quinta-feira, 26 de junho de 2008

Artigo: Reflexões sobre as raízes da violência e a inaplicabilidade do princípio da intervenção mínima

A discussão acerca das formas de se combater a criminalidade aumenta cotidianamente e não percorre, no mais das vezes, as veredas da indispensável racionalidade. Podemos afirmar que o legislador brasileiro atua por “espasmos”. Afinal, não foram poucas as alterações legislativas que se deram durante o calor de discussões repletas de teor meramente emocional. A emoção, como sabem os operadores do direito, não deve ser “mola propulsora” da atividade legislativa, a qual impõe o exercício do raciocínio e da adequação da nova norma ao ordenamento jurídico vigente.

As inovações, sobretudo no âmbito criminal, por se darem em meio flagrantemente emocional, não levam em conta relevantes conquistas da humanidade e, por conseguinte, contrariam o Estado Democrático de Direito. Os direitos humanos são postos de lado, a fim de que a violência seja reduzida. Tal atitude, entretanto, já se mostrou ineficaz e, pior, fomentadora da barbárie, tendo em vista que o que se está a fazer é negar a humanidade a um ser humano.

Tal comportamento, no mínimo irresponsável, tendo em vista o inequívoco imediatismo, revelou-se um dos motivos de o sistema jurídico brasileiro estar em desarmonia. São poucos os legisladores que compreendem o sistema de leis de nosso país para então modificar a legislação. A pressão popular, impulsionada pela mídia sensacionalista, parece servir unicamente para recrudescer o direito penal e ignorar os direitos humanos. Passamos a desrespeitar o princípio da intervenção mínima, tão necessário à construção de uma sociedade democrática, para adotar um ordenamento que se baseia, na maior parte dos casos, no poderio econômico do sujeito ativo de delitos, de maneira a isolar a população já marginalizada sem nos preocuparmos com o processo de formação de novos cidadãos. Nesse particular, devemos memorar um dos grandes contratualistas, qual seja, Jonh Locke, o qual já afirmava em seu tratado sobre o governo civil que ao Estado caberia fazer dos homens cidadãos. Nosso Estado, todavia, ainda que em pleno século XXI, teima em excluir os já excluídos e propiciar o fomento da violência por intermédio da marginalização esquecendo-se do ensino da arte da cidadania.
Por mais que a sociedade civil se deixe levar pelo “sensacionalismo midiático”, por mais que nossos cidadãos aceitem o cerceamento de direitos de natureza fundamental, com inequívoca agressão ao princípio da dignidade da pessoa humana, não podemos permitir que o enfoque fique somente na seara penal. Parece-nos que o problema tem dimensão institucional, bem como que suas raízes estão bem mais atreladas ao verdadeiro mote da vida de nossa sociedade. O problema não surge na impunidade – por mais que esse seja um dos fatores da violência -, mas sim na formatação de nossa sociedade inegavelmente individualista.

Sabemos que o artigo 5º da Constituição Federal consagra em seu “caput” a igualdade entre os indivíduos. Conhecemos também o rol extenso de direitos e garantias fundamentais. Todavia, será que a aplicação de tais princípios e direitos se dá através de um Estado repressor? Será que a existência da igualdade meramente formal – aquela que se dá perante as leis – basta à consecução de uma sociedade justa e respeitadora da dignidade humana?

A resposta há de ser negativa. Não são poucos os doutrinadores, sobretudo na seara do direito constitucional que exploraram a questão acerca da necessidade da igualdade material entre os indivíduos como pressuposto para a pacificação social. Justamente nesse ponto é importante relembrar que o constituinte foi pródigo não só ao estabelecer os direitos e garantias fundamentais, mas também ao positivar os princípios norteadores da ordem econômica. Cremos que nessa parte do texto constitucional encontraremos meios de demonstrar a importância da igualdade material e os instrumentos para conquistá-la, a fim de construirmos uma sociedade mais equilibrada.

O artigo 170 da Constituição Federal, o qual inaugura a ordem econômica em nossa Lei Maior, estabelece os fundamentos da ordem econômica (valorização do trabalho humano e livre iniciativa), bem como determina suas finalidades (existência digna, conforme os ditames da justiça social). Ora, a ordem econômica é de suma importância, portanto, para a construção de uma sociedade menos excludente, afinal, escolhemos o modo capitalista de produção e, assim, a atividade econômica é questão central de nossas relações sociais, devendo se desenvolver com base nos ditames da justiça social de maneira a propiciar uma justa distribuição dos benefícios auferidos no contexto coletivo.

Os incisos desse mesmo artigo afirmam os princípios da ordem econômica e, dentre eles, ressaltamos a função social da propriedade, a redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego. Esses são, em verdade, os instrumentos capazes de permitir a inclusão dos excluídos ou ao menos a diminuição desse processo excludente. Noutras palavras, melhor prevenir por meio da justiça social do que remediar através do direito penal!

O constituinte conseguiu conciliar o capitalismo a princípios de natureza social. No entanto, não basta que os responsáveis pela elaboração de nossa Carta Magna tenham se manifestado de tal sorte. A sociedade civil há de desenvolver a atividade econômica de acordo com os princípios acima citados.

Parece-nos que um dos pilares do status quo é justamente a ignorância de grande parcela dos indivíduos no que se refere à esfera social. O movimento pelo qual passamos é deveras individualista. Vemos a preocupação com a violência desvinculada de reflexões voltadas às mazelas produzidas por uma sociedade injusta e egoísta. O predomínio do “eu” em relação ao “nós” dá ensejo à pressão popular que faz desmoronar nosso sistema jurídico e que fulmina leis racionalmente elaboradas, dando espaço a textos legislativos ineficazes.

O princípio da intervenção mínima dá ao direito penal a condição de ultima ratio. Isto é, o ordenamento repressor é a última instância no processo de construção da ordem e da paz social. O direito penal, da maneira como está, talvez seja um dos remédios com maior índice de contra indicações, pois agrava a condição do indivíduo. Não podemos permitir que a maior parcela da população seja meramente objeto de preceitos repressores, quando sequer lhe foi dada a chance de desfrutar de um piso vital mínimo, ou seja, de condições básicas de vida para tentar sair da condição inegável de invisibilidade social tão indigna a um ser humano.

Para fazer uma breve relação, a catástrofe que observamos no meio ambiente foi perpetrada por esse mesmo pensamento individualista. Na questão ambiental os direitos humanos também foram postos de lado e toda a humanidade arcou com os prejuízos. A razão individual está prevalecendo enquanto o complexo de relações sociais padece.

As saídas oferecidas à violência estão sempre ligadas à ações que implícita ou explicitamente ignoram os direitos humanos. A aplicação de tais direitos é pressuposto para o verdadeiro ganho social e há de se fazer presente em todas as relações humanas. Assim, ao invés de se pregar a punição e o recrudescimento de penas há de se materializar a solidariedade através da justiça social, possibilitando a inclusão do maior número de indivíduos em atividades econômicas que respeitem o princípio da função social, viabilizando o pleno emprego, reduzindo desigualdades e finalmente construindo a dignidade humana.


Por Luiz Fernando de Camargo Prudente do Amaral, Bacharel em Direito/SP, Bacharel em Direito pela FAAP, Associado à Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação.


AMARAL, Luiz Fernando de Camargo Prudente do. Reflexões sobre as raízes da violência e a inaplicabilidade do princípio da intervenção mínima. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 26.06.2008.

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