condutas embasadas em costumes vigentes no tempo da “Carochinha”. Diante disso, sabendo que boa parte do CPP já não serve mais à realidade dos fatos, por que as reformas seguem sendo feitas no sistema de conta-gotas, de forma burocrática e lenta, e surgem especialmente quando há clamor social por algum caso isolado e exaustivamente explorado pela imprensa, ao invés de serem feitas em sua totalidade, de uma vez?

Eugênio Pacelli de Oliveira - Todas as questões atinentes à criminalidade, aí incluída a legislação penal e processual penal, configuram temas extremamente sensíveis e nem sempre bem compreendidos pela população em geral. Por exemplo: é pensamento comum na sociedade brasileira que o agravamento das penas e a celeridade do processo penal - fim da impunidade, em resumo - resolveriam o problema da criminalidade, o que está longe de ser verdadeiro, ou, pelo menos, inteiramente verdadeiro. As causas da violência transcendem ao Direito; mais, localizam-se, prioritariamente, no âmbito da política, da economia e da vida social. As desigualdades sociais, a miséria largamente distribuída, por inúmeros fatores, impedem uma análise mais criteriosa das razões da violência. O Direito Penal jamais conterá a totalidade do crime, já que este (o delito) não surge apenas como rejeição do Direito, mas muitas vezes como sobrevivência marginal. Por isso tudo, o Parlamento não parece ainda decidido a reformular a legislação penal levando em contas a profundidade das questões subjacentes. Reformas "a conta-gotas" são contraproducentes já que, com elas, perde-se a visão do todo, em prejuízo da unidade do sistema penal e processual penal. Por isso, há de ser recebida com otimismo a iniciativa do Senado, de instituir uma Comissão de Juristas para a elaboração de um novo Código de Processo Penal. As reformas que estão chegando foram tão modificadas ao longo dos anos (são de 2001) que já perderam a unidade de sentido.


Se o Legislativo e o Executivo pararam para propor mudanças em alguns pontos, por que não parar para reformar todos os dispositivos ultrapassados de uma só vez e assim economizar tempo e dinheiro aos cofres públicos?

E.P.O. - Exatamente. Reformas pontuais, apesar de parecerem mais facilmente absorvidas, podem gerar um quadro de contradições, na medida em que, a cada momento em que são analisadas uma a uma, perde-se a idéia que motivou o seu conjunto. Com isso, produzem-se leis (alteradas na sua redação original) em desacordo com a lógica das anteriores, que também receberam modificações. E, pior: gasta-se muito nas adaptações às novas leis, seja no âmbito dos órgãos públicos envolvidos (Juiz, Ministério Público, Polícia), seja no âmbito privado (Advocacia, currículos escolares, produção bibliográfica etc.).


No senso comum, dizem que quem tem pressa come cru. Para retirar do seio social a sensação de impunidade, a minirreforma objetivou uma maior rapidez no trâmite processual e decisões judiciais da área penal. Mas, afinal, o excesso de rapidez pode ou não levar à insegurança jurídica ou mesmo a outras injustiças?

E.P.O. - O apressado como cru somente quando o alimento deve ser "cozido ou assado". Quando se trata de alimento que se come originariamente cru, o forno ou a panela são mais que improdutivos. Há sempre o risco de insegurança na diminuição do tempo dos ritos processuais, o que não quer dizer que não se possa fazê-lo. As mudanças atuais, frutos da minirreforma, não causarão nenhum problema dessa natureza, segundo me parece, até porque as alterações nesse sentido não são tão significativas assim.


Nossa legislação engloba mais de mil leis da área penal. A porcentagem de criminosos que estão na cadeia é menor que 1%. Em Minas Gerais temos superlotação carcerária em diversas cidades; sem contar os sérios problemas que afrontam os Direitos Humanos. No Poder Judiciário temos ausência de magistrados em algumas comarcas e falta de serventuários. Alguns Tribunais podem ser comparados a palácios suntuosos, por fora; por dentro funcionam como instituições da Idade Média. Diante do exposto, ao sr. questiono, em nome do povo: o que o cidadão comum tem a ganhar com a tão alardeada “reforma do CPP”?

E.P.O. - A pergunta vem ou está na direção da resposta à primeira (pergunta). De fato, no Brasil gasta-se muito com o que importa pouco. Prédios luxuosos existem e são inteiramente dispensáveis. O orçamento seria muito mais produtivo se fosse destinado aos recursos humanos do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia, por exemplo. Tais instituições cometem os mesmos erros cometidos pelo Executivo e pelo Parlamento: direcionam recursos materiais para o desenvolvimento de atividade "meio", em desprestígio da atividade "fim". Obviamente, isso não ocorre em todas as instituições e nem em todos os momentos da vida pública, mas, não obstante, é fato comprovado em muitas situações. Para que tenhamos mais juízes, mais policiais e mais membros do Ministério Público, o que agilizaria a atuação de cada um deles, dependemos de leis, é verdade. No entanto, possibilitar um melhor desempenho dos que já atuam, com um mais adequado aparelhamento dos recursos necessários às respectivas atividades, é um imperativo da boa administração pública. Em relação às penitenciárias e às delegacias, o problema não é diferente do que ocorre nos hospitais e demais serviços públicos; a carência de recursos e de investimento é fato notório. O que a legislação penal pode fazer em relação a isso é diminuir os malefícios da intervenção penal, diminuindo a incidência de penas privativas da liberdade, que deveriam ser reservadas, em princípio, para crimes de maior gravidade, evitando-se a proliferação de prisões cautelares. A prisão, em si, é bastante problemática, gerando, por si só, violência e reprodução de violência. Por isso deve ser evitada o quanto possível. Os crimes para os quais a população brasileira exige punição, de modo geral, são crimes violentos e envolvendo a criminalidade econômica (colarinho branco, corrupção etc.). Para esses últimos, então, há unanimidade quanto aos efeitos deletérios na vida social (acumulação de riquezas e privatização dos bens públicos) e, por isso, devem merecer maiores cuidados na legislação.


PARTE TÉCNICA

A “reforma” prevê a intimação da vítima acerca de atos como sentença, audiências, acórdãos. Embora isto seja um avanço, não seria o caso também de avisar quando eventualmente o promotor arquivar ou oferecer a denúncia criminal? Também não seria bom este procedimento na fase policial?

E.P.O - A ciência da vítima em relação tanto ao oferecimento da denúncia quanto da condenação e de outros atos é bem-vinda, na medida em que poderá estimular o exercício de uma maior fiscalização da sociedade aos poderes públicos envolvidos na persecução penal. E isso, em última análise, integra o rol de atributos da cidadania, até mesmo para que se possam perceber, mais de perto, as eventuais vantagens e desvantagens do sistema penal estatal. Acho, então, que a vítima, em alguns crimes, quando perfeitamente identificada, deve mesmo ser cientificada acerca das decisões emanadas da persecução penal, incluindo a atividade policial.


A Lei 11.690/08 prevê assistência psicológica, jurídica e à saúde da vítima, mas apenas na fase judicial, já que afirma categoricamente que cabe ao juiz encaminhar, mas quanto aos mais de 90% de crimes que nem viram processo por falta de conhecimento da autoria ou outros fatores, não seria o caso de se estender este benefício a todas as vítimas?

E.P.O - A meu aviso, esse é um dispositivo sem maiores repercussões práticas. Nosso sistema de atendimento às vítimas de crimes, incluindo de violência doméstica, não pode gozar de primazia em relação aos demais necessitados, que, a seu turno, se não são vítimas de crimes, podem ser vítimas da fatalidade, do destino, do acaso, enfim, mas, em todo caso, são portadores de necessidades de atendimento pelos órgãos do Estado. Espero, mesmo, que o Estado possa desempenhar a função ali mencionada. Não acredito nisso, a julgar pelo fato de que - para ficarmos apenas no âmbito penal - sequer a Lei de Execuções Penais é rigorosamente cumprida no Brasil.


O art. 156 da Lei 11.690 permite que o juiz produza provas contra o réu. Isto não viola o princípio acusatório (princípio do contraditório)? Afinal, o ônus da prova para condenar não seria do MP?

E.P.O - Não só viola o sistema acusatório, como incentiva uma cultura que deve ser superada no Brasil. O juiz criminal não deve ocupar função de proeminência na persecução penal. Existe um órgão específico para cuidar disso (o MP), no que é auxiliado suficientemente pela Polícia, indevidamente denominada "Judiciária". A Polícia atua com o Ministério Público e não com o Judiciário. O juiz deve ser o juiz das liberdades públicas, isto é, deve atuar preservando as garantias individuais, antes da decisão final, e aplicando o Direito Penal, quando for o caso, no exercício, então, de função tipicamente jurisdicional. Questões relativas à qualidade da prova, para fins de condenação e de acusação, não dizem respeito ao juiz, ao menos no que se refere à produção dela (prova). Jurisdição não é investigação e não é acusação. Tampouco é defesa, mas, sim, o julgamento de uma questão penal segundo o Direito válido.


No caso do crime de júri permitir ao juiz que desclassifique para crime mais grave na pronúncia - por exemplo, de homicídio simples ou lesão corporal seguida de morte para homicídio qualificado - sem ouvir as partes não viola o princípio da ampla defesa e sistema acusatório, ao retornar ao processo inquisitório?

E.P.O - Penso que a regra da definição jurídica diferente no Júri, por ocasião da pronúncia, nada tem de inconstitucional. A pronúncia é juízo de mera admissibilidade, feita por um técnico (juiz) para esclarecimento de um leigo (o jurado). A decisão se refere a um fato narrado, e sobre ele a defesa deve lançar todas as luzes que entender pertinentes, incluindo, por óbvio, a sua definição jurídica, independentemente da qualificação dada pelo Ministério Público. Mais. A decisão se submete a recurso e, por isso, pode permitir ampla argumentação, incluindo a do Ministério Público, que pode concordar com a defesa. Baixar os autos para nova manifestação, antes da pronúncia, é simplesmente antecipar uma decisão já tomada, ainda que sem a explicitação escrita dos motivos. Uma correção: não caberá a modificação de lesão corporal para homicídio, no âmbito do procedimento do Júri. Referida desclassificação, quando ocorrer, deverá ser feita no juízo singular, para o qual deve ser encaminhada a denúncia ou queixa pela prática de crime não doloso contra a vida.

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